Poesias e pequenas histórias escrita por Nekoclair


Capítulo 2
Magia Encadernada


Notas iniciais do capítulo

Este é mais um dos textos que utilizei no concurso; um conto desta vez. Espero que gostem dele.
Boa leitura.



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Magia encadernada

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A pequena Diane tinha pouco mais de oito anos quando descobriu o que era um livro; não jornais, revistas ou listas telefônicas, com suas páginas amareladas e muitas vezes rasgadas, mas um livro de verdade, cujas folhas brancas traziam uma história a ser contada.

O primeiro encontro fora simples, repentino e mágico; magia esta talvez presente apenas nos olhos da menina.

Ela vagava por uma praça no centro de sua cidade, uma cesta de doces na mão que balançava enquanto andava de uma pessoa a outra, tentando vender as balas. Era fim de tarde e a noite começava a colorir os céus. Os tons escuros dominavam tudo, os postes da rua incapazes de combater as trevas. Havia poucas balas ainda a serem vendidas e a jovem sabia que não poderia ir para casa até tê-las trocado por dinheiro.

Uma senhora que passava próximo aproximou-se da menina, que sob a luz de um poste observava os arredores cada vez mais vazios. Antes que pudesse perguntar o que fazia alguém tão jovem nas ruas àquela hora, seus olhos caminharam até a cesta, a pergunta deixando então de ser necessária. Ela apanhou sua bolsa e de dentro dela retirou sua carteira, entregando o dinheiro em troca das balas que não a interessavam.

A menina sorriu, e com um agradecimento apanhou o dinheiro oferecido, enfiando-o no bolso do casaco que pouco afastava o frio.

A mulher despediu-se e se virou, mexendo na bolsa enquanto se afastava e derrubando no chão um livro de bolso, do qual não sentiu falta. A menina, por outro lado, surpreendeu-se ao ver o objeto caído, e com interesse se aproximou. Buscou pela senhora, mas esta já havia sumido. Agora o livro era seu.

Quando chegou em casa, sua única família a esperava. Sua mãe se encontrava deitada no sofá, os olhos cansados e duas latas de cerveja junto de si. A menina ignorou-a, partindo à cozinha onde apanhou uns sanduíches antes de se trancar no quarto, desejando mais que tudo analisar seu novo tesouro.

Páginas e mais páginas com pequenas inscrições - as vulgas letras - cobriam de cima a baixo a extensão branca das folhas. Externamente, uma capa colorida trazia uma beleza e individualidade à encardenação em questão. A pequena não conseguia conter sua curiosidade para com o objeto em questão, vendo-o ao vivo pela primeira vez.

Com um sorriso, guardou-o a salvo embaixo do colchão; há muito havia a pequena percebido que se não escondesse o que lhe fosse precioso, ficaria sem.

Aquela noite, foi dormir com um conforto no peito que nunca sentira antes.

Era agora Dezembro, véspera de Natal. As ruas cheias e o barulho não condiziam com o horário, que já passava das onze. A pequena Diane caminhava pelas ruas já há horas, vestindo, além de seu inseparável casaco, um gorro remendado. Sua mãe havia há muito tempo ido trabalhar - era pouco depois do horário do almoço quando a senhora terminara de se ajeitar com suas melhores roupas e saíra porta afora, fedendo a perfume barato -, mas a jovem só saiu de casa depois do jantar.

Com a cesta ainda bem cheia balançando em mãos, a menina ia de um pedestre a outro, mas ninguém mostrava mínimo interesse por si; tudo com que se importavam era com seus acompanhantes, com quem trocavam carícias e sorrisos. Diane, por outro lado, não apreciava aquela situação. Com um bufo descontente, desistiu de seu habitual local e foi em busca das principais vias, que não ficavam muito longe dali. Era hora de tentar a sorte em outro lugar, pelo menos se quisesse ir pra casa antes de amanhecer.

Depois de uma caminhada feita a passos apresados, ela se viu em meio a uma multidão ainda maior. As ruas, que pouco conhecia, eram iluminadas não somente pelos postes, mas também pelas luzes coloridas que cobriam as fachadas dos prédios. Risos e canções podiam ser ouvidos facilmente, de todas as direções. Todos haviam se esquecido de suas preocupações, só dando espaço para a alegria proporcionada pelo momento.

Diane, que havia se encostado a uma parede, atrapalhada pelo grande fluxo de pessoas que não a permitiam ver tudo tão bem quanto queria, surpreendeu-se ao ver um casal com duas crianças se aproximarem de si, comprando balas e sumindo logo a seguir, mas não partindo antes de a desejar um feliz Natal; um ato simples e bobo, mas que aqueceu o coração da jovem, que se permitiu sorrir um pouco enquanto retribuía as felicidades à família.

Depois de vender um doce ali e outro aqui, desceu a rua, encontrando um parque um pouco menor que o seu. Mas a maior diferença não era no tamanho. Neste, havia uma enorme árvore de natal brilhando em meio à noite festiva, e um coro a cantar diversas músicas natalinas. A jovem sorriu um pouco, os olhos brilhando, e se aproximou, a cesta colada ao corpo. Fez tudo que pode para se aproximar o máximo possível, ansiando por ver tudo aquilo mais de perto. Todavia, cansou-se depois de mais ou menos cinco minutos, partindo então para um lugar menos abafado da praça.

Foi então que viu uma pequena roda de pessoas, mais para a beirada. Elas tinham as mãos dadas e alternavam entre proclamar enormes sentenças quase em um só fôlego e cantar músicas que em nada lembravam as natalinas que ouvira há pouco. Curiosa, se aproximou, recebendo logo a atenção do homem que parecia comandar os demais; este usava uma longa roupa preta e uma cruz pendurada no pescoço.

O homem a chamou, pedindo que chegasse mais perto. Diane olhou em volta para ter certeza de que era realmente consigo e então se aproximou. Ele a perguntou se conhecia Deus, a menina dizendo que só ouvira sua mãe mencioná-lo poucas vezes, quando estava irritada consigo. Com uma breve risada, o homem disse que lhe contaria uma história, se ela desejasse ouvir.

— Estória tipo as dos livros, moço? – Perguntou ela.

— Claro, só que esta não é uma fantasia.

Com um sorriso, ela aceitou ouvir a tal história, passando assim pouco mais de uma hora com o grupo, que, além de contar um pouco da vida de um menino chamado Jesus, ensinou-lhe diversas rezas e canções. Quando viu que havia ficado tarde, disse ao grupo que teria de ir. Quando viram a preocupação da menina para com a cesta ainda cheia de balas, compraram o resto de seus doces, para o alívio da jovem. Ela já partia quando o homem, que se disse ser padre, apanhou algo em uma mochila perto de si.

— Quero que fique com isso. Assim, poderá saber mais sobre Deus.

Os olhos da menina brilharam ao verem o livro ser estendido em sua direção. Era ainda maior que o outro, apesar de que a capa fosse mais simples e menos colorida, com apenas uma cruz desenhada em sua frente. Com um agradecimento e um abraço, a menina aceitou o presente e disse que cuidaria muito bem do objeto.

O padre sorriu enquanto via a menina sumir rua acima, o livro grudado ao peito e a cesta balançando no ar descontroladamente.

Aquele fora um bom Natal… Ou era assim que era para ser.

Eram quase duas da manhã quando a menina chegou à sua casa. Ela subia a pequena escada que levava ao seu minúsculo apartamento quando parou, seus olhos presos às figuras que se agarravam diante da porta de sua casa. Seus lábios se contorciam enquanto assistia à cena. Sua mãe beijava alguém que nunca vira na vida, as mãos dele passeando pelo corpo da mulher. Ao ver que a filha observava tudo, afastou o homem, o que exigiu um pouco de força, e o mandou ir embora.

Diane continuou parada onde estava, escondendo o livro nas costas. O homem, que ajeitava os cabelos, lançou-lhe um olhar descontente quando passou por si. A menina esperou até que sua mãe a mandasse entrar, indo velozmente ao seu quarto assim que lhe foi possível.

Aquela noite, dormiu abraçada aos seus dois tesouros, o cheiro do papel sendo o único que conseguira acalmar seu coração.

E assim os meses foram passando, a sua coleção aumentando gradativamente. Pouco depois de dois anos, ela já não mais conseguia esconder os livros sob o colchão, que há muito se tornara duro e desconfortável. Todavia, sua mãe passava cada vez menos tempo em casa, às vezes sumindo por dias, e assim ela não mais temia tanto ter seus tesouros tirados de si.

Ela estava sentada em seu quarto, folheando o livro obtido meses atrás. Mesmo que tivesse juntado uma quantidade considerável, o objeto ainda a encantava; simplesmente segurar o livro, sentir a capa e as folhas e olhar a organização das letras no papel lhe trazia um calor ao peito.

Ao pé de sua cama, uma jarra cheia de moedas e notas jazia posicionada. Diane largou o livro que tinha até então em mãos junto aos outros, sobre uma pilha, e puxou o dinheiro para mais perto de si, contando, pelo que seria a décima vez naquela manhã, a quantia. Um sorriso abriu em seus lábios enquanto se levantava.

Tomada por uma euforia incontrolável, saiu rua afora, indo direto à livraria que tantas vezes encarara a distância. Quando saiu, uma sacola ia abraçada junto ao coração que batia acelerado, um sorriso desenhado no rosto.

Na sacola ia o best-seller do último ano, uma capa floreada e uma quantidade significativa de páginas tornava o livro relativamente grosso. Sua primeira aquisição comprada com seu próprio dinheiro suado, resultado do que conseguiu economizar nos mais de dois meses vendendo balas na rua - emprego no qual já era uma profissional, àquela altura.

Ela ia caminhando pela rua, sentindo a magia que não sentia desde que pusera as mãos no livro perdido pela senhora naquela noite, anos atrás. O sentimento era, sem dúvidas, diferente dos de todas as outras vezes. Sua curiosidade, sua alegria… A menina mal conseguia controlar suas emoções, de tão ansiosa que estava por chegar em casa e olhar o livro por horas diretas.

Que estória seria desta vez? Que personagens? Tinha tanto a pensar! E um livro tão grande como aquele exigiria muito de seu tempo, paciência e imaginação. Mas valeria a pena, como todas as outras vezes. Seria um de seus tesouros, uma parte de si – não literalmente, mas se tornaria uma parte de sua alma. Traria sorrisos aos seus lábios, e esperança aos seus dias ruins. Iluminaria as noites que passava sozinha em casa, e afastaria o medo que a solidão lhe causava. As letras se tornariam palavras e as palavras se juntariam e formariam frases, que, mesmo que não fossem as reais, escritas ali no papel, eram suficientes para si.

A menina foi para casa, cantarolando uma melodia qualquer. Claro que seria bom se ela soubesse ler, mas para Diane sua imaginação sempre bastaria.

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Notas finais do capítulo

Olá. Obrigada aos que leram até aqui. Eu ficaria feliz em receber alguns comentários, críticas ou elogios. ^^
BJJS clair-chan ^^



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