Sonhos Despedaçados escrita por Dawn


Capítulo 1
Capítulo único




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- O que?! – Alice indagou. – Mas... eu vou poder ver vocês de novo?

- Vai ser melhor para todos nós, garota. – O Gato de Cheshire pronunciou, não abandonando seu velho sorriso maníaco. – Talvez algum dia possamos nos ver de novo, mas por enquanto...

Alice olhou para o Vale das Lágrimas, para ter uma última lembrança de seu paraíso. Ela encarou os olhos brilhantes e amarelos do gato e depois deu um suspiro profundo.

- Estou pronta. – Afirmou.

O gato sorridente assentiu e mostrou seus dentes enormes.

- Vou sentir saudades. – Alice falou, ainda mantendo a postura.

Depois disso, o País das Maravilhas tinha virado um borrão preto.

...

Alice acordou. Ela olhou para os dois lados, com a visão ainda borrada. Pelo que podia perceber, estava em uma cama, vestida em um avental branco.

Ela piscou, para despertar ainda mais. Pegou o copo d’água que ficava em um criado mudo do lado da cama e bebeu uns goles, o que a ajudou a ignorar a dor de cabeça e no seu tronco.

- Ah, querida! – Falou uma voz feminina, vindo da sua esquerda.

Alice virou a cabeça em sua direção, ainda sem enxergar muito bem.

- Finalmente você acordou! – A mesma mulher disse. Ela estava com um uniforme de enfermeira e trazia uma bandeja nas mãos, que continha remédios e um pouco de comida. – Bem-vinda de volta.

- Ahn... – Alice gaguejou. – Quem... é você? Onde estamos?

- Ah, nós estamos no Sanatório Rutledge. Meu nome é Elisa Witless e eu sou a sua enfermeira. É um prazer lhe conhecer, Senhorita Liddell. – A moça respondeu, sorrindo.

Alice deu um pulo na cama quando a recém-conhecida disse “Sanatório Rutledge”. Ela pensava que nunca mais voltaria àquele lugar para não alimentar seu sofrimento por mais tempo, mas pelo visto estava errada. Lá estava ela, na prisão que assassinou toda a sua sanidade e felicidade.

- Ah, certo. – Alice bebeu mais um gole de água, que agora já estava quente. – Por que eu vim parar aqui de novo?

- Bem... – Elisa fez uma careta. – Lhe acharam desmaiada na estação de trem. Nos trilhos jazia o corpo do Dr. Angus Bumby, um renomado psiquiatra.

- Eu o conheço. – Alice franziu a testa. – Era o meu psiquiatra.

Elisa ignorou o comentário de Alice e continuou:

- Quando juntaram as peças, acharam que já era bastante motivo para lhe internar de novo aqui. Mais tarde você irá fazer alguns exames para ver se pode ser liberada.

Alice suspirou, com alívio. Pelo menos ela tinha se livrado daquele demônio. Mas a morte de Bumby agora era o menor de seus problemas.

Ela não queria ter lembranças ruins, mas não havia jeito. Ela buscou qualquer coisa para conversar com Elisa. O primeiro assunto que veio em sua cabeça foi perguntar se ela tinha algum parentesco com sua ex-enfermeira, Pris Witless.

- Então... você conhece Pris Witless? – Perguntou a morena, encarando-a.

- Sim, ela era minha tia-avó. Eu não a conhecia, mas eu sei que morreu dois anos atrás. De cirrose. Eu soube que ela também trabalhava aqui e...

- Espere um momento... – Alice interrompeu, confusa. – Dois anos?! Por quanto tempo eu estive aqui?!

A enfermeira gaguejou e começou a bater o pé rápido no chão. Alice sabia que ela estava nervosa, mas não disse nem expressou nada.

- Bem... estamos em 1880. – A garota loira entoou. – Você entrou em coma e passou cinco anos aqui.

Alice nem pensou antes de fazer alguma bobagem. Seu primeiro reflexo foi jogar o copo d’água que tinha em mãos na parede, que se quebrou em vários pedacinhos transparentes. Elisa cobriu o rosto e levantou o pé involuntariamente para proteger-se da chuva de cacos de vidro.

Controle-se, pensou Alice, você não quer passar o resto da sua vida aqui, quer?

- D-desculpa. – Alice gaguejou, enquanto ajeitou uma mecha de seu cabelo que estava no meio de seu rosto. – Entrar em coma é realmente...

- Muito ruim. – Elisa completou. – Eu entendo. Já passei por isso antes.

Alice ficou calada e limpou o suor do rosto, ainda trêmula.

- Não se preocupe, não contarei a ninguém. – A enfermeira loira sorriu, catando alguns fragmentos de vidro do chão. – Vou trazer seu horário de exames, certo? Não saia daqui, por favor. Eu volto em um minuto.

Elisa fechou a porta, sem antes levar a bandeja com um jarro de água quente e vários cacos de vidro.

24 anos, pensou, eu tenho 24 anos. Eu perdi cinco anos da minha vida neste lugar horrível que eu jurei que nunca ia chegar a voltar.

Ela passou um bom tempo pensando. O que mais ela havia perdido. O que teria acontecido. O que seria de sua vida daqui para frente. Alice estava confusa, não sabia o que fazer. Pela primeira vez, ela não via seus amigos do País das Maravilhas para ajudá-la.

Agora ela estava por sua conta.

Elisa voltou, quase imperceptivelmente. Ela vinha trazendo uma folha de papel um pouco amarelada nas mãos, onde estavam escritos os exames e seus respectivos horários, que para a sua felicidade, eram todos muito próximos uns dos outros.

- Obrigada. – A paciente falou, segurando o papel com firmeza.

- Por nada. – A enfermeira respondeu, afetivamente.

Alice ficou perturbada pelo imenso bom humor de Elisa. Ela trabalhava como enfermeira em uma clínica psiquiátrica, locais que fazem prisões parecerem mansões de luxo; dia após dia via o sofrimento de cada um dos pacientes, mas mantinha um sorriso no rosto e a cabeça erguida, sempre querendo ajuda-los e os tratava com carinho e afeição. Não entendia a necessidade disso, mas gostava bastante. Isso a lembrava de sua irmã, Lizzie.

- Se eles te liberarem, eu pegarei suas coisas do orfanato que estão em uma maleta no depósito da recepção. Aliás, seria uma boa ideia não voltar lá. – Elisa falou, sentando em um banco do lado da cama. – O orfanato já está em ruínas, há muito risco de vida por lá. Vão reformá-lo em dezembro e fazer uma obra maior e melhor para aquelas crianças.

Alice prestou atenção, mas não parava de olhar a folha de papel. Tantas lembranças ruins vinham à tona...

- Eu posso alugar um quarto no A Sereia Mutilada para você, Alice. – A enfermeira falou. – Eu sei que você não quer ficar aqui por mais tempo.

- Agradeço sua gentileza, Elisa. – A garota de olhos verdes encarou a loira. – Mas eu não posso aceitar. Se eu sair, quero formar uma nova vida... bem longe daqui.

Elisa assentiu, meio chateada.

- Tudo bem. – A loira ajeitou o coque. – Acho melhor você trocar de roupa, pois terá o primeiro exame em dez minutos. Tente comer alguma coisa, certo? Se quiser ir ao banheiro, é...

- Esta porta ao lado da janela. – A morena de olhos verdes completou. – Eu já estive aqui, não há necessidade de me dizer onde fica.

A enfermeira virou-se, para sair pela porta do quarto.

- A propósito... – Alice impediu que ela saísse do aposento. – Obrigada.

Elisa deu um sorriso de orelha a orelha e assentiu.

Alice se sentou e fez esforço para se levantar. Fez uma longa jornada, com seus pés dormentes que não andavam há cinco anos até o banheiro.

Ela se encarou no espelho e viu que mudou muito. Era mais alta do que se lembrava, seu cabelo estava mais longo, suas olheiras haviam sumido, estava mais magra... na verdade, ela estava realmente raquítica, provavelmente com anemia.

- Ah, ótimo. – Reclamou.

Ela trocou o avental por seu velho vestido preto e listrado, lavou o rosto, tirou um tempo para pensar e comeu um pouco. Quando deu a hora dos exames, ela saiu do seu quarto e foi para cada uma das salas.

Aquele lugar também havia mudado. Continuava sujo, velho e com um cheiro horrível, mas estava até... suportável. O sentimento não era o mesmo de quando passava naqueles corredores antes. De alguma forma, Alice sentia-se menos perturbada ao pisar ali de novo.

Alice passou por vários exames, e todos atestaram que ela estava completamente normal. O último era um psiquiatra, que ficava há poucos metros de onde ela lembrava que ficava a sala do tratamento de sangria.

Ela entrou pela porta e começou o tratamento com o doutor, que se chamava Charles. Ele fez vários testes físicos e mentais. Checando o portfólio de Alice, tentou hipnose, fez várias perguntas e conversou um pouco com a paciente. O resultado foi o mesmo de todos os outros exames: a garota estava curada.

O médico desejou os parabéns e liberou Alice do tratamento. A mesma estava aliviada, agora poderia sair daquele inferno.

Ela se dirigiu até a sala de espera para fazer uma ficha de tratamento, falar sobre documentos, pegar suas coisas e ir embora para sempre. Após fazer tudo que precisava fazer, Elisa a entregou a maleta com suas coisas. As duas saíram do asilo juntas.

Alice cruzou o portão com a sua maleta na mão, sem olhar para trás. Acenou para a enfermeira que até então a acompanhava e foi embora.

Hora de deixar de lado as coisas infantis, Alice, pensou, já é tempo de esquecer esse País das Maravilhas.

Ela andou bastante até achar o orfanato que Dr. Bumby costumava a torturar dia após dia. Alice não sabia, mas algo dentro de sua cabeça dizia que ela precisava voltar lá.

Ela abriu o portão cuidadosamente, com cuidado para não ser vista, e adentrou o casarão. Estava tudo caindo aos pedaços, realmente arruinado. Chegava até a dar um pouco de dó, na verdade.

A garota entrou em seu antigo quarto. Sentiu-se melancólica permanecendo naquele lugar e olhando para a foto de sua família. Tudo aquilo que ela já havia conhecido... havia sido destruído. Tudo o que ela já teve foi arrancado violentamente de suas mãos, sem dó nem piedade. Percebeu como foi abusada, maltratada, usada...

Em meio aos seus pensamentos de melancolia... Alice se sentiu observada. Não por alguém, mas alguma coisa.

Olhou para trás, subitamente. Não havia ninguém lá.

Ela colocou o retrato da família da maleta e caminhou pela mansão em ruínas. Passou pelo saguão, olhou debaixo da escada, foi ao segundo andar, andou pelos quartos e adentrou até o antigo escritório do monstro que matara sua irmã; mas mesmo assim, sempre sentia que havia alguém à espreita, observando todo movimento, esperando qualquer maneira para atacar assim como um predador faz com a sua presa.

Caminhou vagarosamente pelo mesmo caminho que veio. A sensação de sentir-se vigiada só passou quando saiu do antigo orfanato.

- Chega... – Alice falou consigo mesma. – Hoje mesmo me mudarei para Cheshire.

Ela estava assistindo sua própria mente entrar em decadência enquanto seguia até a estação de trem. A única lembrança feliz que ainda tinha, seu único paraíso artificial, o local de pura loucura em que ela podia ser quem quisesse quando bem entendesse... até aquilo havia sido tirado dela.

Por que continuar? Não valia mais a pena pensar em coisas e pessoas que sustentavam sua sanidade mental no passado. O que está morto, está morto. É assim que é a vida, e ela infelizmente continua. Este era o pensamento de Alice, ela acreditada num futuro promissor e feliz para ela, em algum lugar. Mas não ali. As lembranças ruins eram muitas. Não havia porque continuar ali.

A garota comprou a passagem, sentou-se no banco que tinha perto da plataforma e ficou esperando pacientemente a chegada da locomotiva. Encostou sua cabeça na parede de concreto e lembrou-se dos momentos que passara em seus instantes vagos de insanidade no País das Maravilhas. Aquilo havia sido muito bom para ela.

- Ei! Moça! – Uma mulher, aparentando uns 30 a 35 anos dirigiu-se a Alice.

- Pois não? – A morena respondeu.

- Você sabe quando passa o trem para Liverpool? – A mesma mulher de olhos verdes perguntou.

- Eu não sei lhe dizer. – Alice ficou séria, com uma expressão até um pouco rude. - Mas meu trem passa mais ou menos pela mesma rota. Podemos embarcar juntas.

- Ah, muito obrigada! – Disse a moça simpática, sentando-se ao seu lado.

Alice cruzou os braços. Ela já esperava aquele trem há mais de uma hora com aquela mulher sentada ao seu lado. Ela lhe dava arrepios. A garota não gostava de sua presença.

O silêncio finalmente foi quebrado:

- Então... qual o seu nome? – Perguntou a mulher de olhos verdes.

- Meus pais me disseram que não posso falar com estranhos. – Alice falou, com ignorância.

- Oh... me desculpa pela pergunta, moça. – Sua colega de banco falou, encolhendo-se.

A garota sentiu-se culpada por chateá-la. Ela nem conhecia aquela mulher, e ela nunca a havia visto em sua vida.

- Alice.

- O que? – A mulher perguntou, pois não havia escutado.

- Alice. – A garota repetiu. – Meu nome é Alice.

Naquele momento, a morena havia despetalado como uma flor. Imediatamente ficou cabisbaixa diante daquela misteriosa mulher que lhe passava tanta autoridade não sendo severa... transmitia até mesmo um certo tipo de afeto.

- Ah... – A mulher misteriosa indagou, com tristeza no olhar. – Este é o nome de minha irmã. Que infelizmente agora está falecida.

- E-eu... – Alice gaguejou. – Eu... sinto muito.

Ela ficou pensando. Sua irmã tinha o mesmo nome que o seu... e havia falecido. Alice entendia essa dor; a compartilhava, na verdade.

- Se importaria de me contar o que aconteceu? – Perguntou.

- Eu não me lembro de muita coisa. Mas eu tentei fugir... de alguém. Então eu escapei pela janela e caí na neve. Quando eu acordei, estava em um hospital. Me disseram que minha família inteira havia morrido. – A moça respondeu, deixando cair uma lágrima. – Eu... eu os amava demais.

- Minha irmã morreu também. – Alice choramingou. – Quando eu tinha sete anos, um cretino que amava minha irmã a assassinou e colocou fogo na casa para encobrir seu crime. Com o incêndio, meus pais também vieram a falecer. Depois disso, eu tive que fazer um tratamento em um sanatório e depois de sair daquele inferno ter o mesmo bastardo como psiquiatra! Angus Bumby, eu amaldiçoo a sua alma onde quer que esteja!

A garota já estava aos berros. Estava indignada com a sua vida. Inconformada com apenas sete anos de paz.

- Fogo... Angus Bumby... Alice... – A mulher estava com um olhar confuso, como se estivesse juntando as peças de um quebra cabeça. – Sim, eu lembro. A noite do fogo...

A mulher a encarou por vários minutos, e Alice a retribuía. Não... Não podia ser... era...

- Lizzie?!


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