_Um milhão e vinte e sete, um milhão e vinte e oito...

Contando, contando, contando! O tempo passa, discorre, muda, transforma... E eu aqui.

Presa.

Sono eterno: isso seria uma benção. Sonhos, por mais aterradores, seriam melhores que o nada.

Um nada profundo, insano, amedrontador.

Pesadelos, porque não me assolam? Prefiro-os aos demônios (tão humanos) da minha realidade.

Morte, porque não me carrega? Traspasse esse escudo e leve-me consigo.

Podes tirar-me do vazio de minha existência? Tendes compaixão de minh’alma e, quem sabe, tamanha bondade até mesmo devolva a tua.

INSANA. INSANA. INSANA.

Faço preces até mesmo à morte, numa vã esperança...

Um, dois, três... Cem, duzentos, trezentos... Mil anos presa num corpo petrificado.

Meu corpo maltratado, abusado, sofrido e imutável. Nem cicatrizes para marcar a dor, nem rugar para mostrar o tempo. Enojo-me de mim mesma por vezes mas lembro que sou o melhor que já tive. Não encontrei bondade, não encontrei amor em canto algum. A fé está sendo perdida. Quem creria numa história de feitiços vivendo em um mundo ateu?

_Cinco milhões e oitocentos, cinco milhões e oitocentos e um...

Que dia é hoje? E de que mês? Está menos frio, me parece primavera. Ou seria verão?

Talvez até minha percepção esteja comprometida. Estou enjoada dessa contagem inútil de números. E o tempo não passa, não passa, não passa.

Será que estou realmente viva? Será que morri e não senti? Não tem nada do outro lado?
Tum, tum, tum.

São batidas. É meu coração. Estou viva.

VIVA, MORTA-VIVA.

_Um, dois, três, quatro...

Reiniciando a rotina da qual estou farta.

A morte não veio e muito menos a salvação.

Alguém me enxerga? Alguém me sente?

Socorro, eu imploro!

Meu espírito chora e sangra. Escorre e se esvai.

Inutilmente pinga e não acaba.

DOR. DOR. DOR.

Essa dor de um vazio que me assombra.

Viver no escuro. Sem movimentos. Sem enxergar.

Autorizada a raros passeios numa vã tentativa de encontrar alguém.

Mas me temem, me exorcizam. Recusam-se a ouvir uma alma perdida.

LUA DE SANGUE.

Hoje é meu dia. Eu sinto.

Sinto desgrudar-me do meu corpo, sem tato agora, mas em breve com visão.

Hoje tento, mais uma vez, achar a liberdade.

Hoje tento me livrar dessa maldição.

Maldita seja quem me colocou aqui.

Do negrume passo a ver luzes. Céus, quando foi a última vez? Há quantos anos?

Formas começam a se contorcer perante minhas vista. Meus sentidos estão aqui novamente.

É uma sala, a mesma sala, a mesma mobília da última vez.

Olhos escuros, tão escuros que me encaram, me fitam, me desnudam.

A minha imagem enjaulada em tinta, quase tão morta e tão viva quanto eu.

Pinceladas na tela revelando tão pouco, revelando demais.

Ele sente mais que outros sentiram.

Aquela inútil esperança que tento matar começa a subir e parece me sufocar.

São vários pares de olhos que me veem agora. Curiosos, desconfortáveis, incomodados.

Ele não me olha mais.

Conta-se uma história sobre meu reflexo. Sobre minhas perturbações. Diz-se que sou como assassina, que levo almas embora, que amaldiçoo famílias. Retorcidas versões, viradas do avesso, ilusórias fantasias de uma história que julgam conhecer. Quantas destas já foram contadas?
Os olhos negros me encaram de novo, me dissecam, me absorvem. Eu sei que ele ainda não pode me enxergar, porém me sinto despida diante do seu olhar. Tem algo diferente, tão diferente nele. Ele quase me assusta. Ele parece ver mais do que as gotas da tinta. Quase me convenço que ele sente, que ele lê minha alma. Eu acho que teria medo se ele pudesse me tocar. Toques sempre me apavoram.

Estou desesperada. Desolada. Assustada.

Estou com medo de ficar presa, de nunca mais tocar em algo, de ser tocada sem o querer mais uma vez.

E não deveria.

Porque, aqui e agora, acho que encontrei quem possa me salvar.

Acho que encontrei a quem perturbar.