A Loja da Rua 33 escrita por AdrianaRV


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

- Aproveitem



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A loja da rua 33

Abriu a janela do quarto esperando deixar alguns raios de sol entrarem, mas nada atravessou a janela. Lá fora o céu estava nublado e certamente, à tarde, cairia uma chuva daquelas. Isso não era tão bom. Dias de chuva afastavam os clientes da loja. Ninguém gosta de sair e se molhar, sabia bem disso. Nem ele gostava. Mas teria de sair. Precisava abrir aloja e torcer para ter um dia promissor. Suas contas não seriam pagas com mágica. Tinha que conseguir dinheiro e isso era motivação o bastante para lhe tirar da cama e levá-lo para fora daquele quarto.

Trocou de roupa rapidamente. O mesmo uniforme de sempre. Blusa azul. Calça jeans. Tênis. Um pouco de gel no cabelo e, voilá, estava pronto. Tomou um rápido café, pegou as chaves e saiu pela porta da frente. Antes de atravessá-la, pensou em levar o guarda-chuva, mas só de imaginar o incômodo que seria ficar carregando o objeto de um lado para o outro, desistiu da ideia.

Foi caminhando a passos lentos. Era o dono do lugar e único funcionário. A hora em que chegasse seria a hora certa.

Sua loja não era famosa. Mas tinha, eventualmente, bastante clientes. E de todos os tipos. Procurando por diversos artefatos e vendendo os mais estranhos que já vira. Curiosamente, a loja se chamava apenas "Loja". Não se achava sentimental o suficiente para dar nome ao lugar nem prepotente o bastante para chamá-lo por seu próprio nome. Isso, porém, obviamente causava alguns inconvenientes, como, por exemplo, para pedir referências da localização da loja. Sendo assim, algumas pessoas que conheciam o estabelecimento costumavam se referir a ele como "a loja da rua 33".

Ao se aproximar da rua, viu as mesmas árvores de sempre, a mesma loja de eletrônicos que ficava à direita de sua loja, o mesmo quiosque que ficava logo em frente, e os carros ocupando as mesmas vagas. Entrou rapidamente na loja, conferiu o caixa e se apressou em abrir o lugar. Pegou uma revista qualquer e se sentou atrás do caixa. Ficou lendo por alguns minutos. Nesses momentos se perguntava até quando iria ficar ali. Era um trabalho muito monótono e que não coincidia em nada com o espírito inquieto e aventureiro que um dia já teve. Talvez tivesse vendido esse espírito para algum cliente em troca de uma boa quantia.

Não tardou e logo a primeira pessoa foi entrando na loja. Era uma senhora que devia ter uns sessenta ou setenta anos. Os cabelos grisalhos muito bem ajustados num coque. Foi vagando pelas prateleiras, lendo os rótulos dos produtos e, depois de uns instantes, decidiu pedir ajuda.

– Boa tarde, meu jovem, eu estava procurando um pouco de tempo. Tenho certeza de que vi naquelas prateleiras ali semana passada, mas hoje não estou mais achando.

– Ah, é verdade. Vendi a última remessa anteontem, senhora. Sinto muito. Precisa com muita urgência?

– Bom, sabe como é, pretendo viajar com meus filhos nos próximos dias e um pouco mais de juventude seria muito proveitoso.

– Entendo. Lamento não poder ajudar. Não tenho recebido tantos clientes interessados em vender tempo ultimamente. O estoque esgotou.

– E você não estaria interessado em comprar um pouco de velhice?

Ele riu.

– Lamento, senhora. Mas essa questão de juventude e velhice não funciona assim. São coisas que você mede com o tempo. E tempo você pode ter muito ou pouco. Então ou você vende ou você compra. E quando vende seu tempo, você fica mais velho. Se compra, fica mais novo. O que quero dizer é que não negocio juventude ou velhice, negocio tempo, entende?

– Ah, é uma pena - Olhou em volta - E você não teria nada que substituísse, não? Um pouco de destreza, talvez? Vamos visitar uma cachoeira, sabe? Quero dar conta de acompanhar os meninos pelo menos nas trilhas.

– Acho que tenho um pouco de agilidade aqui. Uns atletas deram uma passadinha na loja semana passada. Tinham acabado de participar de algumas competições e me venderam um pouco. Atletas são uma fonte muito boa de agilidade. Basta algum treino e eles produzem bastante. Acho que pode servir para a senhora.

– Oh, maravilha! Estou bastante interessada. Embrulhe um pouco para mim com gentileza.

– Gentileza também tem de sobra aqui, senhora. - Sorriu educadamente. - Aqui está. Faça bom proveito.

– Obrigada, meu filho. Tenha um bom dia.

Enquanto a senhora saia, foi entrando um rapaz. Este nem parou para olhar as prateleiras, foi direto em direção ao dono da loja.

– E aí, cara? Beleza? Estou com um problema. - Foi falando em disparada, parecia desesperado - E me disseram que aqui, talvez, eu consiga achar uma solução. O caso é o seguinte. Minha garota me deixou. - Seus olhos ficaram cheios d'água - Assim, do nada. Me largou. Disse que não queria mais nada. Que já não estava feliz. Partiu meu coração. E eu não estou conseguindo viver sem isso.

O dono da loja olhou com pena. Aquela situação era bem comum. Vez ou outra aparecia alguém com negócios amorosos para resolver.

– Se eu tivesse um pouco de tempo, te venderia para curar isso aí. Porém está em falta. Eu podia te arrumar um coração novo. Mas demora um pouco para chegar porque é feito só sob encomenda. Você está disposto a esperar?

– Não, cara, quero algo para hoje mesmo. Não quero perder nem mais um dia com isso.

– Bom, nesse caso, eu posso comprar suas memórias. Lembranças são preciosas. Ainda mais as tristes. Tem sempre uns poetas e escritores melancólicos procurando essas memórias para inspirá-los em suas obras. Então, se você estiver interessado, posso comprá-las de você.

O rapaz olhou torto.

– Não sei não, cara. Vai apagar minha garota da minha cabeça?

– A ideia é essa sim. Sem as lembranças dela, nada de dor pela perda dela. O que acha?

– Que bizarro, cara. Me parece muito radical... - Balançou a cabeça. O vendedor respirou fundo.

– Algumas lembranças, amigo, são como correntes. Te atam ao passado. E o único jeito de seguir em frente é se livrando delas.

O rapaz absorveu lentamente o que ouviu. Parecia tentado pela ideia.

– Cara, esses seus clientes poetas devem ter te dado essa frase de dica, né?

– Andei comprando umas frases de efeito deles sim - Riram um pouco.

– Eu vou apostar nisso então, cara. Vou te vender minhas lembranças da Mila. Eu não estou sendo muito covarde por fazer isso não, não é?

– Acho que é preciso muita coragem para escolher apagar alguém importante.

– Foi a única escolha que ela me deixou. Minha linda Mila. - Enxugou os olhos. - Pode pegar, cara. E ponha algo bom no lugar.

O dono da loja sabia que havia outras opções. Sabia que o rapaz poderia esperar pelo tempo ou pelo coração novo. Mas não insistiu em nada disso. Pegou gentilmente as lembranças e as colocou num pote de vidro bem decorado.

– Pronto. - Fechou o pote - E se você se arrepender, pode vir pegar de volta. Se ainda não tiverem sido vendidas. - O rapaz negou de leve com a cabeça.

– Acho que não vai ser preciso. Já estou sentindo um alívio. Valeu, cara. Bom trabalho aí. - E foi embora.

O dono da loja às vezes ficava surpreso com o que as pessoas eram capazes de fazer quando estavam desesperadas. Vendiam parte de si mesmas, por menos do que valiam e ainda agradeciam. Não se sentia orgulhoso do que fazia. Mas era o seu negócio. Nobre ou não. Era seu negócio.

No fim da tarde, entrou na loja um senhor já idoso. Andava com um pouco de dificuldade. Apreciou as prateleiras, mas não se interessou por nada do que se encontrava ali. Chegou perto do balcão. Acendeu um charuto e falou com o dono da loja.

– Olá, meu rapaz. Bom dia este para tratar de negócios, não acha? - O vendedor olhou pela janela. O céu estava cada vez mais com nuvens cinzas. Não era um dia bonito. Mas não costumava contrariar os clientes.

– É um belo dia mesmo, senhor.

– Por, Deus, não seja puxa-saco, meu jovem. Se estivesse aqui procurando por sinceridade, já teria dado meia volta.

– Sinto muito por lhe causar esta impressão. O que o senhor deseja? E se for tempo, já vou avisando que... - Foi interrompido pelo idoso.

– Não, não - abanou as mão - Não estou procurando nada. Tempo já tive o suficiente. Ele já está acabando, graças a Deus. Vim aqui justamente por isso. Logo vai chegar meu dia e eu acho que seria uma pena partir levando coisas tão preciosas comigo.

– Não entendo - O vendedor franziu o cenho.

– Eu vim aqui, porque fiquei sabendo que você vende preciosidades na sua loja. Coisas que as pessoas querem, mas que às vezes não encontram, ou não esperam até encontrar. Então queria doar o que eu tenho para você.

– E o que o senhor tem?

– Eu tenho experiências de vida, meu jovem. Tenho um pouco de sabedoria. Tenho um pouco de medo. Tenho boas histórias. E, mais importante, tenho um amor imenso aqui dentro - Colocou a mão sobre o peito - Um amor tão grande que não quero levar comigo. Quero passar para que outras pessoas possam desfrutá-lo. - Ficou calado por alguns instantes. Seus olhos ficaram marejados - Minha velha se foi, sabe? Já faz alguns anos. Éramos muito felizes. Ela era uma rabugenta, mas também era minha amiga, minha confidente e me apoiava como ninguém. Depois que ela morreu, uma parte da minha vida acabou também. Mas o amor dela, ela me deu antes de ir embora. E eu guardei todo esse amor, com muito carinho, por todos esses anos. Cuidei, alimentei, e deixei crescer pelo maior tempo que pude. Saudade cresceu junto também. Mas o amor estava ali, puro e bonito, como sempre foi. E é minha maior preciosidade. É algo que quero deixar aqui com você agora que eu estou partindo. Quero que use para quando alguém sem rumo vier te procurar.

O dono da loja nem sabia ao certo o que dizer.

– É uma oferta muito generosa, senhor. E se o senhor estiver mesmo disposto a doar seu amor, não recusarei de modo algum.

– Então pegue sua melhor caixa, a mais bonita que tiver. É onde vou colocar.

O dono da loja arranjou a caixa e o senhor, como dito, colocou ali seu amor. As experiências, o medo, a sabedoria e as boas histórias foram parar em potes igualmente bem decorados e vistosos. O valor que tinham era inenarrável, o dono da loja bem sabia. Quando terminaram, o velhinho era apenas um corpo que falava e que podia sentir. Mas o seu ser, de fato, havia sido distribuído em caixas e potes.

O idoso logo foi embora e o dono da loja se preparou para sair também. Olhou tudo em volta. Trancou a loja e foi embora. Ao pisar na rua, sentiu as gotas de chuva no rosto. Não se incomodou, aproveitou a sensação. Queria um dia ser como aquele cliente. Capaz de deixar o máximo possível de experiências e sentimentos quando chegasse a hora. Foi andando a passos lentos pela rua 33, olhando as mesmas coisas de sempre. E ao virar a esquina, parou e olhou para trás. Viu sua loja e entendeu o tamanho do peso que levava consigo. Era o dono das preciosidades de muitas pessoas. E era um negócio complicado administrar aquilo. Mas sabia que alguém teria de fazê-lo. E gostava de fazê-lo. Sua loja, nem sempre lucrativa, era sua preciosidade. Não pelo negócio. Mas pelas pessoas que desfrutavam dele. Pelo prazer de vender as soluções para os problemas, ou às vezes, de comprá-las. As pessoas precisam se agarram em algo. E ele sabia que poderia não ter amor, experiências ou aventura na vida. Mas sabia que era um negociador de raridades. E aquilo lhe permitia dormir à noite sabendo que era útil nesse mundo. Aquilo bastava para ele.

Talvez, pensou, estivesse na hora de finalmente dar um nome à loja. Sua preciosa loja.


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Notas finais do capítulo

- Comentários, por favor?? Ajudem a autora a escrever melhor! Os leitores é que ganham com isso! ;-)



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