A Noiva Pastora escrita por Soma Creuz
A neblina estava espessa pela manhã. Através dela e do para-brisa embaçado, Ângelo já conseguia discernir Areia de Prata ao longe, distorcida. A maioria das pessoas lá já estava de pé desde as cinco ou seis da manhã, passando café, varrendo a calçada ou partindo para os sítios ou cidades lá perto para iniciar sua jornada de trabalho. Ângelo não via a hora de ver Carol e Ralf de novo.
Carol e Ângelo já namoravam há três anos. Quando ele passou na prova de ingresso para medicina veterinária numa boa universidade federal, não sabiam bem como se sentiam. Agora, viam-se apenas nos finais de semana, e esse tempo era ainda muitas vezes prejudicado nas semanas conturbadas de fim de período, época de sadismo e caos. Já Ralf era seu melhor amigo. Lembrava-se de quando os dois invadiram a casa de seu Rodolfo atrás de uma bola de futebol, e mais ainda da visão de seu Rodolfo polindo a espingarda de sal calmamente em sua rede. Ralf odiava esses dias frios e úmidos. Devia estar encolhido em sua cama espirrando e fazendo ruídos estranhos a esta hora.
Planejava passar imediatamente na casa de Carol, porém o cheiro da tapioca de Ana perpassou suas narinas como um sopro do Éden e o fez parar.
– E aí, Aninha, como vão as coisas?
– Ora, Ângelo! Tá aparecendo cada vez mais cedo, hein?
– Não estava mais conseguindo começar a manhã sem suas tapiocas.
– Até parece. Que eu saiba, o sabor “Carolina” não consta no meu cardápio.
Riram enquanto Ana preparava as usuais tapiocas duplas mistas com frango, ovo, salsichas, bacon e queijo extra com manteiga e orégano, acompanhadas das duas canecas de café com leite de Ângelo enquanto este desatava a falar sobre Carol, como costumava fazer à simples menção do nome, ou mesmo a qualquer coisa que soasse parecido.
– Eu amo aquela mulher, Ana – dizia, enquanto obliterava metade de uma das tapiocas e descia tudo com um ruidoso gole de café – E já estou fazendo planos para o casamento.
– Vindas de você, eu quase acredito nessas palavras, querido. Inacreditavelmente, também não duvido que chame o Ralf para ser padrinho.
– Ei, eu queria surpreender vocês! – disse, com uma expressão de aborrecimento retocada por cem gramas de comida dentro de sua boca.
Riram novamente e despediram-se. Ângelo não fez mais paradas desta vez.
Antes de descer do carro, checou como estava pelo espelho retrovisor. Era um cara alto e forte, de pele e cabelos morenos, cabelos estes razoavelmente grandes e desgrenhados neste momento. Poderia ser bastante intimidador desde que não fosse visto fazendo suas revisões completas e críticas sobre os capítulos de todas as novelas diárias. Tirou um pedaço de frango de sua bochecha e entrou para encontrar Carol e Ralf enroscados no sofá.
– Ora, e aí... amigão?
Ralf ergueu a cabeça dos seios de Carol tão rápido que a acordou. Imediatamente partiu pra cima de Ângelo.
Ângelo ria enquanto Ralf saltava para lamber o rosto de seu dono. O peludo vira-lata marrom e branco alternava entre giros e saltos, enquanto Ângelo ameaçava atacá-lo pelos lados. Carol colocava a alça de sua camiseta de volta ao lugar enquanto se levantava bocejando. Quando conseguiu discernir Ângelo através de seus sonolentos olhos verdes, também foi de encontro ao rapaz e o abraçou.
– O que meu anjo faz aqui a esta hora da manhã?
– Oh, perdoe-me se quero passar mais tempo com quem acredito querer me ver o mais cedo possível.
– Já falou com seus pais, então, suponho.
Ângelo congelou o sorriso.
– Touché, madame. – ela sorriu e o beijou.
Carol morava sozinha desde que conseguira o cargo de professora numa escola lá perto. Seu desleixo era colossal. Somando isso à fixação que a garota sentia por tecnologia, sua casa era sempre um cenário cyberpunk, com celulares e joysticks personalizados em meio à formigas e moscas atraídas pelos restos de comida, e ocasionalmente algumas aranhas, atraídas pelas formigas e moscas. Não era sua característica mais atraente, dizia Ângelo, ao qual ela respondia com indiretas e sarcasmos sobre ele cuidar da faxina quando se casarem.
– Assisti a um filme terrível ontem. – dizia ela, ainda escovando os dentes, enquanto Ângelo abria caminho para sentar-se no sofá – Os habitantes de uma vila começam a morrer de formas bem horrendas, e o pior é quando descobrem a natureza do que as está matando...
– É, bem sem graça, mesmo. Clássica historinha de horror.
– Com “terrível” quis dizer que foi assustador, babaca. Tive que trazer o Ralf pra dentro pra me fazer companhia.
– Uh, e o que estava matando o pessoal? Um maluco com uma serra? Ou talvez um monstro com tentáculos? Talvez um alien parecido com um inseto?
– Tom de voz interessante vindo de quem se assustou com uma borboleta semana passada.
– Aquilo era uma mariposa e ela tinha asas completamente desproporcionais!
“Tiraram o atraso” ali mesmo, no sofá. Essa era a melhor parte de se verem com pouca frequência. A cada vez, Carol aparecia com um truque novo, e Ângelo adorava truques novos. Alguns até meio perigosos. A garota sempre foi criativa demais. Quando terminaram, saíram para ir até a casa dos pais de Ângelo, com Ralf em seu encalço.
– Aquele hotel estranho já foi inaugurado?
– Ah, sim, inclusive estava pensando em passarmos a noite lá hoje pra conhecer. O que acha?
– Ahn... não sei, queria que à noite fosse só nós dois.
– Seremos só nós dois quando realmente importar. Claro, a não ser que...
– Não, Carol. A não ser que...
– Pode ser. Quem sabe?
– Hotel, aí vamos nós.
Ângelo relatava verbal e gestualmente sobre seu projeto na universidade quando escutaram um grito. Na verdade vários gritos simultâneos, quase todos femininos. Ralf se sobressaltou e ergueu as orelhas. Ângelo virou subitamente para a direção de onde achava ter ouvido o barulho. Só que agora se ouvia... risadas? Ele e Carol se entreolharam. Um burburinho contínuo começou, e as risadas continuavam. Os três foram então até a rua ao lado à procura da fonte do tumulto.
Um homem que vinha a toda esbarrou no ombro de Ângelo e teria derrubado uma pessoa menor. Ralf latiu. O desconhecido continuou sua corrida aos tropeços, sem ao menos virar a cabeça. Ralf fez menção de persegui-lo, mas Ângelo o acalmou. Depois, o homem dobrou uma esquina e desapareceu.
– Aquele cara tava nu? – disse Ângelo, após algum tempo juntando as palavras.
– Mais nu, impossível...
Uns homens passaram em perseguição ao indivíduo. Na calçada, várias pessoas perplexas, e algumas davam risada. Mais gente resolvia ir atrás do homem despido, e um desses curiosos reconheceu Ângelo no meio da multidão.
– Ei, Ângelo! Carol! Vocês viram??
– Vi mais do que queria, Rafa. O que porra foi aquilo? – respondeu Ângelo.
– Vocês não vão acreditar, mas sabem aquele cara pelado que passou correndo? As roupas que ele tava usando simplesmente sumiram! Eu vi! O cara nem percebeu até Viviane soltar o primeiro grito!
Ângelo nem sabia o que expressar de início, mas depois soltou uma risada e olhou pra Carol. Pra sua surpresa, ela parecia ter levado cada palavra que Rafa dissera a sério.
– Vocês... já chamaram a polícia? – perguntou Carol.
– Já, acho que já pegaram ele. Tô indo lá pra apoiar o cara, porque nem eu acreditaria no que ele dissesse. Vamos lá!
Rafa voltou a correr. Ângelo estava confuso.
– Você realmente acredita que as roupas do cara sumiram do nada?
– Eu esqueci de comentar, mas nessa semana umas coisas estranhas aconteceram por aqui. Eu te explico depois, agora vamos lá que eu quero saber no que isso vai dar.
Foram encontrar o homem perto do hotel branco, ainda sem roupa. Ele tinha mais ou menos a mesma idade de Ângelo e Carol, cabelos curtos, uma serpente tatuada das costas ao abdômen e mãos bastante ocupadas em esconder mais detalhes no momento. Dois policiais estavam ao seu lado, e mais gente os cercava. Um terceiro policial conversava com Tália, dentro do hotel, e Rafa e Viviane conversavam com os outros dois.
– Ô louco, até o Dante tá aqui... – disse Ângelo, enquanto Carol se esforçava pra enxergar entre a multidão.
– É verdade, delegado! As roupas dele sumiram de repente, a gente viu! – dizia Rafa.
Dante passou o olhar de Rafa pra Viviane, que ainda estava meio trêmula, mas balançou a cabeça positivamente. Então dirigiu-se ao rapaz pelado.
– Você disse que está hospedado aqui, não? Diga o quarto para pegarmos umas roupas pra você e então conversaremos melhor.
O rapaz disse um breve agradecimento. Ângelo e Carol abriram caminho até chegarem no delegado.
– Ei, Dante! – gritou o garoto.
– Ângelo? O que tá fazendo aqui a essa hora?
– Por que é tão difícil eu estar aqui a esta hora? – perguntou ele num tom aborrecido pra Carol, que riu.
Só que, nesse momento, Ralf ergueu as orelhas e um som tênue foi ouvido. Parecia um zunido. A princípio, poucos perceberam, mas o som foi ficando mais alto. Em pouco tempo, todo mundo ali estava olhando pra cima, que era de onde estava vindo o som. Realmente estava ficando bem alto... e em certo ponto deu pra discernir que era uma voz. Parecia alguém gritando.
– EI!! OLHA AQUILO! – disse alguém no meio da multidão, apontando para o céu.
No local onde ele apontou, havia um pequeno ponto. O ponto foi aumentando, junto com o grito. Dante tirou o cigarro da boca e murmurou:
– Meu Deus...
Poucos segundos depois, a aproximadamente vinte metros de onde o pessoal estava agrupado, um baque surdo abafou um ruído menor de estilhaço, e uma enorme mancha de sangue surgiu quase que instantaneamente. Algumas pessoas ficaram imóveis, ainda sem ter consciência do que tinha acontecido. Mas quando o corpo grotescamente dobrado e retorcido foi ficando mais claro, os gritos de horror se iniciaram.
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