''Não!''

Foi a última coisa que Karina ouviu antes de se entregar ao choro,deixando o arco e a flecha caírem de suas mãos. Estava completamente sem forças. Tinha todas as suas energias focadas em Pedro,que a encarava,estático.

– Vamos,Karina! Flecha logo o capiroto! – Gael ordenou,mas ela não deu ouvidos.

Bianca e Duca apenas observavam a cena,sem saber o que dizer. Ela não demorou a juntar as peças,e temeu por não poder ver João novamente. Entre um soluço e outro,Pedro caminhou até ela a passos largos,e tomou seu rosto com as mãos.

– Você não pode fazer isso. – Ele implorou,unindo suas testas. – Você não pode me deixar,amor....

– Eu não tenho escolha,Pedro! – Sua resposta veio como um grunido abafado e intalado na garganta. Ele ignorou sua resposta e envolveu seu corpo num abraço,deixando ela encostar a cabeça em seu peito e ouvir o som de seu coração desesperado. – E-eu não posso...

– É claro que você pode! – Pousou seu olhar sobre ela,que estava trêmula. – Olha pra mim,você pode sim. Eu não vou deixar você ir,não vou!

Tomou seu pequeno corpo num abraço apertado,deixando os sentimentos gritarem dentro dele. Karina aproveitava cada segundo,sem saber quando tudo chegaria ao fim. Sabia que se dependesse de Gael,aqueles momentos não durariam muito.

E como se ele estivesse lendo seus pensamentos,puxou seu corpo com brutalidade,os afastando.

– Já chega! Você tem uma missão a cumprir,sempre soube disso. – Bradou contra os olhos marejados da loira.

– Olha como você fala com ela,Gael! – Pedro avançou para perto do anjo chefe com raiva,mas Karina o impediu.

– O céu depende do cumprimento dessa última missão! Você quer que o amor acabe na Terra,é isso?

– Você sabe que não! – Secou as lágrimas e tentou dizer com a voz falha.

Os próximos minutos foram os piores para a pequena loira. Gael se aproximou dela,pousando uma das mãos em seu ombro.

– Você sabe o que tem que fazer,Careina.

Ela voltou a olhar para João em um claro sinal de desespero. O anjo amigo apenas negou com a cabeça,se sentindo de mãos atadas. Tudo o que ele não queria era vê-la sofrer.

De longe,viu Bianca se aproximar,tentando conter suas lágrimas.

– Então....é isso? – Ela começou,sem ter certeza de como aquilo terminaria. Ela nem queria pensar nisso. – Você vai embora?

– É isso sim,Bianquinha. – Sorriu sem vontade,contendo sua vontade de ir até ela.

Mas não conseguiu por muito tempo. Antes que ela pudesse dizer algo,ele envolveu seu corpo num abraço,deixando que suas lágrimas escorressem por seu rosto.

– Me desculpa,Bi. – Afagou seus cabelos,deixando o som dos soluços dela o partirem por dentro. – Eu sinto muito.

– Quando é que eu vou te ver de novo? – Perguntou num tom quase inaudível,mas era o suficiente para os dois.

João não conseguiu responder,apenas beijou sua testa e sussurrou:

– Adeus,minha Julieta.

– Quer saber? Pode me atingir! – Pedro berrou,descontrolado. – Pode me flechar,Karina! Eu vou provar que o nosso amor é verdadeiro!

– Não torna tudo mais difícil,por favor meu amor... – Pediu,secando suas lágrimas. O vento frio ricocheteava seus cabelos e lhe cortava a pele,entrando em contato com o corpo quente de Pedro contra o seu . – Promete que você vai seguir com a sua vida?

– Eu não vou conseguir fazer isso sem você,meu anjo. – Aquelas palavras fizeram seu corpo estremecer. – Eu não vou conseguir te esquecer.

– Me promete então que você não vai fazer nenhuma besteira,Pê. – Pediu num tom de súplica.

– Eu prometo,minha esquentadinha. – Riu fraco pra ela. – Eu prometo que não vou te dar trabalho.

– Acho bom. – Fingiu um tom mandão. – Eu sempre vou estar com você,ouviu bem? Sempre.

– Pra sempre é pouco pra nós dois,pequena. – E a beijou,pela última vez.

Karina não conseguia definir o que estava sentindo,um turbilhão de emoções diferentes tomavam conta dela. Quando se separaram,um vazio súbito a dominou,tornando aquele momento mais difícil do que já era.

– Me desculpa. – Sussurrou contra os lábios trêmulos de Pedro,depositando um beijo ali,antes de se afastar para pegar o arco e a flecha.

Aqueles dois instrumentos pareciam mortais. E não pode deixar que realmente eram,porque matariam o amor que Pedro sentia por ela.

Como um tiro certeiro,a flecha atingiu Pedro de uma só vez. O guitarrista foi amparado por Duca e Bianca antes de encontrar o chão,desacordado.

Karina observou a cena,estática. Por quê ele havia desmaiado? Ela não era uma cupido de verdade,mas sabia que as coisas não deveriam ser assim. Uma sensação de angústia a invadiu sem pedir,e ela sentiu todas as partes de seu corpo corresponderem aquela sensação,fazendo o ar lhe faltar.

Tentou ir até ele,mas Gael e João a impediram,e junto com Tomtom,Fira e Flygia,atravessaram o portal e voltaram para aquela imensidão negra e estrelada.

– X –

Gael abriu o portal quando todos chegaram ao céu. Tomtom e os três anjos estavam felizes por estarem de volta,já com Karina e João,a história era diferente.

Assim que João soltou Karina de seus braços,a loira partiu desesperada para cima de Gael.

– O que foi aquilo lá embaixo? Por quê ele desmaiou?! Isso não era pra ter acontecido... – As palavras saíam desconexas,reanimando seu corpo entorpecido. – O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ???

– Karina,calma. – João pediu.

– Eu não quero ficar calma,eu quero o... – Parou a frase ali,fechando os olhos e respirando fundo. – Eu só quero entender o que tá acontecendo,anjo Gabriel.

Querendo ou não,ele era seu superior e havia a salvado do pior momento de sua vida. Não iria conseguir nada,agindo daquela forma.

– Como eu te disse,aquela flecha é diferente. – Ele começou. – Os poderes existentes nela são mais fortes,e cada humano reage de um jeito.

– E quais são as outras reações que ele pode vir a ter,Gabriel? – Foi João quem perguntou.

– Várias,desde insônia,descontrole emocional,até perda súbita de memória...

– Espera. – Cortou a frase no meio,sentindo que suas pernas não aguentariam mais sustentar se peso. Nada pesava mais que a dor que ela sentia naquele momento. – Você tá me dizendo que ele pode.....me esquecer,é isso?

– Pode não,Careina. Ele vai te esquecer. – Reforçou aquelas palavras,como se fossem um mantra. – É única forma de ele encontrar a alma gêmea perdida.

E saiu dali,levando as estruturas da pequena anjo com ele.

– X –

Uma semana se passou desde que Karina fora embora.

O menino estava na Ribalta,era dia de ensaio e ele já havia perdido vários. Nada mais fazia sentido sem seu anjo junto dele.

Chegou no horário marcado,mas a sala estava vazia. O que era estranho,porque quem tinha esse costume ali era Sol. Deu de ombros e pegou seu violão,se sentando num canto afastado e dedilhando os acordes da música.

– Só você pra dar a minha vida direção,o tom,a cor....

Me fez voltar a ver

A luz, estrela no deserto a me guiar

Farol no mar da incerteza

Pedro de nada se lembrava depois que a flecha atingira seu peito. A escuridão lhe atingiu,e a última visão que teve foi daquelas duas imensidões azuis a fita-lo. Acordou no outro dia pela manhã,perdido e chamando por ela,e chorou ao constatar que ela jamais voltaria.

Os dias se arrastaram como nunca. Ia para a Ribalta,e passava as tardes com as crianças do Amparo. Eles devolviam o sopro de vida que ele precisava ter de volta,a parte que Karina havia levado com ela.

Só ele soube como foi difícil dar a notícia para os pequenos. Ele chegara como de costume,colocara seu jaleco e entrou na sala,que já estava agitada para aquele horário.

– E aí,galerinha? – Pedro tentou esquecer o que sentia pelo menos por alguns segundos. Aquelas crianças mereciam o melhor dele,ainda que ele não soubesse se esse lado existia mais. – Como vocês estão? Sentiram minha falta?

– Sim! – Todos berraram num uníssono.

– Tio Pedro,e a tia Ka? Não nem hoje? – Alice perguntou.

Foi o que bastou para que tudo voltasse,como uma avalanche.

Um dia, um adeus

E eu indo embora

Quanta loucura

Por tão pouca aventura

– Ô,minha pequena... – Pedro sussurrou,tentando se manter firme. – a tia Ka não vai voltar mais.

– Por quê? – Gui perguntou,tristinho.

– Porque ela teve que fazer uma viagem muito importante. – Resolveu que seria isso o que responderia a eles.

– A tia Ka morreu?! – Nat perguntou surpresa,com seus olhinhos já marejados.

– Não! – Pedro tentou consertar,na tentativa de acalmá-los. – Ela só teve que....fazer uma viagem,o pai dela tá muito doente e tava precisando dela,é isso.

– Eu vou morrer de saudade.... – Alice disse,cabisbaixa.

– Eu também vou,baixinha. – Concordou com ela,se contendo para não desabar ali. – Eu também vou.

– Tio Pedro,você pode dizer a tia Ka que a gente ama muito ela? – Gui perguntou.

– Posso sim,brother. – Secou uma lágrima teimosa que acabou caindo. – Mas eu tenho certeza que ela sabe disso,e que ama muito vocês também.

Os momentos com Karina iam e vinham a sua mente,sem que ele pudesse evitar. Ele nem mesmo queria. Revivia cada momento com sua esquentadinha,na tentativa de tê-la mais perto dele. Quando não estava nos dois lugares,encontrava no seu quarto o seu refúgio,dedilhando seu violão. Perdia seu olhar no andar de cima,numa esperança torpe de poder ver Karina novamente.

Agora entendo

Que andei perdido

O que é que eu faço

Pra você me perdoar

Sua pequena fazia uma falta absurda. Karina era muito mais que o seu amor. Fora ela que lhe devolvera o sorriso,a sua vida de volta,trouxera a paz que ele havia perdido no meio do caminho.

– Pedro? – Ouviu Sol o chamar. – Aff com três f’s,desisto gente. Esse aí tá no mundo da lua mesmo.

– Mundo da lua ou da Karina? Eis a questão. – Nando brincou,sem saber que nunca estivera tão certo. – Bora pro ensaio Pedroso.

Tocou as músicas na guitarra quase de forma automática. A única coisa que ele conseguia pensar no dia em que sua esquentadinha foi até a Ribalta para assistir seu ensaio.

A ‘’Galera da Ribalta’’ tocava Meu Novo Mundo,enquanto Karina assistia,sibilando a letra sem tirar os olhos de Pedro. Quando acabou,a loira e Wallace bateram palmas e gritaram em sinal de aprovação.

Pedro guardou sua guitarra,enquanto Karina ia até ele.

– E aí Ka,o que achou?

– Da música? Eu adoro essa,você sabe. – Envolveu seus braços no pescoço do garoto.

– Eu tava falando de mim,ô projeto de Dory. – Karina ficou boquiaberta com o apelido,e Pedro riu.

– Hum,de você? – Fingiu desdém. – Ah,deixa eu ver....É,foi legalzinho.

– Legalzinho,é? – Indagou antes de roubar um beijo. – Diminutivo não,Karina. Se for pra falar de mim,que seja no aumentativo,por favor. – Pediu,e a menina gargalhou alto.

– Tá,foi legalzão então. – Provocou,e o guitarrista fingiu indignação.

Roçou seus lábios nos dela,e quando ela ia beijá-lo,se afastou.

– Ah não,Pedro!

– Não vou te beijar até você me elogiar direito,esquentadinha. – Fingiu um tom autoritário. – Anda,tô esperando.

– Não. – Provocou,beijando seu pescoço. Pedro resistiu e se afastou. – Ah,vai te catar vai.

– Eu vou é te catar,isso sim. – Ele a puxou pela cintura,sussurrando baixinho em seu ouvido.

– Duvido.

– Ah é? Então corre! – E saiu em disparada atrás dela.

– Ai,socorro gente! – Gritou,antes que Pedro a ancançasse.

– Terra chamando Pedro! – Rominho estalou os dedos na frente dele,o fazendo voltar a realidade. – Você ouviu o que a gente disse,cara?

– Erm....não. – Respondeu,e Sol revirou os olhos.

– Vai ter uma batalha de bandas no próximo mês,e nós tamos querendo participar. Cê tá dentro,né? - Lucca perguntou.

– Pode ser. – Respondeu,visivelmente desanimado. – O que vocês decidirem tá bom pra mim.

– Eu não tô acreditando no que eu tô ouvindo... – Sol bradou. – Até quando você vai continuar assim,Pedro?

– Assim como? – Se fez de desentendido. Tudo o que ele queria era evitar uma discussão aquela altura.

– Desanimado,perdido,desligado.... – Ela começou a listar,mas Nando a impediu de continuar.

– Meu caro Pedro,nós sabemos que a situação que você tá passando é barra,mas você tem que reagir!

– Eu não quero reagir,muito menos a opinião de vocês! – Pedro gritou,sem paciência pra ouvir mais nada. – Eu quero a Karina,eu preciso dela de volta.... – sussurrou a última parte mais para si,e viu os amigos o encararem com pena.

– Se a gente puder fazer alguma coisa pra ajudar... – Paula deu a deixa.

– Vocês não podem. – Pedro foi direto,pegando sua guitarra e colocando nas costas. – Ninguém pode. – E saiu de lá.

– X –

Karina tentava a todo custo cuidar de seu jardim,mas suas flores estavam mais sem vida do que ela.

Ela sabia que elas só voltariam a ser como antes quando seu estado de espírito melhorasse e sua aura voltasse a brilhar,mas também sabia que isso só aconteceria quando conseguisse ter Pedro de volta.

Uma chuva sem fim,seguida de vários trovões rodeavam sua nuvem. Ela nem mais se importava,apenas absorvia cada som estridente,numa tentativa falha de se esquecer das lembranças da Terra.

Ah! Que bom seria

Se eu pudesse te abraçar

Beijar, sentir

Como a primeira vez

Depois da resposta de Gael,João tentou ampará-la,mas ela não deixou. Tudo o que ela precisava era ficar sozinha,acompanhada de sua dor. Nunca imaginara que completar aquela missão seria tão difícil. Sentia falta da presença,de seu toque,seu abraço. Acordar e não ver seu sorriso lhe tirava o sono,não ouvir seu riso mandava sua sanidade pro espaço,sua santidade ela já havia perdido.

Te dar o carinho

Que você merece ter

E eu sei te amar

Como ninguém mais

Ela teve certeza que Pedro mudaria sua vida por completo,assim que seus olhares se cruzaram. Já estava cansada de saber que seus atos teriam consequências,mas uma delas fora inesperada para ela.

Seu histórico na Terra foi a julgamento no Ministério dos Anjos e Santos. Sua pena foi a prisão perpétua,ou seja,ela nunca mais poderia colocar os pés na Terra,ou em qualquer lugar que houvesse a presença de humanos. João entrou em sua defesa,alegando o sequestro de Lúcifer,e recorreu no caso,estando agora sob análise do juiz de paz.

Durante todos aqueles dias,ela não conseguira falar com ele. Ele praticamente sumira das nuvens,não a procurou ou nada do tipo. Ela estava reclusa e incomunicável,ficando impedida de ir atrás dele. Estava completamente sozinha.

– O que houve por aqui? – A voz que ela menos esperava ouvir ecoou pelo lugar. – Olha só pra essas flores,estão.....sem brilho,estão...

– Mortas,Fira. – Karina foi direta e amarga. – Pode falar,não vai cair o mundo.

– Você sabe que eu prefiro usar outros termos. – Explicou,mantendo a voz serena. – João me contou que você fez um ótimo trabalho com as flores na Terra,isso é verdade?

– Se ele te disse,é porque deve ser. – Caminhou sobre seu jardim. – O senhor santo certinho nunca faz nada de errado,né? Ah,esqueci....Ele só abandona as pessoas,quando elas precisam dele.

– Oh,querida. – Fira disse,deixando claro sua compaixão pela loira esquentada de Pedro. – Sei que está magoada com o João,mas você precisa entender que não está sendo fácil pra ele também...

A imagem de Bianca enfim lhe veio a mente,e ela se sentiu mal por julgar o amigo,só pensando nela.

– E-eu não quero saber daquele traidor! – Engoliu as lágrimas uma a uma. – A única coisa que eu quero,eu não posso ter.

– Você sabe que é melhor assim,minha luz...

– Melhor pra quem? – Bradou,deixando a saudade e o desespero falarem mais alto. – Pra mim,não foi,e vocês sabem disso.

Ela não aguentava mais. Seu mundo não existia sem Pedro,o que a faz vencer seu orgulho e ir até Fira.

– Fira,me deixa ver o Pedro,pelo amor de Deus. – Implorou. Dizer o nome de seu superior em vão era o menor de seus problemas naquele momento. – Eu sei que você pode fazer isso! Eu faço o que você quiser,mas me deixa ver ele.

– Ah,Careina... – Fira estava dividida entre fazer o certo e ajudar a pequena anjo. Havia prometido a João e Gael que não faria nada até que tudo estivesse em ordem,mas ao ver seu estado,ela não conseguiu recusar.

– Promete que não conta pra ninguém? – sussurrou,olhando para os lados,para ter certeza que os dois não estavam por perto. Ela prometeu de imediato. – Está bem,mocinha! O que eu não faço por você?

– Aaaah,Fira! Muito,muito obrigada! – Sentiu a vida lhe sorrir novamente,e um dos botões de sua roseira floresceu com sua felicidade.

– O João e o anjo Gabriel vão me matar.... – Fira disse,sem pensar.

– E o que eles tem a ver com isso? – Ela perguntou,sem deixar de achar aquilo muito estranho. Logo tratou de esquecer,estava prestes a ver Pedro e nada atrapalharia a felicidade que estava sentindo.

Só uma coisa poderia lhe tirar o chão naquele momento. E o pior aconteceu,fazendo ela se lembrar que Pedro não era bom com promessas.

Fira abriu o portal,fazendo a loira recordar aos poucos da Terra. Procurava por Pedro ansiosamente,em meio a noite estrelada,mas quando o achou,não conseguiu conter um grito de dor,muito menos sua decepção. Tudo ao mesmo tempo.

– NÃO! – Ela gritou,sentindo cada parte de seu corpo responder ao que seus olhos viam. – PEDRO!