Nós escrita por LC


Capítulo 1
Amarras




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Ele estava na minha frente, mas parecia tão distante. Do outro lado da tela do computador, talvez do outro lado do mundo. Não. Ele estava mais próximo de mim do que eu podia supor, mais próximo do que eu desejava.

Oh, Deus, eu odeio tanto ele. Eu não sei como expressar com tão simples palavras o tamanho do meu ódio por ele. Ele é tão forte e poderoso, ao contrário de mim. Ele é tão estúpido e medíocre, ao contrário de mim. Ele é tão aproveitador, interesseiro, arrogante, alguém tão antônimo a mim, alguém que jamais aparentaria ter alguma relação comigo mesmo, alguém incapaz de se parecer comigo.

Mas ele sou eu.

E eu o odeio por isso. Odeio suas imperfeições, fraquezas, incapacidades. Odeio seu modo diferente de ser e de agir. Odeio sua doutrina ideológica contra todos os escrúpulos sociais; e odeio o barulho que ele causa em tão largo mar de silêncios por causa disso. Odeio sua personalidade calejada e teimosa, e odeio tão igualmente sua mente lúgubre e estóica.

Odeio mais ainda o jeito com que ele consegue provocar dor em mim tão facilmente. Olhar em seus olhos me corrói, me destrói. Ver o quanto somos parecidos mas saber o quanto somos diferentes é a dor mais cruel que o homem pode sentir. É a dor da Verdade.

Mas eu não sou ele.

Hoje tudo isso acabará. Eu só preciso pôr em prática meu plano. Meu último plano. É um adeus à tortura que ele faz comigo, um fim aos problemas que ele me traz, um acabamento a toda tristeza e decepção que ele me faz sentir. Hoje tudo isso acabará.

Eu mandei uma simples mensagem a ele pelo notebook, mas a ausência de respostas não me surpreende. Três palavras normais enviadas, palavras que poderiam estar em um contexto quase normal, se essa não fosse a situação prévia à uma tragédia.

"Venha me encontrar."

Eu sei que ele não lerá isso. Ele jamais saberá o que aconteceu comigo, mesmo quando souber as notícias sendo anunciadas pelos amigos. Por quê? Por que ele não se importa comigo? Oh, Deus, eu odeio tanto ele.

Na mesa de madeira rústica, repousam apenas três instrumentos do cotidiano de muitas pessoas pelo mundo. Mas que jamais estariam juntas na mesa de qualquer pessoa no mundo. Três itens únicos e abstratos, diferentes em tantos sentidos que parecerão iguais a apenas dois dos habitantes desse planeta. Nós.

Um notebook. Uma tiara com estampas florais. Um revólver P-38.

Materiais comuns e corriqueiros. Não impressionam a ninguém. Ah, como são importantes para mim. Cada um deles possui um valor incalculável, mas apenas eu vejo tal valor. Ah, como são importantes para ele.

Já estou há quase três horas sentado nessa cadeira e escrevendo isso enquanto aguardo uma resposta que não virá dele. Espero calmamente, ouvindo o doce som dos segundos passando enquanto a tela brilha no meu rosto. Tempo perdido? Não, tempo ganho.

Não vou sair desse lugar até ele dar uma notícia que sei que não dará. Até ele demonstrar uma atitude que sei que ele não manifestará. Até ele mudar quem eu sei que não pode mudar.

Porque ele sou eu.

E ele jamais poderá aceitar tal fardo.

Envolvo minhas mãos ao redor da tiara infantil. Eu a amei. Espero que ele tenha compreendido a importância que ela tinha para mim. Nós sentíamos algo por ela além do que sentíamos por nós mesmos, e... agora...

As lágrimas escorrem quentes e gotejam no teclado.

Não pararei de esperar. Esperar por ele, esperar por mim, esperar por alguma mudança. Amarramos nosso destino em um tão apertado nó que agora não sabemos mais como desfazê-lo. Nós somos. O nó é. Ele.

Não consigo aguentar mais. Minha mão se abre, involuntariamente, e a tiara cai no chão. Minhas memórias se partem junto com o som de acrílico plástico em concreto sólido. Esse é o adeus. Esse é o fim. Esse é o acabamento.

Minhas mãos agarram a pistola na mesa. As lágrimas jorram por minha face velozes, mas são detidas pelo contínuo e destrutivo sorriso. Enfim terei liberdade! Não precisarei mais estar preso a ele! Alguma força interior leva a arma até a têmpora direita da minha cabeça. Agora estou rindo, gargalhando. E meus olhos estão estranhamente olhando pro teto branco. A tela do notebook ainda brilha. A tiara ainda está caída no chão. Eu ainda sou eu mesmo. Eu não mudei, e nunca mudarei.

É tudo tão lindo, e engraçado, e fagueiro, e feliz, e meu riso começa a se distorcer em um ruído medonho. É demais. Ele me detonou de uma forma além do meu limite. Eu deixei de ser eu mesmo. Eu mudei, e sempre mudarei.

Então meus dedos puxam o gatilho.

A bala é disparada pelo cano frio.

E eu desfaço o nós.


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