Beyond escrita por Ilana Marques, JennyMNZ


Capítulo 25
Brisa


Notas iniciais do capítulo

Jenifer escreveu esse capítulo praticamente todo. E está incrível. Agradeçam a ela. E obriguem-a a desculpar-se pela demora.
Obrigada por continuarem lendo.
Amo vocês só um pouquinho (mentira).
Fiquem com Deus.



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As luzes machucam meus olhos e queimam minhas retinas. Minha cabeça gira e sinto que estou perdendo o equilíbrio. Respiro fundo. A música fere os meus ouvidos e estoura os meus tímpanos. Não há letras ou melodia, apenas a batida ininterrupta que vibra pelo meu corpo como um coração acelerado.

Viro o que resta da minha bebida e deixo o álcool correr livremente pelo meu sistema. Permito que ele pulse em minhas veias e dance em meu cérebro ao som ensurdecedor que me cerca.

Larissa desliza na cadeira ao meu lado e eu a vejo colocando algo na boca.

– Começando tão cedo? - grito por cima da música.

– Nunca é tarde demais para começar! - ela ri e me joga uma pílula similar a que acabara de engolir.

Saboreio o volume insípido e pego outra bebida para engolir junto com ele. Me reclino na cadeira e espero que ele faça efeito. Ainda é cedo, mas a sala de estar da Larissa já está cheia de corpos suados se contorcendo no ritmo da música.

– E aí, Tempestade! - Júlia se aproxima gritando - Qual o veredicto da festa?

– Bem, apesar de o menu ser um pouco limitado acho que é bom saber que tem um banheiro limpo no andar de cima…

– Nem pense em usar meu banheiro!

– Consequências em ser a anfitriã, Larissa! - declaro erguendo o copo - Eu estaria contente em ir pra qualquer outro lugar, mas você me chamou pra vir pra sua casa!

– Foi até melhor se você pensar bem! - Julia interrompe - aqui tem menos gente.

– Bem anotado, Júlia - ergo um dedo - Ponto pra festa da Larissa por não ter gente indesejável por perto. Fico bem mais à vontade sem ter que evitar certas pessoas.

– Se você não quer o garoto, desengana ele que ele para de te seguir.

– Não é bem que eu não quero, eu só tô vendo se tem alguém melhor disponível.

– Sim. Tem. - Júlia fala - Agora dá o toco no menino logo, não quero que você me arraste pro banheiro público da próxima vez que a gente ver ele…

– Qual é, tenho que ter meu estepe.

– Você já tem três, sua miserável! - Larissa brinca, puxando meu cabelo.

– Ah, tanto faz… - exclamo exasperada levando o copo aos lábios. Suspiro. - Mas eu acho que tenho que ir no banheiro agora…

– Você não vai usar meu banheiro, garota! - Larissa ameaça retomar a discussão, mas nesse momento a música muda e ela dá um grito agudo - A MINHA MÚSICA! Vem, Tempestade! - ela me agarra pelo braço e começa a me arrastar para o centro da sala.

– Relaxa aí, Larissa... - resmungo e esvazio o copo. Sinto as pontas dos meus dedos ficando dormentes e rio, sabendo que minha pequena pílula começava a fazer efeito. Permito que ela controle a minha mente e sigo Larissa para dentro da massa de corpos.

Eu estou flutuando. As cores me envolvem e as vibrações da música reverberam pelo meu corpo. Eu sou as cores, eu sou a música. Eu sou a Brisa, flutuando sem direção e sem propósito, apenas pelo doce prazer de flutuar. Sinto braços envolverem meu corpo, e corpos sendo envolvidos em meus braços, mas a brisa nunca fica por muito tempo, e logo ela está soprando novamente.

Um garoto me puxou para si. Ele cheirava a perdição. Isso teria cheiro? Não sei. Mas a proposta de descobrir se sim arrepiava-me os pelos. Ele sussurrou algo no meu ouvido. Eu não entendi uma única palavra. Importava?

Não.

Deixei suas mãos escorrerem quentes pelas minhas costas. Permiti que a sensação fluísse pelo meu corpo. Como uma serpente me envolvendo e me asfixiando aos poucos. O que eu posso fazer? Minha pele gosta.

Meus olhos estão bem abertos, mas a verdade é que tudo isso me parece um sonho.

Me sinto sem forma, como se meu espírito fosse grande demais para meu corpo e o estivesse deixando aos poucos. No entanto eu não paro. Os segundos parecem mais longos e ao mesmo tempo mais breves. O tempo não existe, o tempo não me alcança e eu sinto que enquanto estiver nessa floresta de corpos o mundo lá fora também não me alcançará.

Porque nesse momento o mundo é um céu noturno e as estrelas lampejando no ritmo das batidas eletrônicas.

Eu sou uma nuvem. Flutuando alto e mais alto, sem correntes ou regras que me controlem, etérea e impalpável. Imune a qualquer tipo de dor e livre de qualquer compromisso. Dona do meu destino, controladora da minha vida. Inalcançável e intangível, sem cordões que me restrinjam. Maravilhosamente indestrutível.

***

Momentos ou horas depois - não me importa mais, agora o tempo é fluido. Somos todos a terra, deitados e sentados ao chão da cozinha compartilhando a mesma erva flamejante que nos leva para um lugar mais distante do que estávamos, onde nem mesmo a realidade nos toca e somos mais disformes do que nunca.

E a voz da minha mãe não consegue me alcançar pelos fios de cobre do telefone, porque eu estou fundo, muito fundo, muito longe e os sons que me cercam são muito mais belos e agradáveis de se ouvir para que eu volte e a ouça por livre e espontânea vontade.

– Querida! - a voz estridente da minha mãe machuca meus ouvidos e me faz querer mandar ela calar a boca calar a boca calar a boca. - Me responda Brisa! Eu sei que você está aí.

Suspiro, ansiosa em desligar o telefone e deixar a música preencher meus ouvidos e as substâncias químicas recontrolarem meu cérebro.

– O que foi? - meio que resmungo, meio que rosno. - Será que eu não já disse vezes suficientes para não se intrometer na minha vida?

A linha fica em silêncio por um instante e penso que finalmente consegui fazê-la desistir, até que sua voz retorna incerta.

– Onde você está? - ela pergunta miseravelmente.

– Vou falar uma última vez. - respondo sentindo o ódio saltar da minha boca. - Me deixa em paz!

– Eu tenho que tomar conta de você, eu sou sua mãe…

– Eu já tenho quinze anos, eu faço minhas próprias decisões. Você não pode mais me manter presa em sua casinha de bonecas!

Ela suspira e sinto a tristeza na voz dela, mas estou em um lugar muito alto para pensar em me importar com os sentimentos dela.

– Só me diga onde você está dessa vez… - ela implora e acho que posso ouvi-la chorando, mas ao invés de sentir pena apenas me irrito com a sua demonstração de sentimentalismo.

– Tá! Você quer tanto assim saber? - não me contenho e esbravejo dessa vez - Eu tô casa da Larissa! Pode vir aqui se quiser ver a sua preciosa filhinha pegando todos os garotos da festa. E se você ficar bolada eu posso até te emprestar um pouco da minha erva pra te fazer relaxar...

Desligo e sinto o alívio espalhar em minhas veias quando a linha fica em silêncio e eu sei que não sou mais obrigada a continuar ouvindo-a.

O eco da voz dela continuava flutuando em minha cabeça, então viro a tequila e deixo-a queimar minha garganta meus neurônios e o incômodo causado pela minha mãe.

***

Quando a noite é levada pela madrugada somos uma matilha e nossas risadas ecoam como uivos pelas ruas desertas.

Não sabemos mais para onde nossos passos nos levam. Mas continuamos a andar. Pelo simples prazer de não ter ninguém para dizer aonde devemos ir. É isso o que eu sempre quis. Viver sem rumo, sem roteiros, sem ter alguém para me instigar a ir pelo caminho certo. Andar sem ser apontada por ser a filha do Pastor. A santinha que tem que fazer o que agrada a todos.

Eu quero fazer o meu próprio caminho. Quero tropeçar nos meus próprios pés. Quero, uma vez só, trilhar um caminho inexplorado. Quero redemoinhar aos ventos. Mesmo que depois seja preciso me arrastar pelos becos lamacentos. Quero não alguém para dizer que vou me machucar.

Não. Eu não vou me machucar.

Eu sou inquebrável.

Não sou brisa, que passa delicada.

Não sou tempestade, que desaparece na mesma velocidade que chega.

Não. Eu sou aquela que é lembrada por onde passa. Sou quem deixa um rastro de destruição atrás de si.

Eu sou furacão.

– O que aconteceu ali? - a voz de alguém me tirou dos meus devaneios.

Havia muitas pessoas em volta de alguma coisa. Estilhaços se espalhavam pelo asfalto. Vi mais adiante um carro destruído. O outro com as rodas para cima. As luzes giratórias da viatura fizeram minha cabeça rodopiar. É tudo tão engraçado. O mundo está mesmo girando.

– Algum idiota bateu o carro… - um dos garotos falou.

– Tá vendo, Larissa? - brinquei - É por isso que você não pode dirigir...

Rimos mais uma vez e nos aproximamos da destruição como abutres curiosos, desejosos em ter um assunto a mais pra conversar amanhã, sobre o idiota bêbado que bateu em cheio num Honda vermelho.

Congelo. Sinto cada gota de sangue se petrificar em algo frio e pesado, que me puxa insistentemente para baixo.

Congelo, porque reconheço aquele carro. Congelo porque sei quem sempre o dirige. Congelo porque a violência da batida indica apenas uma coisa.

As cores se apagam, exceto pelo vermelho e isso é tudo o que eu vejo. O vermelho do carro arruinado, o vermelho das sirenes da ambulância, o vermelho do sangue que se espalha pelo asfalto. Tudo é vermelho e tudo é silêncio. Porque a música se foi junto com as cores e tudo o que resta é a conversa dos paramédicos, já desistentes da chance de salvar vidas.

Por um instante eu não me movo. Apenas fito a cena à minha frente e tento dar algum sentido a ela. Anulo tudo o que me cerca e me torno um lobo solitário, sem caça e sem matilha. A visitante de uma galeria, tentando entender a figura abstrata de um quadro bizarro demais para ser explicado.

Parecem se passar eras, mas desta vez o tempo é real e eu sei que não se passam mais do que cinco segundos - se muito - antes que eu corra em direção à ela, o vermelho queimando minhas retinas e as minhas batidas cardíacas irregulares retumbando em meus ouvidos.

Corro porque não acredito no que vejo.

Corro porque, apesar de coberto, eu sei de quem é aquele corpo.

É minha mãe, eu murmuro, grito, falo, berro, não sei, não me importa. É minha mãe, eu empurro, afasto, me arrasto, tento me libertar de mãos que me agarram, me seguram. É minha mãe, eu oro, eu peço, eu imploro que não seja, mas é. É minha mãe, e meus olhos não deixam o volume branco em contraste com a pista, e eu ouço os paramédicos falando que eu estava em choque, mas eu não ligo, é minha mãe.

É minha mãe, é o carro vermelho dela que me indica uma batida tão violenta que não é de admirar que eles não permitam que eu me aproxime. É minha mãe e o mundo parece estar de cabeça para baixo e tudo parece tão errado, porque não deveria ser ela, porque é óbvio que 'mães' vivem para sempre.

Mas é minha mãe, então eu caio de joelhos e choro.

Os policiais afastam as pessoas, mas eu não me movo e eles não se incomodam. Tenho um cobertor em meus ombros e lágrimas no rosto, e eu não sei o que aconteceu com as meninas, mas estou sozinha, incapaz de desviar o olhar da cena estática diante de mim, mesmo que ela fira meus olhos.

É minha mãe, e alguém me passa uma pequena caixa com os seus pertences que estavam no carro, e eu a abraço como se fosse a minha vida. De certa forma é.

Um molho de chaves. Um dinheiro trocado. Um celular que não mais funciona. Uma Bíblia surrada que ela nunca conseguiria abrir mão, é tudo o que me resta agora.

Creio que choro em voz alta, que soluço, que berro, mas eu não me importo, e ninguém ao meu redor parece se incomodar, afinal, é minha mãe.

O absurdo da cena me enche de raiva e em algum momento deixo que ela se sobreponha à minha tristeza e arremesso a caixa ao chão, sacolejando as chaves, espalhando as moedas, finalizando o celular, abrindo a Bíblia em uma página marcada. Olho para o marcador incomum e vejo um rosto. Uma foto. Minha.

Uma foto da filha rebelde que não a tratava como mãe.

"Pode vir se quiser...". Era a minha mãe, orando por mim quando tudo o que fiz foi cuspir em sua cara. Era a minha mãe, e eu a havia guiado para as ruas naquela noite. Era a minha mãe, tentando salvar uma menina embriagada, e recebendo apenas o cumprimento de um caminhoneiro bêbado no meio da noite. Era a minha mãe, e eu a havia chamado para a morte.

Eu não poderia culpar ninguém além de mim mesma.

– É minha mãe... - eu soluço uma última vez antes de me render ao desespero.

Porque nesse momento o mundo é um carro em destroços e um cadáver coberto com um lençol.

E eu sou a chuva. Caindo em torrentes, espalhando em correntes, sendo arrancada do céu pela gravidade impiedosa. Sem nenhum lugar para ir, exceto para baixo baixo baixo. Chovendo e derramando, vertendo e então perdendo a forma. Esfriando e esfriando, até que atinjo o chão e me estilhaço.

Eu sou a Tempestade.

Eu sou os destroços do carro.

Eu sou a assassina da minha mãe.

***

A luz machuca os meus olhos. É tudo muito claro, tudo muito branco. O brilho é demais para minhas pupilas dilatadas e não importa em que posição eu deite minha cabeça dói.

O que aconteceu mesmo? Ah é, eu levei uma surra e tive que ser trazida para o hospital… Que patética você, Brisa!

– Aqui, querida. - ouvi a voz do meu pai ao meu lado.

Abri os olhos e o vi estendo um copo de água para mim.

– Obrigada, pai. - sorri e senti dor nas bochechas. Gemi de dor.

Fiz um esforço imenso para não me entalar enquanto dava pequenos goles na água fria. Permanecer deitada não ajudava em nada. Devolvi-lhe o copo. Meu pai franzia as sobrancelhas.

– O que aconteceu, filha? Por que essas garotas fizeram isso com você?

Porque eu deixei de ser igual a elas. Porque eu decidir mudar. Porque a culpa me consumia tanto que eu afastei todos os meus amigos. Porque eu era suja, arrogante, ridícula, tantas vezes vil, e o senhor não sabia. Porque eu matei minha mãe.

Nenhuma daquelas palavras saiu dos meus lábios. Eu não tinha força suficiente.

– Adriano me disse que você queria conversar comigo?

Senti um frio na barriga, minhas mãos começaram a tremer.

– Ah, sim. Eu queria… Na verdade eu queria te dizer uma coisa…

– O quê, Brisa?

Uma batida na porta me interrompeu.

– Pode entrar - meu pai falou, desviando seus olhos confusos da minha culpa.


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Notas finais do capítulo

Vou dar um real a todos que comentarem. Quem quer um aviãozinho???
P.S.: Mandem o número de suas contas no banco.
P.S.2: Obrigada pela linda recomendação, Celi. Palavras não descrevem o quanto estou grata.
Beijo, lindas!!