Pão de curry e sanduíche de amora escrita por Vaalas


Capítulo 1
as pedras e o espelho


Notas iniciais do capítulo

Como odeio terças.



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Nossas mãos eram dois pares de coisas absurdas, que nunca deveriam estar ali, de maneira tão próxima.

...

Senti-o se encolher ao meu lado, cabisbaixo, os dedos apertando as costas da minha mão com uma pressão admirável. Eu sabia o que estava fazendo — o que estava sentindo —, mas mantive-me olhando para frente, implacável, segurando sua mão com a firmeza que você e eu não tínhamos.

— Quando nossas mãos se tocam, todos sussurram, e você chora —

Muralhas se ergueram em vultos invisíveis, impedindo nossa passagem. Eram nada mais que palavras baixas, sussurradas e às vezes nem mesmo com aquele febril tom de malícia, que há muito tornara-se familiar. Para mim, elas eram como pedras que se postam no caminho — daquelas que você tropeça na primeira vez e salta por cima na segunda —, para você, porém, era uma parede de vidro fino e elegante, inquebrável, um espelho refletindo o que você deveria ser, e não o que de fato era.

"Aquele é o filho do diretor, não é?"

...

— Mais um, mais um! — pedi, quase implorando.

Um sorriso pincelou seu rosto.

— Você vai acabar com todo meu estoque de pão e geleia, idiota.

Mas, ainda assim, o fez. Se foram então oito sanduíches de geleia de amora para mim e dois para você — seu sanduíche era extraordinariamente comum, mas algo no jeito como você se concentrava para passar a geleia em cada ínfimo pedaço do pão, me encantava. Já nem estava com fome, mas comeria o quanto pudesse apenas para lhe ver prepará-los —, um anime qualquer, daqueles que tem mais episódios que o número de estrelas no céu, e um colchão posto no chão junto a um edredom.

Não tinha ideia do quão especial aquele momento havia sido até ele acabar, e então, fui para casa.

— Não sem antes tomar-lhe os lábios em um beijo, só para ter certeza de que não estava acabado —

...

Seu pai costumava a fumar, e por isso cheiravas a tabaco.

Nos fins de semana ele costumava sair para compromissos — entre as dez da manhã e seis da tarde — então sempre aparecia por lá quando tinha certeza de que ele não estaria, carregando uma sacola de papel com os pães de curry que você tanto adorava.

— A casa cheirava a seriedade, fumo e madeira. Sem graça demais para alguém como você —

Vi-o devorar os pães sem nenhuma sutileza e optei por apenas passar as folhas de uma revista velha de culinária que tinha na sua cozinha. Quando acabou de comer, tinha um sorriso de orelha a orelha, meio imerso no indesvendável, e me guiou em direção ao seu quarto, onde eu achava que jogaríamos algum jogo antigo ou assistiríamos algum reality show que você tanto odiava.

Soube, ali, que deveria trazer pão de curry para você com mais frequência, pois no fim de tudo as roupas estavam jogadas em cima da cômoda ou do tapete, o ar cheirava a sexo e suor e nós dois encarávamos o teto por tempo indefinido que durou uma eternidade finita. Seu teto era bege, simples como você e tão terminável quanto.

Quando a noite descia e meu descuido só aumentava, as chaves da porta da frente faziam barulho contra a fechadura — esse era o som do desespero e caos. Você me empurrava, eu caía. Você procurava sua blusa, eu minhas calças — e antes mesmo da voz do seu velho pai conseguir soar no corredor, grossa e alta do jeito que só ele parecia ter, eu pulava pela janela de trás e corria, os sapatos na mão e a calça desabotoada.

E você me olhava lá de cima e sorria travesso, segundos antes da porta se abrir.

...

Nos fins de sexta sempre íamos para minha casa e nos sentávamos na varanda. As cadeiras de balanço rangiam sob o nosso peso e você alegrava-se como uma criança no parque de diversões. Eu apenas o observava, distante em meus pensamentos — em certo momento, parei para pensar além da pedra, que já estava habituado a pular. Observei você, ao som das molas da cadeira, e visualizei a possibilidade de ainda estarmos ali: dez, vinte, trinta, quarenta anos no futuro, se a sorte nos permitisse. Pensei nas pedras, no espelho, me perguntando se você enfrentaria o seu reflexo da mesma forma que eu enfrentara a terra. E, sinceramente, não sabia...

— Vamos comprar sorvete! — você sugeriu, lançando-se para longe da cadeira.

— ...E não acho que queira saber —

...

O frio da tarde entrava pela janela do seu quarto, então eu o abraçava pelas costas, pois sabia que, mesmo sem as roupas, nossos corpos se aqueciam. Acariciei suas mãos e o aninhei ao meu peito, encostando os lábios em seu pescoço. E você suspirou, tenso de maneira que não estava minutos atrás.

— No fim da noite, você virou-se para mim, olhou-me nos olhos e sussurrou as palavras que afundaram em meu consciente —

— O que nós estamos fazendo?

Como você poderia não saber?

...

Na manhã seguinte, não saímos de mãos dadas.

Mas as pedras ainda estavam ali.

O espelho não.

...

Então confrontei-o, no caminho da sua casa. Você parou e abaixou o rosto, sem nada responder. Eu o chamei de fraco e covarde — me arrependendo em questão de segundos — e logo me desculpei, tentando tocar sua mão. Você a retirou do caminho e seguiu em frente.

— Às vezes ainda acordo com o súbito gosto de geleia de amora na língua, o cheiro de tabaco no ar e o barulho das molas das cadeiras ao pé do ouvido, planando no ar como um sonho que nunca perdeu as asas e se desfez na terra. —

...

— Como poderia lutar contra o reflexo?

— Quebrando o espelho.


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Notas finais do capítulo

Me contentei com o resultado (afinal era terça-feira, você não tem ideia do quão feliz fiquei por ter escrito algo em uma TERÇA-FEIRA!) espero que tenham gostado também.