O mistério das rosas amarelas escrita por Ys Wanderer


Capítulo 1
Encontro


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Era 13 de setembro, dia de levar flores aos mortos na Guerra da Ascensão, um ritual que se repetia desde o fim dessa conturbada guerra que ocorrera em 1905. Embora não houvesse mais ninguém vivo do tempo da batalha e os parentes sequer lembrassem ou conhecessem seus antepassados, criou-se uma espécie de tradição, onde o ritual das flores vinha sempre antes da festa em comemoração ao dia.

Toda a cidade se comovia e enchia o cemitério de flores e presentes. Reza a lenda que os espíritos dos soldados mortos em batalha costumavam vagar pelo cemitério para ver as recompensas oferecidas por seu sacrifício, que vinham em forma de orações e lembranças. Desse modo, todos então se empenhavam bastante nos arranjos, pois diziam que caso um soldado não se agradasse da oferta, aquele que fizera a oferenda seria assombrado com o barulho da guerra para o resto de sua vida.

Embora fosse apenas uma velha lenda, ninguém queria arriscar sua paz.

O jazigo da família Cabralli era um do mais belo do lugar, todo construído em mármore e madeira de lei, com belos anjos do tamanho de um homem a enfeitar os quatro cantos. Dentro dele estavam enterrados vário membros importantes para o desenrolar da velha guerra: o general Licurgo Cabralli; seu primo, o comandante Carlo Cabralli; e seu filho, Azevedo Cabralli; que atuaram bravamente e deram a vida pela libertação de Verina, que sofria a repressão sob os domínios da coroa naquela época.

Regina Cabralli já estava no cemitério embora mal passasse das seis da manhã. A jovem era fascinada pela história de sua família e todos os anos era a primeira a vir visitar a tumba de seus antepassados. Como sempre, ela espalhava gentilmente sobre o mármore frio inúmeras e robustas rosas amarelas, suas flores favoritas. Mas nesse ano a visita não era mais meramente pela tradição.

Enquanto ia arrumando as rosas, Regina se lembrava de todas as histórias contadas por seu pai, que costumava colocá-la no colo e narrar efusivamente cada detalhe das batalhas que ele havia ouvido anteriormente da boca de seu tio-avô: as tropas invadindo a cidade, o cerco se fechando, os inúmeros soldados dispostos em fileira com seus uniformes azuis, lutando e expulsando os terríveis dominadores...

— Pai, sinto falta de suas histórias — ela disse tristemente, acariciando o retrato dele preso a pedra embaixo da data de falecimento. O homem havia morrido há alguns meses e a ferida ainda recente doía a cada batida do coração. A linhagem dos Cabralli havia definhado junto com a sua riqueza e agora Regina era o último membro ainda vivo. A moça enxugou as lágrimas com um lenço e iniciou suas preces, aproveitando o momento de paz que em breve seria maculado pela quantidade de pessoas que iriam começar a chegar.

— Bons homens estão dentro desde túmulo. Realmente sinto que essa guerra foi um ato completamente vil e desnecessário — um rapaz disse analisando os retratos dos mortos. Regina se sentiu incomodada pela invasão e ia mandá-lo embora, mas quando o observou imediatamente sentiu algo diferente emanando dele. Ela ficou analisando-o, sem palavras. O rapaz era diferente de tudo que já havia visto.

— Quem é você? — perguntou para ele com curiosidade.

— Perdoe-me, senhorita, não queria ser indiscreto — ele respondeu. — Estou relembrando o passado através de memórias concretas que estão presas neste lugar tão sombrio. Os Cabralli realmente possuem uma vasta história e importância, desse modo vim deixar minhas considerações a esses bravos homens que tanto se empenharam pela liberdade.

Regina quase riu do modo de falar do estranho, ele parecia algo perdido no tempo. Reparou também em suas roupas e percebeu que ele usava uma farda preta muito bem alinhada, com vários broches com emblemas militares.

— Tudo bem — ela reiniciou a conversa. — Vejo que você gosta de história, senhor...

— Oh, outra indelicadeza minha. Meu nome é Gerard Windsor, ao seu dispor – o rapaz beijou a sua mão e dessa vez ela não segurou um sorriso.

— Você tem o mesmo sobrenome da monarquia inimiga — Regina gracejou, alinhando com timidez os enormes cabelos castanhos.

— Vamos dizer que eu faço parte dessa família — ele rebateu enérgico.

— Eu me chamo Regina Cabralli e este é o jazigo de minha família. Como pode ver, você faz parte da turma dos bandidos e eu faço parte da turma dos mocinhos.

— Que interessante, uma descendente! — Gerard pareceu surpreso. — Saiba que a sua família teve participação crucial na história dessa cidade. Eles foram homens dedicados e perspicazes, seus feitos devem ser eternamente lembrados.

— Que estranho — Regina franziu a testa ante a afirmação do rapaz. — Como você pode dizer isso? Fala como se estivesse lá.

— Apenas gosto muito de relembrar o passado — respondeu tocando uma das rosas. Ele então a olhou longamente. — Você tem os mesmos olhos do seu bisavô.

— O que disse? — ela o questionou um pouco assustada, e passou a começar a achar que ele era um maluco.

— A foto — ele apontou e Regina viu atrás de si um retrato antigo. — Você tem olhos iguais aos do homem na foto — ele sorriu e a garota ficou imediatamente fascinada pelo seu sorriso,até se esquecendo dos sentimentos negativos anteriores. O rapaz era realmente belo, alto e tinha porte atlético, além de um rosto perfeito e belos olhos cor de mel.

Regina se sentiu estranhamente atraída, no entanto lembrou que aquele não era o local e nem o momento para se pensar nisso. Ela estava ali para homenagear seus ascendentes e principalmente rezar por seu pai. Falou então com o máximo de gentileza possível.

— Obrigada pelo que disse sobre a minha família, mas eu gostaria agora de ficar novamente sozinha. Hoje é um dia importante para mim.

— Claro — o rapaz segurou as mãos dela de forma galante. — Realmente não foi minha intenção incomodar — se despediu novamente beijando as pequenas mãos. — Tenha um ótimo dia, Regina Cabralli.

Regina sentiu um calafrio ao ouvir o homem proferir seu nome. Prestou atenção ao seu redor e algo estava errado, o cemitério estava extremamente vazio para o horário e dia. A essa hora o local já deveria estar fervilhando de gente e, no entanto, ela e o rapaz pareciam ser os únicos ali.

Quando se virou para também se despedir do rapaz ele já havia partido. Regina ficou um pouco chateada, pois apesar das estranhezas gostaria de vê-lo novamente. Uma pequena chama ardia em seu coração e ela não conseguiu entender.

Dois meses depois do encontro com o belo homem Regina ainda não conseguia esquecê-lo. Ela lembrou ainda mais de seu jeito galante ao adentrar o cemitério e sorriu sozinha, com uma dúzia de rosas amarelas em mãos. Era a primeira vez que pisava ali desde aquele dia, pois já estava mais do que na hora de trocar as flores colocadas da última vez. Mas grande foi a surpresa da jovem ao chegar ao jazigo de sua família...

Todas as rosas colocadas por ela há dois meses ainda estavam intactas como no dia de sua colheita. Elas não poderiam ter sido trocadas, pois estavam dispostas da mesma forma que haviam sido colocadas e amarradas com a mesma fita vermelha que ela havia usado para uni-las. Regina começou a tremer de medo, algo de muito errado estava acontecendo ali. Sua visão ficou turva e sentiu que ia desmaiar. Por sorte, o velho zelador do cemitério, ao passar e ver a jovem extremamente pálida, resolveu oferecer ajuda.

— Venha comigo, querida — ele estendeu a mão e ela agradeceu. O homem a levou para debaixo de uma árvore e a deixou sentada em um dos bancos de pedra. — Fique aqui, filha. Eu vou buscar água para você.

Regina respirou fundo e o vento a ajudou a se sentir melhor. Ela observou atentamente as tumbas ao seu redor e então percebeu que em nenhuma delas havia flores. Na verdade não havia nenhuma flor em lugar nenhum, o que deixava tudo com um aspecto ainda mais sombrio, exceto em um ponto.

Regina caminhou vagarosamente até lá, uma magnífica e estranha tumba, decorada com anjos que pareciam mais obras primas do que póstumas, e que estava cheio de rosas amarelas por toda a parte. O perfume que as mesmas exalavam era inebriante e Regina fechou os olhos para apreciar. Já não se sentia mal.

— Filha, você não devia ter saído de lá! — o bom homem proferiu preocupado ao vê-la em pé e estendeu um copo de água para ela, que agora estava parada observando os anjos de mármore.

— Obrigada pela preocupação, mas já estou melhor — ela agradeceu a gentileza. — A quem pertence esse? — aproveitou para sanar sua curiosidade.

— Essa tumba pertenceu a um monarca Windsor — o velho respondeu de boa vontade. — Aqui foram enterrados os mortos em batalha.

— Eu não sabia que havia um Windsor enterrado aqui, achei que todos eles tinham sido expulsos.

— Mas esse aqui é diferente, moça — ele continuou.  — Esse aqui é o traidor Windsor.

— Traidor?

— Sim, ele se revoltou contra a coroa e lutou ao lado dos Cabralli pela libertação de Verina.

— Como assim? — Regina não acreditava no que ouvia, pois jamais haviam lhe contado essa parte da história.

— Não sei explicar dona, só sei que foi isso que meu avô me contou. Mas parece que os vitoriosos não queriam dever nada a um Windsor e decidiram apagar a participação dele na vitória. Bom, agora que a senhorita parece melhor eu vou indo. Se me der licença — se despediu.

— Interessante... — a garota, sozinha, fitou a lápide ainda mais curiosa. Foi então que um nome lhe chamou a atenção. Grafado com um bela letra numa alva placa estava escrito: Gerard Windsor.

Regina instantaneamente voltou a tremer ao pensar na coincidência, porém lembrou que era extremamente comum as linhagens monarcas rebatizarem os descendentes com os mesmos nomes. Então, ela se aproximou mais ainda e retirou algumas rosas do caminho para poder melhor ver o retrato.

Soltou um grito.

Lá estava ele, os mesmos olhos cor de mel, a mesma boca, o mesmo rosto e o mesmo sorriso. Em seu peito, alguns emblemas militares exatamente iguais aos dele. Gerard Windsor. Ela havia conhecido pessoalmente Gerard Windsor.

Mas ele já havia morrido há mais de um século.

***

Nunca ninguém conseguiu explicar o que houve com a jovem Regina Cabralli. Ela foi encontrada quase desacordada sobre o túmulo da família, ardendo em febre e balbuciando palavras incoerentes Depois de levada para o hospital, caiu em profunda tristeza e nunca mais disse uma única palavra. Regina morreu apenas uma semana depois, aparentemente de causas naturais. E inexplicavelmente, no dia de sua morte várias rosas amarelas foram encontradas sob sua cama.

Era 13 de setembro, dia de levar flores aos mortos na Guerra da Ascensão, um ritual que se repetia desde o fim dessa conturbada guerra que ocorrera em 1905. Embora não houvesse mais ninguém vivo do tempo da batalha e os parentes sequer lembrassem ou conhecessem seus antepassados, criou-se uma espécie de tradição, onde o ritual das flores vinha sempre antes da festa em comemoração ao dia.

Toda a cidade se comovia e enchia o cemitério de flores e presentes, mas agora a lenda é outra. Dizem por aí que todo dia 13 de setembro, antes do nascer do sol, é possível ver um jovem casal passeando de mãos dadas pelo cemitério de Verina. Aqueles que juram ter visto os dois afirmam que ele se parece com um monarca e que ela é uma bela jovem de longos cabelos castanhos. Segundo a lenda, os dois vão vagando de jazigo e jazigo e por onde passam deixam em cada lugar uma bela flor. Aquele que porventura a encontrar será o próximo de sua família a morrer.

Que flor é essa?

Uma belíssima e perfumada rosa amarela.


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Notas finais do capítulo

Na história original, uma moça de vermelho dançava a noite inteira com um rapaz. Ele então a levava em casa e no dia seguinte, ao visitá-la, ele descobre que ela já havia morrido há vinte anos e por causa disso enlouquece. Achei tão louco e encantador que resolvi criar essa história.
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