O Retorno Dos Mortos escrita por Flavia


Capítulo 2
Podres de alma


Notas iniciais do capítulo

Mais um capitulo! Amei os comentarios do capitulo anterior, obrigada! Boa leitura!



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O mundo se transformou completamente. Os habitantes mudaram e a cadeia alimentar também. Pessoas matam pessoas sem nenhum tipo de ressentimento ou piedade. Matam criaturas que já foram iguais a elas, que já tiveram uma historia por trás da podridão que se tornaram. Criaturas comem pessoas como fosse pizza em um fim de dia cansativo do trabalho. Está tudo errado e fora de controle. Hoje, vendo a nossa realidade, acredito que não temos salvação. Os sinais estavam claros, mas todos foram cegos em não perceber. Agora não temos o direito de reclamar. O inevitável aconteceu. A bomba relógio chegou ao seu ultimo segundo e explodiu. O que nos resta é sobreviver com o melhor que ainda temos. Por isso não deixo de agradecer por mais um dia de vida, apesar das circunstancias, viver já é um bom motivo para agradecer.

Não tinha percebido o quão com cede estava até aquela manhã. Minha boca estava seca, implorando por uma mísera gota de água. Como estava sem nada, decido passar na loja de conveniência. Mas antes, vasculho minha bolça atrás da escova de dente amarela. Não é legal escovar os dentes sem água, mas tudo que menos preciso é uma dor de dente em meio ao fim dos tempos.

Dentes escovados, mochila nas costas e Katana nas mãos. Com cuidado abro à porta e fito a rua. Está tudo como antes, tudo muito silencioso. Esse fato me incomoda mais uma vez. Ignoro e atravesso a rua em passos apressados, deixando a casa e sua historia para trás. Apesar de estarmos em meio a um apocalipse, tento pegar as coisas boas. Difícil achar algo bom nisso tudo, mas não me deixo levar pelo desespero. Começo cantarolar uma musica que ouvi no rádio antes dele sair do ar. Pego a barra de chocolate e começo a comê-la sem pudor algum.

O sino da loja toca denunciando minha chegada. Passo pelos corredores, assoviando. A agua é o produto que acaba mais rápido, todas as prateleiras que deviam conter as garrafas, estavam completamente vazias. Frustrada, avisto duas pequenas garrafas jogadas no alto do suporte de ferro. Não tenho muita dificuldade para pega-las. Minha estatura ajuda bastante.

Grunhidos são ouvidos. Como reflexo pego minha Katana e olho para onde o barulho vem. Pela parede de vidro da loja vejo cadáveres ambulantes. Mas não é um pequeno e simples bando. É um grande e faminto bando. Nunca tinha visto tantos. Os gemidos aumentam, e eu me jogo no chão.

Medo. Medo é tudo que você pode sentir em um momento como aquele. Você pode ser o mais corajoso e o fortão do grupo, mas você ira sentir o medo. Mais cedo ou mais tarde. É inevitável. E não digo o medo que costumávamos sentir antes disso tudo, mas sim, o medo puro. Aquele que te faz mais esperto. Uma coisa é certa: desde o dia em que o primeiro cadáver se levantou e fez de sua refeição carne humana, o medo e você andam de mãos dadas, lado a lado.

Arrastando-me, sento atrás de uma prateleira. Posso ver sombras no chão, e ouvir seus grunhido e passos lentos. Não tinha percebido, minha mão está molhada e meu coração parece querer sair do peito.

Esse não é o primeiro bando que enfrento sozinha, mas sim, o primeiro bando gigantesco. Eu sabia que isso iria acontecer em algum momento. Só não esperava que fosse agora. Vejo que existe uma porta dos fundos, vou com todo cuidado até ela. Esta trancada, mas a rua de trás está limpa, sem sinal de infectados. Quando volto à frente da loja, vejo apenas três das coisas passando. O bando deve ter seguido seu rumo, e eu também devo seguir o meu. Não quero ariscar encontra-los de noite. Seria suicida.

Prendo meus cabelos castanhos – que estão bem sujos – no alto da cabeça. Irão me atrapalhar se precisar correr. Pego a Katana, e respiro profundamente. Estou nervosa e com medo. O sino toca quando abro a porta. Maldito sino. As três coisas percebem minha presença e vem em minha direção, gemendo. Olho mais distante e vejo que o grande bando continua seguindo seu caminho.

Calma, são apenas três. Você consegue lidar com isso.

O primeiro Infectado chega até mim, e eu passo a espada pelo seu pescoço, o derrubando no chão. Prestes a acertar o próximo, um deles esbarra em um carro estacionado, ativando o alarme. Todo o ar que estava em meus pulmões desaparece. Meu coração acelera quando o bando para sua caminhada e me vê. Seus passos se tornam apressados e arrastados em minha direção.

– Droga – digo, batendo o pé no chão.

Acerto um que está perto demais, e corro. Sou surpreendida por um buraco, meu pé afunda nele e uma dor intensa percorre meu nervo. A Katana voa para longe, tento levantar, mas dor é forte demais. Caio mais uma vez. Infectados estão mais próximos, com uma fome avassaladora.

Uma vez me disseram que, se caso der de topa com um numero pequeno dessas coisas, eles parecem inofensivos e fáceis de lidar, mas se topasse com um bando como esse que está vindo em minha direção, certamente estará perdido. Agora eu entendia o “estar perdido”, não sabia o que fazer. Eles se aproximavam e eu me arrastava para trás. Até dar de topa com uma parede. Final da linha para mim. É isso.

Não sou de desistir fácil, mas o obvio vai acontecer a partir de agora.

Se pudessem, suas bocas estariam salivando, como cachorros de rua observando frangos girando em fornos de restaurantes. Só que no caso dos cães, eles não podem morder e arrancar pedaços do frango, o máximo que conseguem é um osso.

Exatamente isso. Sou um frango pronto para ser devorado.

Meus olhos enchem de lágrimas. Isso é bobagem, eu sei. Chorar não salva ninguém, nunca salvou e não é agora que vai salvar. Aquela coisa não vai deixar de arrancar um pedaço da minha carne, para passar a mão nos meus cabelos e dizer que vai ficar tudo bem. Ele não é mais um ser humano racional, e sim um caçador atrás de sua caça. Que no caso sou eu.

A boca de um deles está centímetros do meu tornozelo, quando é ouvido um tiro e seu corpo nojento cai para esquerda. Os mais próximos de mim também são atingidos com precisão na cabeça. Sangue voa no meu peito, e por um momento fico paralisada.

Sinto duas mãos impulsionarem meu corpo mole para cima. Os tiros continuam, enquanto tento ficar em pé e achar minha Katana. Meu pé dói e eu vacilo. Parece que tudo está girando e em câmera lenta. Não consigo assimilar coisa com coisas. Estou em choque.

– Tyler, a carregue, e deixe que eu os mato – uma voz masculina diz.

Os tiros seção por um tempo. Duas mãos me envolvem, e sou tirada do chão. Tiros voltam a ser ouvidos. Conforme a pessoa que me carrega corre, meu corpo balança. A escuridão toma conta de tudo, e simplesmente apago.

***

Parece que um caminhão passou pelo meu corpo milhões de vezes. Estou detonada e exausta. Mexo e sinto que estou deitada em algo mole. Se soubesse que é tão confortável morrer, teria deixado àqueles bichos me morderem na primeira oportunidade.

Abro os olhos e vejo uma garota de olhos castanhos me encarando. Parecia ter em torno de 10 anos. Estou dentro de uma barraca verde. E não estou morta. O que é bom. Aos poucos lembro- me do acontecido. Suspiro.

Ela se aproxima e eu recuo. Mesmo ela tendo 10 anos. Não sei quem são essas pessoas. Já encontrei muitas pessoas boas, mas tenho receio, podem fazer algum mal a mim.

– Não vou te fazer mal – ela estica a mão em frente ao meu rosto, e mostra dois dedos. – Quantos dedos têm aqui?

Sorrio para ela.

– Dois – digo.

Ela sorri, e se afasta.

– Hannah?!

O rosto da garota enjerisse. Vejo uma sombra se aproximando da barraca, passo a mão ao meu lado na tentativa de achar a Katana. Reflexo de se virar sozinha por muito tempo. O zíper se abre, mostrando uma mulher. Tinha a aparência cansada e enrugada. Com certeza causada pelo cansaço, porque não daria mais que 40 anos a ela. Ela sorri cordialmente.

– Vejo que Hannah te acordou. Volte a dormir – ela diz. – Hannah, venha, deixa a moça descansar.

A pequena sai da barraca. Sento-me e coço os olhos. Essas pessoas não parecem querer fazer algum tipo de mal.

– Obrigada por terem me ajudado – digo gentilmente.

– Agradeça mais tarde aos rapazes.

Minha barriga faz barulho, chamando sua atenção. Faz tempo que não como. Última coisa que comi foi o chocolate pela manhã, e agora já está anoitecendo. Meu Deus, eu dormi muito. Que vergonha.

– Que cabeça a minha. Você deve estar faminta.

Fito o chão, envergonhada.

– Venha. Vou prepara algo para você comer. – Ela aponta para meu pé enfaixado, e diz: - Enquanto dormia, cuidei de seu pé. Espero que não se incomode.

Ela sai da barraca, e eu a sigo. Meu pé não dói tanto, mas ainda sinto um leve ardor que me obriga a mancar. Estou um pouco receosa. O lugar que eles estão acampados é bem perto da cidade. O que me preocupa. Existem quatro barracas espalhadas, um trailer e um carro. Próximo ao trailer e embaixo de uma árvore há uma mesa improvisada.

Sento-me. Ela mexe em alguns potes, e coloca comida em um prato. Bate a mão na roupa para tirar a sujeira, e empurra o prato de plástico em minha direção. Fito a comida. Fazia tanto tempo que em não comia comida de verdade. Tinha arroz, uma carne e algumas folhas. O cheiro estava delicioso.

– Faz tanto tempo que eu não como comida de verdade – comento.

Ela sorri, e se senta em minha frente.

– Primeiramente quero saber seu nome e como você foi parar naquela enrascada? – ela cruza o braço sobre a mesa. O sorriso gentil não abandona seu rosto. – Foi por pouco.

– Meu nome é Emily – coloco uma colherada na boca. – Nem eu sei. Eles brotaram. Quando entrei na loja não tinha nenhum, de repente estava infestado e eu estava caída no chão. Foi tudo muito rápido. Pensei que iria morrer.

Ela concorda.

– Como é o nome da senhora?

Ela ri e abana a mão no ar, quando diz:

– Senhora não. Sinto-me uma velha, pode me chamar de Susan – sorrio. - Para onde está indo?

– Memphis – respondo sem hesitar.

Susan parece pensar. Começo a comer novamente. A comida cai perfeitamente no meu estômago faminto. Ela me observa com um imperceptível sorriso, devo estar parecendo uma porca comendo. Mas não me importo.

O som de pneus enfurecidos preenche o silencio da mata. Susan levanta imediatamente com uma cara assustada. Paro de comer no mesmo instante e olho para o mesmo lugar que ela. Um carro freia bruscamente. O motorista deve ser “barbeiro”. A porta do passageiro bate com delicadeza, mostrando um homem aparentemente com a mesma idade que Susan. Ele está com uma cara tão assustada quanto à dela.

Da porta de trás sai uma mulher com longos cabelos morenos. Ela perece ter saído daqueles filmes de ficção cientifica. Uma roupa perfeitamente ajustada ao corpo mostrando suas curvas perfeitas, na mão segura uma arma grande – que eu nem sei como pega. Ela sustenta uma expressão prepotente. Decido que não gosto dela. Talvez ela me intimidasse, mas claro que isso nunca iria sair pela minha boca.

Susan sai de seu lugar e passa ficar em minha frente. Escuto a porta do motorista bater com força. Levanto. Um garoto aparentemente com 20 anos sai furioso. Nunca precisei de ninguém para me defender – tirando o acontecimento de hoje mais cedo -, e não seria agora que precisaria. Não sou nenhuma criança, sei me virar muito bem sozinha. Então o que fosse para enfrentar, eu enfrentaria. Sozinha.

Ele é bonito. Eu não devia ter prestado atenção nesse detalhe, até porque ele vem com raiva pra cima de mim. Seus olhos verdes estão esbugalhados e suas mãos fechadas em punhos, deixando os nós dos dedos branquinhos. Ele joga a arma que carregava para a garota morena, que pega como se soubesse que ele jogaria. Seus passos são fortes, quando é impedido.

– Não vá fazer besteira – o mais velho diz. Lembro-me dessa voz, foi a que ouvi no meio da confusão.

Ele se solta brutalmente e para alguns passos de mim. O encaro. Não deixo transparecer nenhum vestígio de medo, mesmo sentindo.

– Estou com vontade de te matar – ele diz, tentando controlar a voz.

Não me recordo de ter dado motivos para isso. Garoto maluco.

Sorrio e aponto para a arma na mão da garota. – Então mata.

Gargalho mentalmente ao ver seus olhos se estreitarem.

– Não brinca comigo, garota. – ele grita. Odeio gritos. Me esquivo quando ele dá um passo em minha direção. – Quero você fora daqui, agora – formou uma roda envolta de nós.

Não que fosse minha intenção ficar, mas o sol está quase se encostando ao horizonte, e sair seria suicídio. Acho que agora o medo conseguiu transparecer. E ele percebeu.

– Tyler, para com isso – Susan diz.

– Eu devia ter deixado você ser devorada por eles, daí sim você estaria no lugar que pertence, no de perdedora – ele grita mais uma vez. Aquilo me machuca. Mais do que o esperado. Principalmente vindo de alguém estranha. Não satisfeito, continua: - Aqui não tem lugar para você. Aqui só fica quem é bom, e não para garotinhas indefesas.

Os gritos dele são altos. Quem ele pensa que é para falar assim comigo? O que eu fiz para ele?

Engulo seco. Olho para todos que me fitam esperando uma reação. A garota parecia prender o riso. Susan e o senhor me olhavam como se pedissem desculpa. O outro casal e Hannah estavam assustados. Já Tyler parecia ter se aclamado depois do surto.

Olho para Susan e o senhor, e digo:

– Obrigada – aponto com a cabeça para o prato de comida ainda cheio. Minha fome simplesmente sumiu. Olho para Tyler e digo: - Obrigada pela ajuda.

Todos ficam surpresos com a minha reação. Mas sempre fui uma pessoa controlada, não vou deixar de ser só porque pessoas resolveram comer pessoas.

Sorrio e ando em direção a cabana que estava. Antes de sair eu vi que minha mochila estava ao lado. Precisava dela.

O mundo pode estar acabando, mas eu ainda tenho meu orgulho. Não fico mais nenhum segundo nesse lugar. Mesmo que for arriscar minha vida sair nesse horário. Sempre fui sozinha nesse mundo, e agora não seria diferente. Nunca precisei de ninguém. Muito menos de um rapaz que resolveu se tornar revoltado justamente em um apocalipse. Pela primeira vez alguém me fez sentir pena. A pior coisa de sentir por alguém. Só espero que ele seja capaz de fazer pessoas sentirem outras emoções por ele. O mundo está ruim demais abrigando pessoas podres de carne, para abrigar também pessoas podres de alma.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Digam-me! Críticas e elogios são sempre bem-vindos.



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