O que você vai ser quando crescer? escrita por slytherina


Capítulo 1
Oneshot


Notas iniciais do capítulo

Local: Los Angeles. Ano: 1925



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/565210/chapter/1

Sua pele ardia. Foi exatamente isso que a despertou. Sua pele branca acostumada a ficar sob a sombra, para não sofrer insolação, nem ficar ridiculamente vermelha como um camarão, estava ardendo, queimando. Ela abriu os olhos e viu corvos. Eles estavam comendo algo ali adiante. Rasgavam pedaços com os bicos e os engoliam aos pouquinhos. Os corvos que estavam sobrevoando grasnavam, como se estivessem festejando um banquete.

Ela ficou ouvindo os corvos... Seriam mesmo corvos? Talvez fossem abutres, pois eram pássaros negros, grandes. Nunca havia visto abutres tão próximos de si. Sabia que abutres comiam carniça, e ela nunca ficaria tão próxima de carniça. O cheiro... o cheiro estava ali esse tempo todo, entranhado em seu nariz, envolvendo-a e tornando tudo opressivo, nauseante. Cheiro de podre.


Ela fechou os olhos. Há muito tempo atrás ela era uma menininha muito obediente. Frequentava a igreja do bairro. ajudava a mãe na limpeza de casa e na cozinha. Ia toda manhã à escola. Até levava uma maçã para a professora. Seus pais tinham orgulho dela. Suas amiguinhas brincavam de bonecas e panelinhas, mas ela era mais atrevida, brincava de princesa e rainha. Sempre havia um príncipe encantado para salvá-la do mal e casar-se com ela. Suas amiguinhas caçoavam dela, mas ela sabia que ela era a heroína, e a única destinada a ter um final feliz.

"O que você vai ser quando crescer?" Sua mãe lhe perguntou. "Serei muito feliz. Casarei com o príncipe e serei uma princesa, talvez até rainha". Sua mãe ria e a mandava estender as roupas no varal.

Quando ficou maiorzinha passou a se enfeitar. Um rouge, um carmim, um lápis preto, pó de arroz. Essas coisas faziam toda a diferença do mundo. Os rapazes a notavam, pediam para dançar, pegar na mão, um beijo... Se ela pensasse melhor, teria se casado com seu primeiro namoradinho. Ele era atencioso e trabalhava para o pai, numa loja de ferragens. Infelizmente ela queria mais do que isso.

Sua visão de mundo e objeto de desejo mudaram quando viu a primeira fita de cinematógrafo. Ela praticamente viveu todas as aventuras de Mary Pickford e Lilian Gish. Ela chorou, sorriu, sofreu, amou... Não havia vida melhor do que a vida mostrada nas fitas de cinema, e ela passou a querer isso para si.

Ela nunca imaginou que chegar perto de seu sonho fosse tão difícil. Ela queria entrar para o cinema, para isso teve que se mudar para Los Angeles e procurar uma chance em Hollywood. Apresentou-se para agentes, selecionadores de cast, foi orientada a ter aulas de canto, dança, postura, etiqueta, dicção... O maior problema era que tudo isso era pago. O dinheiro trazido de casa mal permitiu que ela se instalasse em uma pensão, que dirá garantir sua subsistência. Ela simplesmente não tinha como se manter fora de casa, muito menos pagar por sua formação artística e aprimoramento pessoal.

Se ela tivesse sido selecionada para o cast de alguma grande companhia de cinema, as coisas teriam sido mais fáceis. Infelizmente não foi assim. Seu primeiro emprego foi como babá. Na primeira vez que o patrão avançou sobre ela, pediu demissão. O segundo emprego foi um pouco melhor: guardadora de casacos. O horário era bom, o salário impedia que morresse de fome, e até deu pra pagar algumas aulas de dança. Não durou muito. O patrão a acusou de roubo e a demitiu sem pagar o último mês.

Seu próximo emprego foi como vendedora de cigarros, e foi aí que foi mais feliz. Recebia boas gorjetas, fez amizade com pessoas amistosas, e até conseguiu que sua colega de trabalho concordasse em rachar o aluguel de um quartinho, mais em conta do que a pensão de moças. Mais umas aulas de postura e etiqueta e ela já se sentia preparada para conquistar Hollywood.

"O que você quer ser quando crescer?" Sua colega de quarto perguntou. "Eu quero ser uma estrela de cinema". Sua amiga ria e a incentivava a perseguir seu sonho. Ela também estava tentando a sorte em Hollywood, com a vantagem de que conhecia as pessoas certas nos lugares certos. As duas conseguiram emprego como figurantes em filmes de estúdio. Graças a uma dica de um ator de um destes filmes, que ela conseguiu um encontro com um importante produtor de cinema. Era sua grande chance.

Ele estava hospedado em um hotel de luxo, na suíte imperial. Haveria um pequeno coquetel com pessoas do ramo cinematográfico, e ela deveria ir muito bem vestida e arrumada. Sua amiga a ajudou a conseguir algumas roupas emprestadas, uma tiara para o cabelo, e uma chamativa pena de pavão. Ficou mais linda do que Theda Bara.

Ela apresentou-se na portaria do hotel e foi prontamente conduzida à suíte, como uma convidada especial. Guardaram sua estola de peles e a levaram ao escritório do figurão. Estavam todos vestidos com ternos e gravatas. Alguns até tinham flores brancas na lapela, e o cheiro então, simplesmente maravilhoso e refinado, como em uma corte real européia. E ela era a convidada de honra nesta festa.

Pearl, este era seu nome, Pearl Jones. A fina flor de sua família. A rosa mais perfeita de sua comunidade. Inexperiente, ingênua, indefesa.


Pearl abriu seus olhos. Um par de olhos negros oblíquos a encaravam. "Xô! Fora! Passa!" Ela tentou falar, mas sua boca mal se mexeu. Seus braços estavam pesados, suas pernas pareciam presas. Seu pescoço parecia ter coisas atadas a ele, como tiras, molambos. Seu peito... doía, como se tivesse sido fendido ao meio. Seu baixo ventre... Ela não conseguiu pensar mais nada, pois agora outros pássaros se aproximavam, e seus bicos estavam muito próximos.

Ela tentou gritar, mas sua voz saiu esganiçada. Experimentou mexer os dedos e ... conseguiu. Agarrou algo e fez um esforço tremendo para atacar as aves com sua arma improvisada. O que ela conseguiu com relativo sucesso. As aves voaram, mas ficaram a uma curta distância, observando-a.

– Oh, meu Deus, eu não quero morrer assim, não assim, semimorta, devorada por pássaros. Socorro! Alguém me ajude! Por favor! - Pearl Jones começou a chorar.

O que havia acontecido na festa? A última coisa que fazia sentido, era que fora apresentada a grandes produtores cinematográficos europeus. O que não fazia sentido era... sangue, dentes, garras, olhos animalescos, caretas horripilantes. Eles a atacaram. Não somente foi atacada, mas também... devorada. Pearl recomeçou a chorar. Era assim que terminaria sua vida? Como carniça em um lixão?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O que você vai ser quando crescer?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.