O Vírus Isaac escrita por Star


Capítulo 4
Capítulo 4 - Gigantes




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Eu rodo a cidade inteira pelo menos três vezes até perceber que não conheço tantas pessoas criminosas quanto imaginava. Nem tantas pessoas que saibam escrever. Ou pessoas, no geral. Droga, por que eu fui ter tão poucos contatos nessa época crucial da minha vida?

Leio minha lista mental de conhecidos e agregados pela centésima vez, tentando procurar alguém para quem eu poderia pedir uma receita médica falsificada. Tem a Pipa, é claro, mas está anoitecendo e a essa hora ela já deve ter saído do Sapão. Eu poderia tentar procurá-la por aí e levar um galão de gasolina pra simpatizar com o seu novo namorado, mas essa opção oferece riscos demais à minha integridade física para soar tentadora. Tem a Madame Marlene, também, mas por causa dos anéis entalados nos seus dedos a letra dela sempre parece o retrato falado do almoço da minha mãe. Quase metade da escola não sabe mais escrever desde que digitar resolve tudo e é bem menos complicado, o que exclui a possibilidade de pedir ajuda pra qualquer um da minha sala ou do time de futebol, mesmo que eu soubesse mais do que o nome deles. Pedir ajuda para a Giovana significa ser dedurada para a mamãe na mesma hora ou sofrer chantagem e ser obrigada a lavar a roupa dela enviada pelos nove mares pelo resto da minha vida. Tem o Isaac, que sempre falsifica a assinatura dos pais nos boletins dele, mas a opção é estúpida demais para ser considerada. “Então, antes de você fugir do país, copia isso aqui para eu poder comprar um remédio contra esse teu vírus nojento que infectou meu corpinho enxuto? E rápido que a farmácia já vai fechar”. Não, obrigada. A dona Gezebel, talvez? A mãe do Oscar, não a lagosta. Eu poderia comprar umas balinhas de café para seduzi-la e esconder umas balas de tamarindo bem duras no meio para fazer tortura caso ela tente me dedurar para o filho.

De algum jeito eu cheguei a um ponto da vida em que minhas únicas opções de sobrevivência são trocar favores por um galão de gasolina ou ameaçar quebrar a dentadura da vizinha. Quando foi que as coisas começaram a dar tão errado? Ah, claro, quando Isaac disse que ia embora. Isso realmente aconteceu ontem? ‘Tô tão cansada que é quase como se ele já tivesse ido. Lembro-me da frase marcada nas minhas costelas, que já não está mais quente como quando apareceu, mas que eu ainda posso sentir dentro de mim, fazendo parte do meu corpo, como o meu joelho ou minhas células com potencial cancerígeno. “Eu quero que você fique”.

Merda, eu preciso de mais amigos! Com certeza eu não estaria nessa situação se não tivesse usado uma bolha de proteção para ir pra escola na quarta série. Foram as semanas mais seguras e livres de germes de toda a minha vida, mas em compensação todo mundo estranhamente passou a manter certa distância de mim. Começaram a falar que minha irmã me usava de cobaia e me obrigava a comer pasta de dente e por isso meu cérebro tinha virado sabão e eu acabei presa numa bolha gigante que saiu pelo meu ouvido. Todo mundo exceto Isaac, que o tempo inteiro ficou comigo, porque ele queria muito me jogar de cima do prédio da escola para descobrir se eu quicaria bem alto e chegaria ao céu.

Eu me arrasto pelas ruas, meu estômago roncando alto pelo almoço que não tive. Todo meu esforço foi à toa. O sentimento de derrota consegue me deprimir mais do que a fome. Isaac vai embora, afinal, e sem ele aqui eu vou acabar morrendo. Talvez eu encontre a bolha da quarta série em algum lugar. Com alguma sorte eu posso até ainda caber dentro dela. Eu nem cresci tanto assim. Me pergunto onde a minha mãe escondeu aquele troço. No pior dos casos eu teria de ficar com os pés do lado de fora, mas se acontecer é só cobrir com papelão.

— Oi, Sofia!

Eu me viro e encontro um homem correndo na minha direção. Não faço ideia de quem seja, mas ele corre e acena sorrindo, como se tivesse acabado de encontrar alguém que estava lhe devendo dinheiro. Olho ao redor, pra conferir se por acaso não era outra pessoa que ele estava chamando, e é quando uma buzina extremamente alta berra no meu ouvido e percebo que parei no meio da rua. O homem me alcança e me puxa pelo braço até a outra calçada bem quando uma moto passa tão rente ao meu rosto que posso sentir a jaqueta do senhor idoso raspar no meu nariz.

— Não pare assim no meio do cruzamento, é perigoso! — O cara bronqueia. Não o idoso, o que me puxou. Ele para no embalo do sermão irritado e franze tanto a testa que parece prestes a rachar a cara no meio. — Isso é um caranguejo no seu cabelo?

Gezebel, apoiada no meu ombro, balança as garras, ofendidíssima.

— Foi você que inventou de me gritar logo agora! — Eu grito, porque tem um zumbido ecoando dentro do meu ouvido por causa da buzina e as coisas que eu digo parecem distantes de mim. — Não que te importe, mas ela é uma lagosta e o nome dela é Gezebel!

— Eu estava atrás de você desde o começo da rua e você não percebeu, sua cabeça de vento! Preste mais atenção quando anda na rua ou vai acabar virando manteiga desse jeito!— Ele puxa minha bochecha enquanto dá sermão e finalmente alguma alavanca de memória dentro da minha cabeça é acionada e lembro que esse é Juliano, o namorado da minha irmã (que, aliás, ela gosta de chamar de Ruliã, enrolando a língua e fazendo um sotaque vergonhoso).

Faz tanto tempo que a gente não se encontra que quase não o reconheço, mas o cabelo grande e escuro amarrado em rabo-de-cavalo que o deixa parecendo um guerreiro medieval continua o mesmo e ajuda minha memória a funcionar. Além da mania de beliscar a bochecha dos outros.

— Isso dói, porcaria. – Eu esfrego a bochecha dolorida, torcendo pra que ele não tenha distendido algum dos meus músculos faciais.

— O que você está fazendo por aqui? – ele pergunta, cheio de interesse, e enche o peito de orgulho. — Ficou com saudade do tio gostoso e veio me visitar, não foi?

— Na verdade, eu estava tentando encontrar um mercado, mas acho que me perdi.

Ele desincha o peito e me olha irritado.

— Droga, Sofia, quando as pessoas incitam uma coisa como essa você deve concordar, senão o clima fica bem decepcionante.

— Não vou ficar rabiscada só pra agradar — reclamo.

— Tudo bem, já percebi que você é cabeçuda demais pra entender as normas sociais. De onde veio a lagosta?

Eu poderia contar a história inteira sobre Pipa, Oscar, minhas verdades erradas e sobre o meu enterro com open bar de salgadinhos que estou planejando para quarta-feira que vem, mas parece trabalhoso demais agora.

— O de sempre, sabe, mamãe lagosta e papai lagosta vão até o cartório dos crustáceos e abrem um processo de adoção legal em todo o reino do oceano...

— Pare de bancar a espertinha com os mais velhos – ele me interrompe e puxa minha bochecha outra vez.

— Paaara, você vai deixar minha cara parecendo um casaco de crochê alargado!

Eu percebo, além de que isso dói à beça, que não foi coincidência ter esbarrado logo nele. Juliano mora nessa parte da capital. Começo a reconhecer algumas ruas e prédios das vezes anteriores em que Giovana me arrastava pra vir para a loja de download de filmes daqui, porque queria esbarrar no seu Ruliã casualmente como as mocinhas dos romances estúpidos fazem.

— Você veio parar bem longe de casa. Tem certeza que não está tentando se encontrar escondida com ninguém? – Os olhos dele são de um castanho malicioso e sei que está tentando me provocar do mesmo jeito que as minhas tias nos almoços de família fazem. Só que, ao invés de perguntar dos namoradinhos, a tática de Juliano consiste em se insinuar e me levar a responder algo que tenha o Isaac no meio. Mas eu não vou cair nessa!

— Isso não tem nada a ver com o Isaac.

Merda, eu caí nessa.

— Não falei nada sobre ele – Juliano rebate, triunfante. — Hahaha, calma, não precisa fazer essa cara feia também.

— Não tô fazendo cara nenhuma — bufo.

— Bem, nesse caso acho que o problema é de nascença mesmo, sinto muito. Aliás, aonde o garoto se meteu? Vocês não estão sempre juntos? — Ele espia dos meus lados e por baixo de mim, como se Isaac pudesse estar magicamente escondido debaixo da barra da minha calça jeans.

— Não. — Por que TODO MUNDO tem que agir como se nós dois fôssemos malditos gêmeos siameses? — Não sou a sombra dele pra saber pra onde ele vai. E também não quero saber.

— Hm, entendi — assente, devagar. — Quer que eu te acompanhe até um mercado? Eu estava indo para o trabalho agora, mas tenho tempo. Do que você precisa?

— Gasolina, balas de café, naftalina, papelão. — Eu conto nos dedos e Gezebel resmunga faminta no meu ouvido. — Comida pra lagosta, talvez.

— Parece que está planejando algo bem divertido. — Ele ri com o mesmo tom de preocupação da minha mãe quando me viu pela primeira vez quicando as escadas de casa dentro da bolha anti-bactérias. — Ei, você está com fome? Que tal se eu te levar no meu trabalho pra comer alguma coisa, e se você ainda quiser passar no mercado, eu tiro um intervalo e te levo lá? Ou você pode ir fazer as suas compras e jantar em casa. Se eu lembro bem a comida da dona Raquel costuma ser muito nutritiva.

Sob a esperança de comida digerível meu estômago ronca alto como um filhote desesperado pedindo por socorro sem que eu possa evitar, o som gutural ecoando no espaço entre mim e Juliano.

— Eu acho que tenho tempo pra fazer uma visita... — digo, com o pouco da dignidade que me resta.

O namorado da minha irmã ri. Ele parece estar sempre sorrindo. Não sei como Giovana tem nervos pra isso. Andar do lado dele é como participar de um comercial de clareamento dentário.

— Imaginei que teria. Vem comigo. O pessoal do restaurante vai gostar de te conhecer.

Nós descemos a rua passando por bancas de download de jornal para aparelhos intravenosos, lojas de frutas enlatadas, pelo menos seis plaquinhas holográficas anunciando onde mora uma revendedora de corretivos da Veracio e por uma lavanderia especializada em trajes de banho de corpo inteiro, até que uma plaquinha brilhante como uma estrela aparece saltando pra fora da parede já dois blocos à frente. E quando eu digo brilhante eu quero dizer brilhante, mesmo. “O ESPACIAL – Salão & Restaurante” incendeia o céu escuro da noite, com luzes vermelhas piscando ao redor e o desenho iluminado de um foguete antigo embaixo, irradiando luz em tantos watts que fazem meus olhos quererem fugir para a escuridão protetora do crânio.

— Com o tempo você acaba se acostumando — Juliano garante ao meu lado, quando eu levanto a mão pra bloquear a vista e me defender dos raios opressivos. — Eu já quase não consigo sentir minhas retinas queimando.

— Isso não causa danos permanentes, causa? — pergunto, sentindo minhas pupilas dilatarem em níveis microscópicos. Ele contorce a boca, fingindo considerar a ideia, como sempre.

— Provavelmente. Mas não precisa se preocupar, você já me conheceu, não vai encontrar nada mais bonito nesse mundo — diz, abrindo um sorriso cheio de faíscas de luz, que competem com a iluminação da placa cegante à frente.

A placa d’O Espacial indica uma grande janela de vidro, onde se pode ver um salão cinza metálico repleto de lustres, mesas de aço cintilante que irradiam os raios luminosos das lâmpadas como um globo de espelho e pessoas bronzeadas de dentes e roupas ofuscantes sentadas aos pares e rindo muito de qualquer coisa. Tudo tão repleto de luz como um jantar de primavera dentro do núcleo solar. Começo a ficar zonza com toda essa iluminação agressora, meus olhos desejando ter perninhas musculosas para fugirem pela rua afora, mas Juliano não para ao lado da porta incandescente como o portal do inferno mitológico. Ele continua descendo a rua e para exatamente ao lado de um beco tão escondido pelas sombras do estabelecimento radiante que eu poderia passar ali mil vezes antes de sonhar que existia.

— Damas primeiro.

O beco é um contraste berrante ao restaurante e se parece com um portal para outra dimensão onde não existe absolutamente coisa alguma. Meus olhos estão sensíveis demais pra conseguir enxergar qualquer coisa lá dentro — ai meu Deus, talvez eu fique cega pra sempre!!! —, mas com um pequeno ajuste das pupilas consigo distinguir algo parecido com a silhueta de duas caçambas de lixo.

O lugar tem o cheiro do almoço da mamãe requentado pela quinta vez e misturado com os elixires de banho que Madame Marlene me recomenda de vez em quando para me livrar dos vermes de pesadelos. Ouço alguma criatura correr protegida pela escuridão, chutando uma latinha de alumínio no caminho e fazendo o ruído das suas garras arranhando o chão de cascalho. Talvez seja o primo do bicho que ficou entalado no banheiro do Sapão. Ou o Capitão Roedor recém-saído dos esgotos e me seguindo no seu plano sanguinário de vingança contra humanos irresponsáveis da família Veiga e máquinas de lavar roupa.

— Você não tem medo do escuro, tem? Vamos, vamos. — Juliano me empurra pra dentro do beco-portal-secreto e abre uma porta pesada de metal que eu não tinha visto no meio da parede de tijolos.

A porta abre pra uma cozinha barulhenta que provavelmente fica nos fundos do restaurante. Vapor quente bufa no meu rosto, como um espírito passando para dar um olá. Meus olhos, castigados pelos picos de emoções, temem o bombardeio da luz maligna novamente, mas, aqui, graças ao bom senso de um decorador humilde, as lâmpadas foram posicionadas em quantidade menos extravagante.

Uma manada de homens enormes como guarda-roupas e vestidos com aventais brancos pequenos demais para os seus corpos andam de um lado pro outro, com pisadas que tremem o chão, mexendo nos armários de aço das paredes ou carregando sacos gigantes cheios de uma coisa marrom. Eles são pelo menos dez vezes maiores do que tudo o que eu já vi na vida e preciso dobrar o pescoço pra achar as suas cabeças, pairando rente ao teto da cozinha.

Juliano entra e assovia com os dedos na boca, fazendo soar um apito alto o suficiente para atravessar o cômodo inteiro.

— Ei, pessoal! Essa é a Sofia, a irmãzinha da minha namorada! Se comportem e não arranquem pedaços visíveis dela, ok?! — Ele me dá um tapinha nas costas e me garante, com seu tom de voz que não me inspira segurança alguma. — Não se preocupe, eles são grandes, mas são umas gracinhas.

As cabeças dos gigantes se viram para nós. Seus rostos parecem uma escultura zangada feita em pedra de deuses antigos e cruéis. A definição de “gracinha” trocou de nome, comprou uma peruca, tirou passaporte e embarcou em um teletransportador para bem longe daqui, definitivamente. Eu faço um esforço enorme para tentar sorrir e parecer uma garotinha simpática e adorável, como sempre faço para a mamãe quando quero a chave do armário de vitaminas, mas meu rosto se estica como um plástico duro e os gigantes me encaram como se eu fosse um parasita nanico e assanhado que invadiu o seu território.

Todos aqui têm braços maiores do que a minha cabeça e sobrancelhas com mais pelo do que a puberdade me deu nas pernas. O uniforme deles parece prestes a estourar em cada um dos peitos musculosos. Acho que se um deles sequer respirar na minha direção eu vou voar até chegar nas montanhas dos monges com os seus superpavões mutantes.

Juliano passa por mim tão rápido que meus reflexos de repente enferrujados de atacante de futebol não conseguem acompanhá-lo e em segundos eu o perdi de vista dentro das nuvens de vapor da cozinha. Eu estou plantada no mesmo lugar, esperando a cabecinha morena e insolente de Juliano ressurgir e me tirar dali, quando tudo subitamente escurece, como se tivesse anoitecido dentro da cozinha. Eu olho ao redor, procurando se as lâmpadas por acaso pifaram devido ao esbanjamento de watts da fachada e só então percebo que aquela escuridão repentina é na verdade a sombra de um gigante parado exatamente na minha frente.

Cabelo vermelho salta da cabeça dele a pelo menos três metros acima de mim, e sinto seus olhos me perscrutando por cima de um saco de substância marrom viscosa que ele carrega e poderia soltar na minha cabeça e me achatar como uma pílula sublingual a qualquer momento.

— A namorada do Rolex. Existe? — ele grunhe, e apesar de estar tão longe, sua voz atinge meu ouvido numa lapada, como um trovão.

É um enigma? Uma charada? Uma senha pra ter acesso à cozinha? Mas o Juliano não me contou nada!

— A da ilha. Existe? — ele insiste, urgente.

Ai meu coração. O que eu faço? O que eu digo? A respiração do gigante sai em uma baforada grande como uma nuvem e estou quase concordando apesar de não entender nada — porque os argumentos dele parecem incríveis e quem é que vai discordar de um gigante?! — quando outra voz grave ressoa de dentro da cozinha e o gigante de cabelos vermelhos se vira para lá.

— Eu te falei, Pimenta. — O gigante que usa um chapéu branco amarrado na cabeça responde, enquanto joga uma panela do tamanho de uma geladeira debaixo da torneira e enche de água. Ele tem metade do rosto retorcido, como chiclete mastigado. — Pode ir pagando minhas vinte pratas.

O gigante de cabelos vermelhos se volta outra vez pra mim, com o rosto de pedra agora contorcido em uma careta frustrada, e quase começo a pedir desculpas, porque apesar de não ter falado nada tenho quase certeza de que é culpa minha.

— Giovana. É realmente mulher? Porque senão eu não tenho que pagar nada!

Giovana, Rolex, as palavras ficam dando voltas na minha cabeça buscando fios de conexão enquanto eu assisto um dos gigantes fechar uma porta frouxa com uma cabeçada e afundar o armário na parede. Eu conheço alguém com esse nome, não conheço? Ah, claro! Aquela criatura que me obrigam a chamar de irmã! Eles chamam o Juliano de Rolex? Será que significa guerreiro miúdo e insolente na língua dos gigantes?

— E-ela... É-é, sim... Pelo menos o veterinário garantiu que era fêmea.

O corpo imenso na minha frente treme ligeiramente e solta arfadas barulhentas. O gigante de cabelo vermelho parece prestes a atirar o seu saco de toneladas em cima de mim, por dar uma resposta atrevida, e me arrependo pelo tamanho anormal da minha glândula de criatividade rebelde, mas não o faz. Grunhidos altos ressoam pela sua boca e eu demoro a perceber que, na verdade, ele está rindo.

— Engraçada — ele diz pra mim, o que me faz pensar que não são muitas as pessoas que se atrevem a dar uma resposta engraçadinha pra um cara desse tamanho.

— Que bom que está feliz, Pimenta, agora me passe as vinte pratas para eu ficar também! — O gigante de chapéu exclama. Os outros homens dentro da cozinha ressoam gargalhadas pesadas e o gigante de cabelo vermelho para de rir e volta pra cozinha, resmungando chateado e pisando tão forte que o chão treme debaixo dos meus pés.

O som da cozinha funcionando junto das risadas dos gigantes diminui o tom agressivo e hostil da atmosfera aqui dentro. Tão ligeiro quanto quando sumiu, Juliano reaparece ao meu lado, beliscando a minha bochecha, agora vestindo um uniforme azul e cinza com o emblema do restaurante nas costas e uma gravata borboleta brilhante no pescoço.

— Ei, ei, chega de falar mal da sua irmã. — Ele solta minha bochecha dolorida e se vira pra cozinha, encaixando na cabeça o capacete de astronauta. — Cachorro Louco, você pode preparar alguma coisa para a Sofia comer? Nada muito bom, não queremos acostumá-la a vir comer de graça. Mas acho que isso não é problema para você.

Dessa vez, todos os gigantes tremem seus músculos colossais e a cozinha explode em gargalhadas estrondosas. Exceto por aquele que provavelmente é o Cachorro Louco, um sujeito enorme, como todos os outros, e cheio de verdades rabiscadas subindo pelos seus punhos até a garganta, como se fossem argolas entrelaçadas de uma corrente, além de uma carranca séria de quem parece prestes a abrir o seu pescoço, quebrar no meio uma ambulância ou empurrar no meio da rua uma senhora idosa caolha.

— Continue abusado desse jeito e qualquer dia ele vai cortar suas bolas para servir com sorvete, Rolex. — A voz extremamente rouca de algum outro gigante que não consigo identificar rompe entre as gargalhadas.

Juliano rebate, cheio de fôlego para se fazer ouvir lá nos quatro metros acima onde ficam as suas orelhas.

— Ora, Cachorrão, se quer tanto me provar, bastava pedir com jeitinho!

As gargalhadas se repetem e retumbam com tanta ferocidade que sinto as paredes tremerem, as ondas sonoras vibrando contra o meu corpo e me fazendo tremer como um prato de gelatina. Veias grossas como o encanamento de água surgem pelo pescoço de Cachorro Louco, por baixo dos rabiscos. Em um movimento brusco e ágil, ele atira uma faca do tamanho de uma espada no meu futuro-falecido cunhado, mas Juliano desvia com a facilidade de um ginasta e a faca de cinquenta centímetros fica presa na porta de vai-e-vem da cozinha para o salão. Todos os outros continuam rindo, então imagino que isso aconteça sempre por aqui, e tento com todas as minhas forças ignorar o instinto de sair correndo e me esconder junto da criatura misteriosa dentro de uma das caçambas de lixo do beco escuro.

— Controle seus hormônios, por favor, Cachorrão, nós temos visita! — Juliano implora, dissimulado. Dessa vez ele adentra a cozinha e me indica com um gesto de cabeça para que o siga. Passamos por entre as nuvens de vapor e as ondas de risadas que ainda retumbam dos cozinheiros corpulentos até que Juliano puxa uma cadeira das que ficam de reserva empilhadas no canto da cozinha e me apresenta com um floreio. — Aqui, madame Sofia, mesa especial para a senhorita. No melhor local de todo o restaurante, obviamente. Pimenta, traz uma mesa aqui pra mim? — Ele grita, quando o gigante de cabelo ruivo passa do nosso lado.

— Por que te chamam de Rolex? — Pergunto, depois de me sentar, quando meu sangue descongelou o suficiente pra deixar minhas cordas vocais funcionarem. É incrível como Juliano age confortável em meio a sujeitos três metros mais altos e claras tentativas de homicídio.

— É um apelido idiota por causa do meu trabalho como vendedor de joias usadas no canal 7. Acho que você não chegou a ver. É uma pena. Eu ficava uma delícia em HD.

Na verdade, eu me lembro do Juliano em um terno amarelo apresentando joias e abajures penhorados na televisão, porque Giovana só queria assistir aquilo e nós lutávamos como samurais pelo controle remoto. Preciso me lembrar de usar essa história como chantagem algum dia.

— Os apelidos dos outros caras também têm bons significados. O Pimenta, por exemplo — ele diz, bem quando o gigante ruivo que me deu as boas-vindas passa pela porta carregando uma mesa redonda imensa, brilhante como um espelho novo. — Ele é noivo de uma dançarina mexicana. Observe. — Ele se ergue e grita para o gigante — Como vai a madame, Pimenta?

Pimenta fica vermelho até a raiz do cabelo e solta a mesa com um estrondo na minha frente, por pouco não amputando meus pés.

— Quente, como sempre — ele sorri, envergonhado, com o rosto fervendo em um vermelho-vivo.

— Temos o Montanha, também – Juliano aponta com o queixo para um gigante barbudo e de pele escura enquanto tira um pano do bolso do uniforme e passa sobre a mesa despejada. — Ele foi criado até os vinte anos nas montanhas do Leste Ocidental. Os seus pais morreram devorados por leões do mato quando ele era pequeno, mas ele manteve a fazenda da família e cuidou dos nove irmãos até que a Elite do Governo tomou as suas terras.

Nove irmãos! É como se fossem nove Giovanas! Alguém dê um prêmio pra esse homem!

Juliano conta sobre o Aranha, o gigante com o chapéu de chefe amarrado na cabeça e metade do rosto deformado, e sua paixão por insetos que o fez entrar no laboratório incendiado onde era zelador para salvar o aquário de tarântulas; sobre o Cometa, o gigante de tapa-olho, que está terminando o doutorado em astronomia; e sobre o Grande T, o gigante com uma trança loira descendo até a cintura como uma escada de mármore, que teve trigêmeas no verão passado: Tânia, Talia e Tamara.

Conhecer as suas histórias faz com que a taxa crítica de pânico dentro do meu corpo diminua consideravelmente e eu consigo até respirar normalmente, sem sentir minha pele eriçar a cada estrondo de panelas que corre pela cozinha. Eu sei que é errado julgar um antibiótico pela embalagem do genérico, mas confesso que às vezes acabo fazendo do mesmo jeito.

— E o Cachorro Louco, é claro... — Ele começa a falar sobre o cara esquisito e eu não consigo imaginar qual seja a história doce e profunda por trás do apelido de presidiário que não remeta a múltiplo homicídio culposo de uma família de cachorrinhos inocentes, mas um garoto o interrompe no meio do caminho.

— Rolex, tá achando que tá de folga? — Um outro garçom de sardas mete a cara para dentro das portas de vai-e-vem e interrompe a biografia da cozinha, apressado. Ele nota por um segundo a faca presa ali, mas prefere não dar atenção e continua: — Pedido um na mesa sete, quinze e trinta na treze e três do oito na dezenove, com café, pra já.

— Agora mesmo — Juliano diz e acena com a cabeça pra mim. — Eu volto logo. Ei, Cachorrão, toma conta dela, sim?

Eu tento gritar que ninguém precisa tomar conta de mim, claro que não, eu vou ficar imóvel e sem dar problema, quem sabe fico até sem respirar, mas Juliano me dá as costas e some dentro do salão.

Um bafo quente sopra no meu pescoço e, quando me viro, Cachorro Louco está bem atrás de mim, segurando um cutelo do lado do meu rosto.

Misericórdia.

A minha alma deixa o meu corpo por alguns segundos no susto. Posso ver meu reflexo e a face da morte refletidos na navalha afiada. É o fim. Adeus, família. Minha morte não vai ser patológica, mas proposital. Tantos sonhos não realizados, tantos cardiologistas que eu nunca conheci, tantos tratamentos com eletrodos que jamais vou poder experimentar!

— Jantar — ele diz, quando na minha cabeça um coral já cantava o segundo refrão de Ave Maria enquanto meu caixão de mármore branco cheio de rosas era baixado em uma cova rasa.

Ele quer me jantar! Ótimo, além de louco o sujeito também é canibal. Esse restaurante realmente deveria rever o pessoal que contrata. Será que eu tenho gosto de amoxicilina?

— Jantar — ele uiva, mais pausadamente, mostrando dentes ameaçadores amarelos e afiados.

Finalmente percebo que ele não está olhando pra mim, mas para Gezebel, empoleirada fragilmente no meu ombro. O cenário todo muda, agora com um caixão de lagosta sendo baixado e eu de luto chorando e atrapalhando as criancinhas do coral.

— Não! —Pulo da cadeira e arranjo forças pra gritar de algum lugar da minha alma quando entendo o que ele e seu cutelo enorme de estimação andam cobiçando. — Gezebel não é pra jantar!

O gigante mal-encarado continua com o olhar fixo pesando sobre a minha cabeça, inabalável.

— Jantar – ele rosna.

Gezebel desce do meu ombro, medrosa, captando o cheiro da morte com suas antenas aguçadas, e eu a abraço contra o peito.

— Você não pode jantar a Gezebel! Ela é uma lagosta sobrenatural! Ela tem direitos!

E se eu não devolver essa lagosta até amanhã Pipa vai usar meu cadáver como desentupidor de sanitários!

— Jantar.

Eu ando pra trás até que minhas costas batem com a parede. Não tenho pra onde fugir.

— Não toca na Gezê! Ela tem uma vida pela frente! Ela tem sonhos! Ela nem viu o especial de natal da TV ainda!!!

— Jantaaarrrr — O seu braço da largura de uma árvore brande o cutelo. Toda a vida de Gezebel passa diante dos meus olhos. Uma vida bem curta.

Antes que um assassinato aconteça, o gigante moreno e barbudo que Juliano apresentou como Montanha aparece e desfere dois tapas pesados no enorme braço de Cachorro Louco.

— Calminha, Cachorrão. Não é dessa vez que você vai poder fazer comida de verdade — ele fala, carismático. Seu gesto amigável seria capaz de derrubar um ônibus espacial, mas o outro gigante sequer chegou a se mover.

— Jantar? — Cachorrão grunhe outra vez, olhando da lagosta para mim, de mim para a lagosta, e, posso jurar, parecendo desolado.

— Vá para a sua estação, meu jovem, vá, deixe que eu cuido das coisas por aqui.

Cachorrão fica mais algum tempo de olhos fixos em Gezebel, até que finalmente desiste e, pro meu alívio e sobrevivência de Gezebel, volta pro seu lugar com pisadas fortes e birrentas, fazendo cair algumas das panelas penduradas na parede.

— Muito obrigada, senhor da Montanha — eu digo, de olhos marejados, meu coração ainda batucando tanto dentro do peito que ecoava para o exoesqueleto da lagosta.

— Não por isso, realmente. E desculpe pelo Cachorrão, garotinha. Faz muito tempo desde que tivemos comida de verdade por aqui. O garoto não pôde evitar ficar animado.

— Vocês fazem comida de mentirinha?

— Quase isso, garotinha. — Montanha faz um gesto largo pra cozinha, desanimado. — Essas coisas que mandam a gente cozinhar, isso não é comida de verdade. Tudo sem graça, sem gosto. Faz bem pra isso, faz bem praquilo. Eu te digo que vivi em um tempo em que as pessoas comiam porque era bom comer. Comida era gostosa e cozinhar era um prazer. Uma verdadeira arte — ele discursa, cheio de entusiasmo.

Gezebel está ficando meio receosa com o andar da conversa, mas eu sinto a necessidade e preciso perguntar, por via das dúvidas.

— O que é “comida de verdade”?

Será que eu andei comendo mentira esse tempo todo? Não me admira que meu corpo acabou bugado.

— A boa e velha carne assada, é claro! — Montanha responde, com gosto. Alguns dos outros da cozinha balançam a cabeça, censurando. “Lá vai ele de novo”, um deles comenta rindo, mas Montanha faz questão de ignorar e continua. Aponta pra porta do salão — Esses bodes velhos aí dentro, eles não sabem o que estão perdendo. Você não sabe o que é prazer até encostar na boca uma carne macia e suculenta, temperada e assada na brasa. Ah, estalando de pronta, com alho e cebola... Me sobe um arrepio nesse corpo velho só de lembrar.

A ideia é tão estranha que parece brincadeira. Principalmente depois da lei que a Elite do Governo decretou de que tudo o que tenha um rosto pode ser considerado humano e deve ser tratado como tal. Por acaso, os peixes e outros crustáceos como a Gezebel — a lagosta, não a minha vizinha — ficaram de fora da legislação. Porém, há casos como o de uma mulher das ilhas do Sul que lutou na justiça para adotar um peixe dourado como filho e conseguiu.

Apesar disso, Juliano disse que Montanha cresceu dentro de uma fazenda afastada da capital e talvez seja assim que as pessoas vivam por lá. Como naqueles documentários da TV a cabo. Eu tento imaginar minha prima Clarice, a vaca ruiva que minha tia adotou, enfiada dentro de um forno pra ser servida no jantar. Que ideia besta. Nem ia caber.

— Hoje em dia nosso trabalho é só esquentar água e misturar com aquela gororoba fedorenta. Uma vergonha — o barbudo lamenta, cheio de tristeza. — Mas não deixe a amargura de um velho te tirar o apetite. Pode escolher, garotinha. Deve estar com fome. Vai querer as pílulas ou os quitutes?

Montanha passa pra mim o cardápio de brochura do Espacial — que, não surpreendentemente, emana luz própria como uma pequena estrela cadente capturada — e finalmente entendo o que ele quer dizer. Não é só o nome e os uniformes que têm temática do espaço sideral, mas o cardápio inteiro é inspirado nas refeições dos astronautas. Na única folha do menu estão listadas pílulas de vitaminas e quitutes nutricionais especiais, umas esponjas brancas com cheiro de ovo que funcionam para hidratar a pele ou promover bronzeados. Esse é um daqueles restaurantes estéticos extravagantes que a minha mãe sempre quis visitar.

Daqui da minha mesa especial dentro da cozinha, finalmente percebo, através das nuvens de vapor, os panelões cheios de gororoba colorida, que precisa dos braços enormes dos gigantes pra ser mexida e que caem feito purê borrachudo nos pratos que vão ser servidos. Isso ou um prato com três aspirinas verdes e um pedaço de folha de árvore pra enfeitar.

A imagem do quitute nutricional molenga e borrachudo me revira o estômago. De repente a comida da minha mãe nem parece ser tão ruim assim. Eu desvio o olhar da panela onde alguém despejou água fervente e a esponja marrom-pálida nutricional para fortificar unhas cresce e transborda como um monstro de vômito tentando fugir.

— Não estou com tanta fome assim — eu empurro o cardápio para longe, ignorando o ronco poderoso do meu estômago delator que ressoa como um solo de bateria furioso.

— Eu te entendo, garotinha. — O barbudo acena para as panelas com a cara amarrada de quem assistia uma atrocidade ser cometida. — Se eu ainda tivesse as minhas terras, você poderia passar lá para um almoço. Um almoço de verdade. Com comida de verdade — garante, saudoso. — Pra você e esse seu bichinho esquisito, também.

— Acho que a Gezebel iria preferir comida de verdade que não sacrificasse nenhum vizinho de espécie — eu digo, vendo Gezebel beliscar o ar ofendidíssima pelo adjetivo indelicado dirigido à sua beleza exótica.

Montanha me encara com seus olhos escuros lá do alto da sua escultura de cabeça. Eu tenho a impressão de senti-lo sorrir, mas é realmente difícil de dizer, com toda a barba ao redor.

— Gosto do seu jeito de pensar, garotinha. Vou ver o que posso preparar para você. Vem, Cachorro, pare de encarar a pobre lagosta ou ela vai ter pesadelos com a sua cara feia.

Cachorro Louco continua parado no mesmo lugar, dentro da sua estação de facas — de quem foi a ideia de colocar uma pessoa com insanidade comprovada no nome logo ali? — olhando feio pra Gezebel e grunhindo. Aposto que se Gezebel tivesse língua estaria lhe mostrando agora, triunfante.

O movimento na cozinha é contínuo e animado. Panelas de água fervente são jogadas em baldes com a pasta nutricional e janelas são abertas pra levar embora o cheiro de creme de ovos azedo que as gororobas soltam. Os gigantes circulam de um lado pro outro, fazendo parecer que a cozinha é minúscula e os armários são apenas de brinquedo. No meio deles, Juliano e os outros garçons passeiam equilibrando pratos vazios e quase vazios em bandejas num entra-e-sai infinito pelas portas.

Juliano sempre desvia de caminho para implicar com alguém, pra soltar algum comentário que faz todos rirem ou simplesmente pra perturbar a rota dos outros. Ele está sempre sorrindo, desde que o conheci.

Giovana e Juliano estudavam na mesma escola e se conheceram sem querer no meio de uma briga. Minha irmã estava socando os bofes de um garoto que a chamava de estúpida por ter lembrado o professor sobre o dever de casa — obcecada por estudar como era, nunca entendi como nós duas podemos ser da mesma família —, mas Juliano e outros garotos ajudaram a separar a briga. O garoto a xingou quando estavam a levando embora, Juliano voltou e lhe acertou um chute no estômago. Giovana disse que ele fez tudo sem deixar de sorrir. Depois disso, houve muitos “encontros casuais” em que Giovana me arrastava pra esse lado da cidade e me obrigava a ficar com ela “espontaneamente” plantada por horas vendo as mesmas fitas para download da mesma loja de vídeos até que ele passasse e eles “por acaso” se “esbarrassem” como ela tinha calculado a noite inteira.

Os dois namoraram, Giovana começou a faculdade de medicina, Juliano começou a de história da humanidade, legislação silvestre, metereologia galáctica e educação física virtual e desistiu de todas. Um ano atrás, Giovana recebeu a oportunidade de terminar a faculdade do outro lado do mundo e começar a trabalhar por lá, com todo o seu exército de péssimas secretárias que se recusam a prestar um atendimento expresso em caso de emergências familiares.

Nos últimos tempos, Juliano têm pulado de empregos a cada dois meses, gastando quase tudo o que recebe com ligações interurbanas pra minha irmã e guardando o que sobra em um pote para o que ele chama de “A Grande Coisa” - uma coisa bem grande que ele se recusa a me dizer o que é. Eles não se vêem há quase quatro meses. Mas ele continua sorrindo. Isso me irrita profundamente.

Será possível que ele não sente nenhum pouco de saudades da minha irmã? Será que ele nunca fica chateado por não ter ela por perto? Ou que eles ficaram separados por tanto tempo que já se esqueceram um do outro, e só continuam isso de namoro porque é mais conveniente do que aceitar que tudo está arruinado?

— Pronto, acho que já posso tirar algum tempo pra mim — Juliano puxa outra cadeira das que estão empilhadas e se senta. Tira o capacete da cabeça com um suspiro cansado, como se tivesse acabado de terminar um dia lavrando um acre de terra no pantanal das antigas geleiras.

— Você trabalhou menos de dez minutos — eu digo. Gezebel concorda.

— Mais vale dez minutos de trabalho eficiente do que oito horas de trabalho malfeito — ele pisca pra mim e me pergunto se também consegue enrolar o seu chefe com fetiche por lâmpadas desse jeito.

Uma tigela fumegante aparece na mesa à minha frente, atirada com tanta força que um pouco do conteúdo esparrama pela mesa, escorrendo em uma poça. A coisa que borbulha dentro é verde e suspeitamente viscosa, como um dos cremes de tratamento facial que Giovana costumava passar pra ficar menos feia.

— Aqui está o seu prato — Montanha declara, com um sorriso todo orgulhoso e pisca pra mim, tão delicado quanto uma avalanche. — Não precisa se preocupar, garotinha, ninguém bateu as botas para que ele acontecesse.

— Poxa... obrigada — eu digo, receosa, e aceito a colher que ele me estende, parecendo uma farpa metálica presa no meio da sua mão gigantesca.

A coisa verde barrenta me encara de volta e um pedaço de alguma coisa preta emerge para a superfície, boiando como um navio seminaufragado. Montanha está de guarda do meu lado, provavelmente esperando que eu acolha com carinho e amor o seu feito culinário. No que foi que eu me meti? De qualquer forma, não pode ser pior do que a comida da minha mãe... Pode?

Eu me armo com a colher e apanho um bocado da água misteriosa, como quem se entrega ao carrasco. Antes de conseguir despejá-la na boca um último pensamento me vêm de que eu não atualizo meu testamento há pelo menos três dias. Se essa sopa, por acaso, além de obscura também for nociva, a pobre coitada da Gezebel vai ser largada ao vento, sem nem uma lata de banana enlatada pra se sustentar.

O que entra em contato com a minha língua, o que se entranha com a essência do meu ser, pode ser descrito, muito justa e fielmente, como nada menos do que fantástico. O caldo verde tem um gosto salgado levemente agridoce tão delicioso que me faz arrepiar inteira. Ele desce morno pela garganta, como um abraço carinhoso no meu intestino, acelerando meu coração.

Eu estou apaixonada por esse prato de comida.

— É incrível! — Eu deixo escapar, sendo torturada por um debate interno entre virar esse prato goela abaixo ou colocá-lo em um altar e endeusá-lo pelos séculos que vierem.

— Com esse tom de surpresa você me ofende — o barbudo remói, com seus olhos escuros brilhantes de animação. — Não estava esperando outra coisa do tio Montanha, estava?

— Ei, Montanha, desde quando você faz pratos especiais pra visitas? Por que eu nunca ganhei um? — Juliano reclama, com uma mão sobre o peito, fingindo estar de coração partido.

— Quando você ganhar um rostinho adorável e defender a vida de um bicho feio chamado Gezebel eu penso no seu caso, Rolex.

Montanha sai gingando com toda a sua enormidez para o outro lado da cozinha. Gezebel não parece muito feliz com o comentário, mas vai contra os meus princípios discutir com qualquer sujeito que possua habilidades médicas ou culinárias em níveis tão esplêndidos. Eu volto minha total concentração para comer o mais rápido possível a minha sopa verde, apesar da conclusão assombrosa de que quanto mais rápido eu comer, mais rápido ela vai acabar, pairar sobre a minha cabeça.

Tantos anos de má alimentação e de convivência com um esfomeado como o Isaac me fizeram desenvolver o constante pavor de um minuto de descuido com assopros ou mastigação significar ter minha comida furtada, por isso, eu sugo tudo com um aspirador de pó. Isaac sabe ser ágil como um maldito ninja. Faz dois anos que não consigo comer um rolinho de pão de banana com chocolate sozinha. Mesmo assim, a última e única vez só foi possível porque Isaac estava com a perna quebrada e eu me escondi no telhado de casa pra comer. Ele ficou preso na janela do meu quarto enquanto tentava me alcançar. Ainda não sei como conseguiu chegar tão longe.

Não importa em que canto eu me esconda, ele sempre me acha, graças a algum tipo de sensor sobrenatural delator de alimentos. Não adianta nem trancar as portas, já que ele aparentemente sabe se metamorfosear em um acrobata desossado e passar por qualquer janela ou buraco minimamente disponível.

Agora que ele vai viajar, talvez eu possa finalmente terminar de comer alguma coisa sozinha. Vou poder almoçar sozinha, também. E fazer mais um monte de coisas sozinha. Por mais um monte de tempo. Como Juliano, depois que a minha irmã foi embora...

— Ei, Sofia, dá pra comer mais devagar? — Juliano fala do meu lado, preocupado. — Se você engolir a colher vão descontar do meu salário.

Já faz quatro meses desde a última vez que Giovana pôde vir em casa nos visitar. Mesmo assim, ela só ficou dois dias, porque um garoto lá das ilhas do Sul ficou com coceira ou coisa parecida e uma das suas secretárias insuportáveis disse que era um caso grave e que ela precisava voltar. Conversar mesmo por telefone ou por internet também é difícil, já que a minha irmã parece estar sempre ocupada demais com a sua vida nova.

O relacionamento desses dois volta a pipocar na minha cabeça, como um problema de matemática espacial que não faz sentido algum. Será que Juliano e a minha irmã ainda se esforçam para se falarem, ou eles já não se importam mais em ficar um longe do outro? Será que o Juliano nunca teve medo de que quando ela voltasse, ela estivesse diferente demais para que ele pudesse fazer parte da vida dela? Ou... Que ela simplesmente acorde um dia e tenha se esquecido dele?

— Você ainda fala com a Giovana?

Juliano me encara por uns longos segundos nitidamente tensos e constrangedores, até cair a ficha de que não fui eu quem fez a pergunta.

— Ah... Claro. Às vezes — respondo, remexendo os pedaços escuros da sopa verde com a colher.

A resposta flutua pelo espaço entre nós dois. Parece incompleta, mas não tem muito o que eu possa dizer sobre o telefonema de hoje sem ser levada a contar tudo sobre a verdade errada nas minhas costelas e minha recente luta por sobrevivência. Toda conversa com Juliano costuma ser um campo minado.

Estranhamente, ao invés de rebater imediatamente como de costume, ele demora antes de prosseguir.

— Então, ela... — Juliano pigarreia e passa a mão pelos cabelos, puxando o rabo-de-cavalo pra frente e olhando para as pontas do cabelo numa falsa descontração. — Ela falou alguma coisa sobre mim? Tipo... Qualquer coisa? Algum recado ou... Qualquer coisa, mesmo?

Ele me encara, definitivamente ansioso. Eu não me lembro de alguma outra vez ter visto Juliano tão hesitante quanto agora. Tento ajudar e pensar em alguma coisa que o conforte — a Gi realmente falou alguma coisa sobre ele mais cedo enquanto me despachava pra morrer sozinha, não falou? — mas antes que eu consiga recordar o telefonema dessa manhã, ele me interrompe.

— Ok, eu admito, isso foi meio esquisito. — Juliano abre um sorriso sincero e desconfortável, meneando a cabeça. — Foi mal por te perguntar essas coisas constrangedoras, mas é que com o restaurante à noite e o trabalho nas corridas de dia, os nossos horários andam difíceis de encaixarem. Já faz um tempo que eu consegui falar por mais de um minuto com ela. Mas vou dar um jeito — ele garante, na sua imagem sorridente e confiante de volta.

— Você participa de corridas?

A informação é nova. Não consigo imaginar o traseiro convencido dele dando voltas por aí usando nada além da tintura corporal esportiva. Na verdade, eu até consigo, mas a imagem é tão horripilante que faz meu cérebro resetar os processos e me dá ânsia de vômito.

— Eu narro as corridas — ele conserta, como um professor indignado, enquanto eu muito sutilmente escondo um arroto de revolta gástrica. — Tudo para conseguir dinheiro para A Grande Coisa. É claro que eu ganharia muito mais se me pintasse e desfilasse pela pista, mas a sua irmã vetou a mera possibilidade da ideia. Eu tentei convencê-la de que não podia ser tão egoísta assim, sabe, quando você é dona de tudo isso — ele faz um gesto exagerado, apontando o corpo de cima a baixo — tem de aprender a dividir. Mas, nah. Sabe como a Giovana é difícil de compreender a nudez artística.

Juliano termina seu discurso exibicionista pescando do meu prato os alimentos não identificados e flutuantes — sem devida permissão, obviamente — e os atirando para o alto para pegar com a boca, com o sorriso na cara que Isaac costuma fazer quando está satisfeito com a própria piada. A qualidade acadêmica do seu narcisismo nem mesmo me impressiona mais.

— O que isso de “A Grande Coisa”, afinal? Por que você precisa de tanto dinheiro assim? Você não vai comprar uma das ilhas do sul, vai?

Desde que largou a terceira faculdade — ou foi a quarta? Alguma com bastantes números — Juliano começou a se ocupar com empregos como um viciado em jogos eletrônicos de azar terrivelmente endividado. Ele provavelmente já passou duas vezes por todos os cargos existentes na economia da capital, e ainda assim se recusa a pagar meu kit muito necessário com 30 bombinhas de ar — nunca se sabe quando eu posso sofrer um surto respiratório e ameaçar sufocar até a morte, além de que as bombinhas estampadas com borboletas são uma gracinha.

Sempre que alguém pergunta pra onde vai todo o seu salário ele menciona “A Grande Coisa”, sem falar exatamente o que é. É o suspense mais longo que persegue a minha vida, fora de onde vêm os bebês e qual a real profundidade em termos métricos do estômago do Isaac.

— Uma coisa. Bem grande — ele responde, como sempre, achando muita graça da minha careta frustrada. — Você vai ver, se tiver sorte. Mas a ideia da ilha é bem legal, também. Vou pensar nisso.

O otimismo de Juliano e o seu maldito sorriso constante me irritam profundamente. Por que ele continua com essas ideias estúpidas, mesmo sem ter a Gi aqui? Continuando a vida, fazendo planos sozinho, é como se ele não sentisse falta da Giovana nem por um minuto. Pior, é como se ele não pensasse nela de verdade. Como se já tivesse esquecido o seu rosto e o nome fosse só algo divertido que vez ou outra vêm à tona.

— Por que você insiste nessa bobagem toda ainda? — Eu remexo a sopa verde, empurrando para o afogamento os pedaços de coisas escuras que cismam em voltar à superfície. — Relacionamentos à distância são idiotas. Você sabe, a Gi pode ser uma pessoa completamente diferente quando ela voltar. Pode ser que ela tenha mudado tanto que ela não goste mais de você. Ou que a vida nova dela não tenha tempo pra você. Talvez ela nem mesmo lembre mais da sua cara.

Eu me sinto estúpida por estar tão frustrada e principalmente por soar tão cruel, mas não posso evitar. As palavras saem de mim em uma enxurrada grosseira e suja, como um cano de esgoto quebrado.

— Talvez ela não seja mais quem você conheceu, talvez não seja nenhum pouco como você se lembra. As pessoas mudam, sabia? Então por que continuar perdendo tempo? Qual o sentido disso? A sua devoção, todo o seu esforço, tudo vai ter sido completamente inútil, e você vai terminar sozinho e se sentindo um idiota infeliz. Não é? Ela poderia estar com outra pessoa agora mesmo, não poderia? Você nunca saberia de nada. Ela pode já estar apaixonada por outra pessoa e não tem nada que você possa fazer sobre isso, porque ela esta lá do outro lado do mundo e você tá preso aqui sozinho com os seus planos idiotas.

A colher se solta da minha mão, ou talvez eu tenha largado ela, produzindo um estalo alto quando bate na porcelana da tigela. Por longos instantes, aquele som repercute parecendo errado entre nós dois e só então percebo que Juliano me encara assustado, como se eu estivesse possuída por um download ruim.


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Notas finais do capítulo

Vocês não fazem ideia de quanto esse capítulo ficou comprido! Tive que cortar e mesmo assim, tá gigantesco. Mais que o dobro dos outros. Vou me esforçar para fazer coisas mais práticas, podeixar. (MENTIRA VO NADA LEIAM TUDO MUAHAHAHA) Sinto muito pelo atraso novamente, foram falhas técnicas que eu tenho certeza que todos perdoarão afinal o espírito da bondade de papai noel ainda está entre nós. Muito obrigada por estarem aqui, lendo essa história absurda e acompanhando a doida da Sofia e imaginando o que diabos essa garota vai aprontar a seguir. Muito, muito obrigada mesmo, eu tenho recebido comentários lindos nessa história, e se pudesse ia na casa de cada um de vocês pra dar um chocottone e um beijão indecente nessas bochecha gostosa. Boas festas pra vocês, que sua virada do ano seja maravilhosa quer você passe no vuco vuco ou dormindo feito um filhote de panda. Que 2015 seja um ótimo ano e vocês sejam sinceros com seus próprios corações (não banquem a sofia abç). Até, pimpolhos.



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