Quatorze de Fevereiro escrita por Yuui C


Capítulo 1
Quatorze de Fevereiro


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=sCSKZnpTNNE essa música acompanha muito bem a história, aos curiosos e amantes de leitura com trilha sonora. Espero que façam bom proveito!



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A cadeira rangia conforme o balanço seguia, calmo, para frente, depois para trás.

Era início de tarde, começo da primavera. O vento soprava, fazendo o Furin* tocar, inundando o ambiente com o som baixo, cálido.

– Mas já está nessa preguiça toda? Você não era assim. – Abri meus olhos por um instante, para observá-lo. – Martin, vamos, levante-se daí e vá fazer alguma coisa!

– Daichi... – Murmurei seu nome, desgostoso.

Ele era um japonês baixinho, com mais ou menos 1,68. Tinha cabelos negros lisos e olhos em um tom de castanho bem forte, miúdos. Um sorriso brilhante sempre inundava seu rosto redondo, motivo este por eu ter me apaixonado por ele.

– Você deveria aproveitar essa época, o perfume das flores fica mais forte. – Ele comentou, vestindo aquele velho yukata* acinzentado. Gostava de usá-lo quando estávamos somente nós, nas tardes quentes. – Vamos até o jardim, sim? – Pediu de forma amena, vencendo-me com aquele seu jeito atencioso.

Suspirei, passando a mão pelos cabelos grisalhos. Sentia que, a cada dia que passava, tinha menos fios na cabeça. Mas a essa altura, nada mais me incomodava.

Daichi seguiu na frente, descendo da pequena varanda, caminhando por entre os vários ramos de flores que cultivávamos. Fui admirando sua silhueta, a forma como o sol reluzia em sua pele meio amarelada, fazendo os olhos ganharem um tom mais claro devido à luz.

Ele abaixou-se para admirar um pequeno botão, aproximando a mão de suas pétalas ainda fechadas, mas sem encostá-las. Enfiei as mãos nos bolsos da calça jeans surrada, só observando-o. O sorriso parecia não largar seu rosto; ele estava sereno.

– Hoje é um dia tão especial. Não sei porque você fica nesse marasmo todo.

– Daichi... – Minha voz continha pesar. Inspirei calmamente, fechando os olhos. – Não gosto dessa data. Você sabe o motivo.

– Existe um motivo? – Seu tom continha uma risada. Quando fitei-o novamente, estava em pé, encarando-me. A serenidade em sua feição acalmava o palpitar descontrolado em meu peito. – Martin, você disse que iria passar na florista, não se lembra?

– Sim, eu me lembro muito bem.

– Então, o que está esperando? Vamos logo! – Parecia empolgado. Sorri bem pequeno. Tateei o bolso traseiro da calça, alcançando o maço de cigarros, pendurando um nos lábios. – Martin! Um senhor da sua idade não deveria continuar fumando.

– Se não morri até agora, não morro mais. – Ouvi-o bufar. – Ao menos, não disso.

– Insensível.

Entrei para o casarão, buscando em um pequeno criado-mudo o isqueiro para acender o cigarro em minha boca. Dei uma longa tragada, assoprando a fumaça para o alto.

O tiquetaquear do relógio cuco da sala enchia o ambiente, encobrindo o som do Furin. Passei a observar os ponteiros moverem-se, lentamente, conforme os segundos passavam.

De repente, o vazio preencheu-me. A sala, impecável, preenchida pela luz do início da tarde que entrava pelas venezianas. Era uma sensação estranhamente solitária.

Caminhei a passos curtos, arrastados, até a prateleira que ficava acima da lareira, enfeitada de porta-retratos. Uma poeira sutil cobria-os, a claridade dificultando a visualização das fotos. Tomei um em mãos; era uma das minhas fotos favoritas de Daichi.

Naquele verão, tínhamos ido pescar. Aquele sorriso maravilhoso estampava sua face, seus braços mal conseguindo segurar o peixe que pegara. O conforto voltou ao meu peito, fazendo-me sorrir.

– Vai ficar divagando desse jeito? – A voz dele cortou meus pensamentos. – A florista vai acabar fechando se você for muito tarde.

– Ela não vai fechar. Fica até bem tarde. – Retruquei, devolvendo o porta-retratos para o seu devido lugar.

– Dá última vez, ela estava quase indo embora quando você chegou. Não venha mentir para mim! – Agora, Daichi estava usando uma camiseta regata branca, uma calça jeans clara. Era impressionante como isso destacava ainda mais suas características físicas; eu amava isso.

– Tudo bem, tudo bem. – Fiz um sinal com as mãos para que ele se acalmasse. – Vamos agora, então. – Ele anuiu, feliz.

Rumei para a porta, pegando as chaves no apoio pregado à parede. Do cabide, um pouco antes da porta de entrada, peguei meu chapéu e bengala; tudo pronto, tranquei a porta ao sair.

Caminhei calmamente pelo jardim da frente, a porteira da cerca rangendo conforme eu a empurrava. Avistei uma vizinha, cumprimentando-a com um aceno. Ela me sorriu, parecendo animada.

– Vai comprar flores, Sr. Martin? – Questionou, na casualidade.

– Sempre, sempre!

– Aproveite esse dia especial! – Despediu-se, entrando em sua casa.

Especial

Não sabia dizer se esse dia era, de fato, especial. Há anos eu detestava aquela data, aquele mês em específico.

Apoiei a bengala no chão, andando vagarosamente. Ouvi passos ao meu lado, despertando minha empolgação.

– Martin, eu quero violetas. – Daichi disse em sua eventualidade rotineira. Concordei com um aceno de cabeça suave, mais concentrado nos passos que deveria dar.

Já havia sofrido uma queda antes e aquilo não fora muito proveitoso.

– Compre violetas de várias cores. Eu quero algo bem colorido! Como nós temos em nosso jardim.

– Ano passado você quis tons de branco e vermelho.

– Mas esse ano eu quero colorido! Um lindo bouquet colorido!

Um suspiro. A caminhada parecia infinita. Na descida, tive de diminuir ainda mais o passo, com medo de tropeçar.

– O verão desse ano será bem quente. – O comentário aleatório de Daichi fez-me erguer a cabeça para fitá-lo. Olhava para cima, em direção ao céu azul de brigadeiro, parecendo em transe. – Você não gosta de calor, não é mesmo?

– Os verões do Sul dos Estados Unidos não são como os do Japão. – Comentei, vago.

Passamos quase dois anos morando no oriente. Confesso que fora uma experiência nova para mim. E um sufoco convencê-lo a voltar ao ocidente após esse período.

Até hoje eu sinto relativa falta do clima da terra do sol nascente. Sofri horrores quando voltei para cá.

– Olhe, ali está! – Ele apontou, correndo na frente. – Apresse-se, vamos!

Ignorei-o, continuando meu ritmo. Não tardou para eu avistar a florista; era uma jovem moça de longos cabelos vermelhos, um piercing no canto do lábio. Abriu aquele largo sorriso ao me ver, acenando.

– Você de novo, Sr. Martin! Quem te viu, quem te vê. Firme e forte. – Cumprimentei-a com um aceno. – O senhor não parece tão empolgado esse ano.

– Eu nunca estive empolgado. – Fora minha resposta amarga. Passei rapidamente os olhos pelas inúmeras flores, sentindo meus olhos se esvaziarem, bem como meu coração. – Você tem violetas?

– Tenho, claro que tenho! Vai querer um bouquet delas?

– Sim. Coloridas. Faça o mais colorido que conseguir.

– Pode deixar! – Ela fez um sinal de “ok” com os dedos, começando a preparar meu pedido.

– Você deveria ser mais amável com ela. Todo ano ela se esforça bastante para te atender bem. – Daichi advertiu, desgostoso. – Pensei que eu tivesse te ensinado isso.

– Ensinou, Dai. Mas, às vezes, um coração amargurado não consegue produzir palavras doces.

Você me fazia produzir palavras doces.

– Prontinho! Aqui está, Sr. Martin. – Levei a mão ao bolso traseiro da calça, alcançando a carteira. A menina me parou. – Não, não. Esse é um presente para o senhor.

– Mas, minha cara–!

– Não, não. – Ela me sorriu, meiga. – Considere como uma lembrança de alguém que te admira muito, Sr. Martin! – Estendeu-me o bouquet. Apesar de relutante, eu peguei, sorrindo pequeno.

– Obrigado.

– De nada. – Ela aproximou-se, sussurrando de maneira cúmplice: – Pode considerar como presente de “dia dos namorados”, também. – Deu uma piscadela, em tom de brincadeira. – Boa caminhada, Sr. Martin!

Sorri mais largo, despedindo-me dela com um aceno. Voltei à minha bengala, os passos vagarosos, arrastados. Às vezes a perna doía pelos músculos desgastados, fragilizados, mas nada que me impediria de chegar ao meu destino.

– Você parece mais animado, Martin. – Daichi novamente, rindo à toa. – Eu gosto de te ver assim. Parece que não perdeu a alegria que tinha na juventude.

– Eu perdi, Daichi. E você sabe muito bem.

– Uhum, eu sei.

Finalmente, os enormes portões de aço negro me recebiam. Adentrei, o anfitrião sendo um gigantesco anjo feito em granito, de asas e braços abertos. Alguns diziam que sentiam-se acolhidos por ele; eu não. Nunca seria acolhido.

Fui me arrastando por entre as lápides, olhando de relance todas elas. Algumas estavam empoeiradas, esquecidas por seus parentes. Sentia pesar por elas.

Enfim, cheguei ao meu destino. Calmamente, fui ajoelhando-me, limpando o nome do meu amado, admirando as letras grafadas em perfeita caligrafia. Juntei as mãos, fechei os olhos; orei.

Orei por incontáveis minutos. Quando conclui, peguei o bouquet de meu colo, colocando-o sobre o túmulo. Outra vez, acariciei a pedra gelada, sentindo meu coração tornar-se cada vez mais e mais frio com o toque.

– Daichi...

– Eu estou bem aqui. – Sua voz novamente. As lágrimas quentes correndo por meu rosto, silenciosas, sorrateiras. – Não chore por mim, Martin.

– Choro. Chorarei por todo o sempre.

– Isso é muito, muito tempo.

– Sim, eu sei.

Peguei minha bengala, usando-a de apoio para me levantar, dificultosamente. Virei-me, somente para ver meu amado Daichi usando um yukata branco como a neve, contrastando com seus lindos cabelos negros, seus olhos castanhos... Ele era lindo, lindo.

O meu Daichi.

– Você virá me visitar no ano que vem? – Questionei, as lágrimas quentes ainda escorrendo, teimosas.

– Sempre, Martin. Enquanto você vier até mim, eu sempre irei até você.

– Você virá quando minha hora chegar?

– Estarei te esperando. Sempre.

Anui lentamente, sentindo a ponta de seus dedos secarem minhas lágrimas. Era vago, como o roçar do vento, mas ainda estava ali, presente.

Então, os lábios nos meus. Não sentia textura, não sentia calor; somente a presença, preenchendo-me.

De repente, ao som do farfalhar das folhas, tudo se desfez. Inspirei bem fundo, soltando o ar lentamente. Apoiei firmemente a bengala no chão, voltando a caminhar, de volta a minha casa.

Há exatos trinta anos, exatamente em quatorze de Fevereiro, tudo havia mudado.

Não era para ter acontecido daquela forma. Mas o destino é gozado; às vezes eu penso que Deus é cruel... Tudo em nossas vidas é tão curto, tão passageiro.

Tudo pode acabar em um piscar de olhos.

Ainda lembro dos cabelos negros ensopados, o sangue escorrendo por minhas mãos, misturando-se ao meu próprio. Os gritos ao redor, os meus gritos, ao corpo trêmulo, a sensação de incapacidade.

Sirenes, socorristas, médicos, cirurgia, a fatalidade. Tudo se foi com o piscar dos meus olhos.

Antes que minhas lágrimas pudessem secar. Antes que meu coração pudesse cicatrizar.

Desde aquele ano, eu repito, data após data, o mesmo ritual. Daichi amava flores; eu as trago para ele. E ele vem até mim, acompanhar-me, fazer meus dias menos tediosos.

Conforme caminhava de volta ao casarão, via casais de mãos dadas; trocas de presentes e juras de amor. Era uma data maravilhosa, aquele quatorze de Fevereiro.

Apesar da tristeza, para mim também era uma data especial. Para reviver, para renascer, para amadurecer.

Ao chegar próximo a porteira da minha cerca, vi três crianças reunidas, apontando para meu lar.

– Dizem que esse casarão é assombrado! – Sussurrou uma.

– Deve ser horrível aí dentro! – Murmurou outra.

Continuei me aproximando, até estar ao lado deles. Dois gritaram, assustados e saíram correndo, esbravejando: “O velho do casarão, o velho louco do casarão!”

Estreitei a vista, desgostoso. Porém, uma das crianças permanecera, fitando-me curiosa com seus grandes olhos verdes. Sorri pequeno, questionando:

– Aconteceu algo?

– Como é... Viver com assombrações? – Disse, inocente. Em seu olhar, eu percebia a curiosidade, a empolgação; diferente dos outros, que só queriam debochar. Ele queria compreender.

Abaixei-me para ficar à sua altura. Limpei a garganta e, lentamente, pronunciei:

– Se você pudesse ver uma pessoa que você ama muito, mas que já partiu... Você se sentiria assombrado?

– ... Não. – Respondeu, depois de ponderar alguns segundos.

– Pois então. Minha casa não é assombrada. Não existe assombro quando se ama alguém.

Ele sorriu, compreensivo. Agradeceu a explicação. Ofereci-lhe um abraço que de muito bom grado foi aceito. Despedi-me, vendo o pequeno correr alegre.

O sol já se punha, o vento sobrava e, apesar de estar longe da varanda, eu podia ouvir o Furin com sua doce melodia.

A melodia do meu amado Daichi.


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Notas finais do capítulo

*Furin: nome dado aos sinos de vento que normalmente são pendurados nas casas durante o Verão japonês.

*Yukata: roupa tradicional feita de algodão; normalmente usada para ocasiões simples, como matsuris (festivais de verão).

Meu amado e querido Ben! Hoje é seu aniversário e, como não posso lhe dar um presente físico, resolvi fazer uma história para você. Você me disse quatro temas soltos: idoso, casa mal-assombrada, dia dos namorados e flores. Mas, no exato instante em que você citou isso, eu tive essa ideia maravilhosa que se reflete nessas palavras que aqui estão. Você sempre ressaltou que adorava a humanidade dos meus textos... Fiz esse da maneira mais humana que consegui! Espero que te agrade e te toque tanto quanto me tocou escrevê-lo. Parabéns, meu querido amigo ♥ Eu te amo muito e espero que você seja sempre a pessoa maravilhosa que é!

A todos que leram, muito obrigada! É minha primeira original postada, ainda sou novata nessa área. Espero que as personagens e o ambiente tenham agradado vocês. Ficarei imensamente feliz com todos os comentários construtivos, o que acham que necessita de melhora, seja na escrita, na criação das personagens... Enfim, em tudo. Ficarei no enorme aguardo do vosso feedback!