Vidas Múltiplas - Helston, Inglaterra Setembro de 1850

Por volta da meia – noite, seus olhos finalmente tomaram forma. A expressão neles era delicada, parte determinada, parte hesitante – prontos para causar problemas. Sim, aqueles olhos iguaizinhos. Alcançando as sobrancelhas finas e elegantes, a centímetros da cascata escura que era seu cabelo.

Estendeu o braço para ver seu progresso no papel sem vida que segurava. Era difícil desenhar sem que ela estivesse na sua frente, mas de qualquer modo, nunca conseguiria fazer tal feitio em sua presença. Desde que chegara a Midgard, mas precisamente em Londres – não desde que a vira pela primeira vez nessa vida, ele precisava tomar cuidado para manter sua irmã sempre à distância.

Agora, ela o abordava diariamente, e cada dia era mais difícil do que o anterior. Era por isso que Thor, seu irmão mais velho já havia ido embora à noite passada e amanha seria sua vez. Odin não podia descobri - lá se não aconteceria igual na ultima vez.

Inclinou-se sobre o desenho, suspirando ao usar um polegar para retocar o carvão borrado que delineava o voluptuoso. Esse papel sem vida, um mero impostor, era a única maneira de leva - lá consigo para Asgard tendo pelo menos uma única lembrança dela nessa vida. Então, se endireitando na cadeira de couro da biblioteca, ele sentiu. Aquela sensação morna e fria ao mesmo tempo em sua nuca.

Era Ela.

Sua proximidade para o Deus dava-lhe a mais peculiar das sensações e emoções, como o calor que a lenha emanava na lareira até virar cinzas frias. Ele sabia sem precisar virar o rosto. Escondeu o retrato no meio dos seus pergaminhos que estavam amontoados em seu colo, mas não podia escapar dela.

Os olhos verdes recaíram sobre o sofá do outro lado do grande salão, onde apenas algumas horas antes ela aparecerá inesperadamente usando um vestido de seda preta, para aplaudir o midgardian anfitrião. Seu olhar cruzou a sala até a janela que dava para a varanda, onde no dia anterior ela surgira com um punhado de rosas brancas nas mãos. Ela ainda achava que a atração que sentia pelos dois irmãos era apenas um ato inocente. Tão ingênua! .

Levantou-se e deu meia volta, deixando os esboços para trás, sobre a cadeira. E lá estava ela, encostada nas cortinas de veludo vermelho, em seu simples vestido verde escuro com uma sapatilha preta. O cabelo negro se soltara das tranças elaboradas e a expressão em seu rosto era a mesma que ele havia visto em outras vidas. Havia um estranho calor subindo em sua face. Estaria zangada? . Envergonhada? Gostaria de saber, mas não podia correr o risco de perguntar.

— O que está fazendo aqui?- ele pôde ouvir o rosnado em sua própria voz.

— Eu... Eu não consegui dormir. - gaguejou, indo a direção ao fogo e á cadeira dele. — Vi a luz em seu quarto e também. - ela parou, baixando os olhos para as mãos que se encontravam entrelaçadas no colo. — Seu baú do lado de fora da porta. Vai a algum lugar? .

— Eu pretendia contar a você. - começou ele. Não devia mentir, mas era necessário. Contar só pioraria as coisas que já tinham ido longe demais, com a tola esperança que essa vez fosse ser diferente.

— Assim como Thor pretendia me contar. - ela se aproximou mais um pouco e seus olhos pousaram sobre o caderno de desenho. — Estava me desenhando Luke? - seu tom assustado o lembrou de como era grande o abismo entre os três deuses. Mesmo depois de todo o tempo que tinham passados juntos nas ultimas vidas, ela nem tinha começado a enxergar a verdade que cercava o triângulo amoroso entre os próprios irmãos.

Isso era bom ou, pelo menos era o melhor para ela. Durante os últimos dias, desde que ele resolvera ir embora, estivera lutando para se afastar dela. O esforço lhe exigiu tanto que, assim que se encontrava sozinho teve que ceder ao desejo acumulado de desenhá-la. Enchera o caderno de paginas retratando seu fino pescoço, sua clavícula, o abismo negro de seus cabelos.

Agora, ele olhava de volta para o esboço, sentindo não vergonha por ter sido surpreendido desenhando-a, mas coisa pior. Um arrepio gelado se espalhou pelo seu corpo quando percebeu que aquela descoberta a destruiria novamente.

— Chá de camomila com hortelã. - murmurou ele, ainda de costas. Depois acrescentou com pesar e frieza. — Vai ajudá-la a dormir.

— Como você sabia? Minha nossa era exatamente isso que minha mãe costumava...

— Eu sei. - interrompeu, se virando para encará-la. Não podia explicar como sabia o que fazer, ou contar quantas vezes ele mesmo e até seu irmão tinham preparado essa bebida no passado, quando as sombras chegavam ,ou como a tinha segurado em seus braços até que ela adormecesse.

Ele sentiu o toque dela como se o estivesse queimando através da camisa, a mão pousada gentilmente em seu ombro fazendo-o arfar. Os dois ainda não haviam se tocado nessa vida, e o primeiro contato sempre o deixava sem ar.

— Está indo embora? – sussurrou ela.

— Sim. – respondeu sem muita emoção.

—Então me leve com você. - disse ela abruptamente.

— Não. -sussurrou lembrando. — Embarco amanha caso se importe ao menos um pouco comigo, não dirá mais nada.

— Caso eu me importe com você. -repetiu ela, quase como se estivesse falando sozinha. — Eu... Eu amo...

— Não diga isso. -interrompeu-a .

— Tenho que dizer. Eu... Eu amo você, tenho certeza, e se você for embora...

— Salvarei sua vida. - as palavras foram enunciadas lentamente. — Algumas coisas são mais importantes que o amor. Você não vai entender, mas precisa confiar em mim.

— Quer dizer que tem algo mais importante que isso? – ela o desafiou, pegando as mãos deles e levando-as até seu coração.

O calor familiar da pele dela sob suas mãos fez com que ele pendesse a cabeça para trás e gemesse. Estava tentando ignorar a proximidade entre os dois, como ele conhecia bem o toque dos seus lábios delas sobre os seus, como era amargo saber que tudo isso teria que acabar. Mas seus dedos tocavam tão de leve. Ele podia sentir o coração de sua irmã acelerar através do vestido de algodão fino.

Foi quando ela se afastou, com uma mão sobre a testa que se encontrava um pouco suada.

— Estou tendo uma sensação estranha. – sussurrou.

Não. Já era tarde demais.

— Diga-me que enlouqueci, mas juro que já estive exatamente aqui antes. - sussurrou fazendo o Deus arfar de desespero.

Era tarde, demais. Ele ergueu os olhos esverdeados, tremulo e pôde sentir a escuridão caindo sobre os dois. Aproveitou aquela última chance de segurá-la,de abraçar a princesa de Asgard.

Assim que os lábios dele se fundiram com os delas, não havia mais poder algum em suas mãos. O gosto de menta o deixava tonto. Quanto mais próxima ela ficava, mais seu estômago se contorcia de medo e excitação. Sua língua tocava a dele e o fogo entre os dois ardia mais forte, como a pele dela que começava a ficar com a temperatura elevada.

O lugar tremeu. Uma aura envolveu o casal de asgardianos. Sigyn não notou nada, mas ele sabia o que iria acontecer mais uma vez.

As sombras rodopiavam diretamente acima dos dois. Tão perto que o Deus da Trapaça poderia tê-las tocado. Mas de repente o momento foi interrompido quando a princesa se afastou dele com um semblante sombrio. Ele sabia que tinha chegado a hora do adeus.

— Loki. - Sigyn sussurrou dolorosamente.

Então ele viu seu rosto se obscurecendo. Por fim num momento olhou as íris castanhas claras e pode ver a alegria. E então não havia mais nada, absolutamente nada.