Despedindo-se de Peter Pan escrita por Evangeline


Capítulo 2
II - Rotina


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez: mil obrigadas para Halima Sheeran e Gengibre, que comentaram rapidinho e me fizeram uma doidinha mais feliz! *0*



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Na manhã seguinte eu simplesmente ignorei a presença ou ausência do Pan, e apenas fui tomar meu banho e meu café-da-manhã. Mark já havia voltado, como de costume, e estava dormindo, o que também era completamente normal. O Mordomo da casa me deixou em completa paz naquele domingo de manhã chuvoso.

Não havia mais raios ou trovões, mas a chuva não se deixava esconder e seu som maravilhoso me perseguia por toda a casa. Não que eu estivesse andando muito, na verdade apenas fui ao meu quarto, à cozinha e de volta à biblioteca. Para ser sincera, eu já havia até mesmo esquecido da presença de Pan, lembrava de tudo como um sonho antigo, mas ainda assim não me surpreendi ao encontra-lo no segundo andar da biblioteca, dormindo encostado à uma parede entre duas estantes.

Eu ri ao ver a cena, pois ali era onde eu costumava esconder-me de meus pais, e eu lembrava como se fosse ontem.

...

Corri o mais rápido que pude até a biblioteca e subi as escadas até o andar de Literatura, onde sentei-me encolhida entre aquelas duas prateleiras.

Eu conseguia ouvir a conversa de Mamãe e Papai, mas preferia não fazê-lo e apenas tapar os ouvidos com as mãos. Eles queriam me mandar para a escola! Eu não queria ir para a escola, eu queria ficar em casa.

– Menina Mary? – Chamou uma voz terna e rouca, fraca e acolhedora. Era o único membro da família que me entendia.

Olhei para meu avó com os olhos molhados e ele me sorriu compreensivamente.

– O que faz a minha menininha chorar? – Ele perguntou fechando o livro que segurava e se sentando bem na minha frente.

– Eu não quero ir para a escola. – Confessei como se fosse o maior crime do mundo.

– Ora, e que mal há nisso? – Perguntou meu avô sorrindo-me, e me fazendo sorrir de volta. Quando eu menos esperava, lá estava ele me contado alguma história fantástica e me protegendo de todo o mal do mundo.

...

Era extremamente irônico lembrar de meu avô olhando para aquela cena.

Enquanto Vovô Tom me protegia de tudo o que há de ruim, eu mesma acolhera um criminoso ali, na amada biblioteca dele. Embora parecesse extremamente errado, eu acreditava que ele me entenderia, mesmo eu não entendendo.

Pan só acordou depois das 10h da manhã, enquanto eu estava estudando. Me incomodou o suficiente para que eu fosse buscar comida para ele, e eu fui, mas não por obediência.

Quando chegou a hora do almoço eu chequei a casa para ver se tinha alguém além dos empregados, mas tudo era previsível demais. Meus pais saíram para almoçar e meu irmão ainda estava dormindo. Ao ver que estava seguro, levei Pan ao meu quarto para que ficasse escondido lá enquanto eu almoçava e tentava trazer algo para que ele comesse.

– Ei, aquilo é um banheiro? – Ele perguntou apontando para uma porta dentro do meu quarto. Eu franzi o cenho e neguei com a cabeça.

– Aquilo é o meu closet. O banheiro é aqui... – Eu mostrei-lhe uma porta escondida, camuflada à parede, que ficava na parede oposta a do closet.

Ele soltou um murmúrio sobre algo e voltou-se para mim antes que eu saísse do quarto.

– Posso tomar um banho? – Perguntou, me deixando sem reação. Ele estava pedindo permissão para algo, o que já era surpreendente para alguém rude como ele. Mas pior, estava pedindo permissão para tomar banho no banheiro do meu quarto.

– Ahm... – Eu hesitei, pensando por um momento. – Pode... Tem toalha no armário debaixo da pia. – Eu falei e saí do quarto, ainda estranhando a atitude dele... ou melhor, a educação dele. Tranquei a porta e segui pelo corredor, com a mente divagando.

Ri um pouco sozinha e fui conseguir algo para ele comer. Quando voltei ao quarto com uma bandeja pequena com o meu almoço e o dele, coloquei-a em cima de minha cômoda e fechei a porta cuidadosamente, trancando-a.

Quando me virei para avisar que havia chegado, encontrei um Pan limpo saindo do banheiro e enxugando o cabelo.

Ele estava com a mesma calça jeans de antes, mas sem camisa e com a toalha pendurada no pescoço, enxugando o cabelo violentamente com as duas mãos. Seria eufemismo demais dizer que ele estava com algumas gotas pelo peito, porque na verdade ele parecia não ter sequer enxugado aquela região. A luz do quarto e a recém “limpeza” me permitiram ver os cabelos castanhos semi-ruivos que ele tinha.

Eu tapei os olhos com as mãos antes que começasse a observar demais.

– Está louco, garoto?! – Perguntei assustada. – Vá se vestir, coloca qualquer coisa! – Eu mandei, virando de costas para ele e ouvindo-o rir abertamente, uma gargalhada divertida e maliciosa.

– Deixa de frescura! Nunca viu um cara sem camisa?! – Perguntou, se aproximando de mim. Percebi que estava mais perto por causa de sua voz.

– Que tipo de bandido é você afinal? – Eu perguntei, ignorando a pergunta dele e cruzando os braços. Mas é claro que eu já havia visto homens sem camisa! Sempre li romances e é claro que não são de todo inocentes.

– Do tipo ladrão. – Ele disse inesperadamente perto demais de mim e puxando meu corpo pelo quadril. Senti boa parte da extensão das minhas costas encostarem ao peito dele e seu hálito quente próximo ao meu ouvido. Meu corpo estremeceu por um momento e eu arregalei os olhos. Quem ele pensava que era?!

– Pois então vá roubar algo que você realmente queira. – Eu retruquei, me desvencilhando das mãos dele e abrindo meu closet. – Agora me dê licença, eu vou tomar banho. – Falei entrando no banheiro rapidamente depois de escolher a minha roupa.

Assim que fechei a porta, ouvi uma risada seca do outro lado e bufei revirando os olhos. O que tinha dado naquele garoto? Embora eu não o temesse, eu devia me manter cuidadosa, afinal, ele era um bandido, ele estava ali invadindo a minha casa, eu não sabia nada sobre ele.

Encarei o meu rosto no espelho e franzi o cenho. A trança que eu fizera pela manhã ainda estava intacta e logo me pus a solta-la. Eu encarava o meu cabelo castanho claro, invejando os fios quase ruivos do Pan.

Tomei meu banho lentamente, deixando que meus pensamentos vagassem por outros mundos, até que voltaram à Terra e pensei no meu amado avô. Vovô Tom havia morrido há menos de um ano, e eu ainda não suportava a dor da perda.

Deixei que as lágrimas escorressem e fossem lavadas pela água morna do chuveiro, e quando o fechei, passei um longo tempo apenas encarando o azulejo branco da parede. Parecia-me extremamente injusto que gente como o meu avô precisasse morrer, enquanto gente como meus pais estavam ali, vivos.

Não me sentia mais culpada por pensar na morte de maus pais e chegar a conclusão de que não me fariam falta. Mark herdaria a casa e os negócios, e eu seguiria a minha vida normalmente. Embora fosse um pensamento frio, era a realidade, e não havia nada mais real do que o meu desejo por ver meu avô mais uma vez. Abraçá-lo, ouvir uma de suas histórias...

– Dormiu aí?! – Gritou Pan do lado de fora, batendo na porta e me fazendo soltar um suspiro mudo. Eu peguei a toalha para me enxugar e não demorei a me vestir. Havia pego uma saia roxa, comprida, uma camisa de alças branca e um casaquinho fino, verde-água. Refiz a minha trança e logo saí do banheiro, encontrando Peter Pan, devidamente vestido, olhando para uns porta-retratos que haviam em minha cabeceira.

– Não parece ser muito feliz aqui. – Disse ele, olhando especificamente para uma foto onde a “família” estava reunida. Estávamos eu, Mark e nossos pais, numa premiação onde havíamos recebido oficialmente o título de nobreza na Inglaterra. Embora fosse uma conquista de todos nós juntos, nenhum de nós sorria.

Eu fiquei calada diante do comentário dele e apenas sentei na cama.

– Mary. – Ele chamou meu nome, pela primeira vez, me fazendo encará-lo. – Por que ainda está aqui? – Perguntou me fazendo suspirar e mais uma vez não responder. Ele deixou o assunto de lado e começou a falar sobre como o cabelo da minha mãe estava ridículo naquela foto, o que me fez rir um pouco.

Os dias se passaram daquele jeito. O inverno na Inglaterra parecia não querer que Peter Pan fosse embora, e conforme a semana ia se passando, eu ele também não queríamos que fosse. Ou melhor, nenhum de nós queria ficar.

Brigamos a semana inteira. Brigamos por causa de comida, brigamos por causa da ousadia dele, da minha indiferença. Brigamos quando ele quase foi pego pelo meu mordomo, e quando ele inventou de explorar a mansão. Brigamos quando eu mandei ele dormir no chão quando ele queria dormir na cama, e brigamos quando eu queria ler e ele queria fazer algo “divertido”, porque, por Deus, ele era realmente hiperativo.

Eu acabei pegando roupas de Mark para ele, roupas que meu irmão não daria falta nem em seus momentos mais sóbrios. Embora fossem um pouco grandes dele, lhe caíam bem e eram melhores do que ficar encarando Peter Pan sem camisa. Além do que o inverno estava logo ali, há uma janela de distância, e eu não queria nenhum bandido doente na minha casa.

Quando a rotina foi se estabilizando, depois de uma semana, Pan se acostumou com o meu estilo de vida e passou a me incomodar menos. Eu passava a maior parte do tempo lendo, e ele começou a respeitar isso.

Eu sentava numa cadeira, em uma mesa qualquer do segundo andar da biblioteca e abria o livro escolhido. Peter se sentava ao meu lado e deitava sobre a mesa, me encarando, ou encarando a página do livro. Muitas vezes acabava dormindo, ou perguntava sobre o livro quando via que eu pegava um novo.

– Não está funcionando, não é? – Ele perguntou, num certo dia. Eu abaixei o livro, confusa, olhando para o seu rosto apoiado no próprio braço, deitado sobre a mesa.

– O quê? – Perguntei confusa.

– Você não está conseguindo rir nem chorar com esses livros. – Falou por fim, me fazendo rir um pouco, como se uma criança estivesse me policiando sobre algo.

– É... Mas não tem problema. – Eu falei, conformada, voltando a ler o livro. Pude vê-lo negar com a cabeça e fechar os olhos. Ele parecia mais cansado naquele dia.

– Claro que tem. – Disse baixinho, com a voz mais rouca que o de costume. – Você já leu a maioria desses livros e não encontrou nenhuma história que satisfaça... Isso é um problema. – Falou seriamente, me fazendo fechar o livro e encará-lo, querendo ouvir mais sobre aquele pensamento.

– Então estar aqui é um problema para você, Pan. – Eu afirmei, usando a mesma lógica que ele, vendo-o levantar o canto do lábio. Ainda estava de olhos fechados.

– Talvez. Mas eu não estou numa busca sem resultados, estou numa pausa. – Ele retrucou. – Quando eu sair da pausa, continuo. Você não. – Argumentou. Ele estava certo, o que era espetacularmente estranho para mim.

– Mas tudo o que aprendo enquanto leio me ensina muito. – Eu tentei retrucar, mas ele não pareceu se convencer nem um pouco.

– Seu objetivo não é aprender. É chorar e rir, ao mesmo tempo, por causa de uma história. – Falou. – Você tem que se preocupar, isso é um problema terrível. – Disse mais divertido. Eu franzi o cenho por algum tempo, esperando que ele continuasse. – Ou a literatura mundial é uma porcaria, ou você tem um sério problema de frieza. Eu não sei qual opção é pior. – Ele falou segurando o riso e me fazendo rir. Por um instante pensei que ele falaria algo sério.

Ele riu junto comigo por algum tempo e eu lembrei do meu avô mais uma vez.

– Srta, Thatcher? – Chamou o mordomo, no térreo. Eu e Pan nos calamos em uma fração de segundo.

– Sim? -Respondi, sem aparecer da sacada.

– O Sr Louis chegou, devo manda-lo entrar? – Perguntou. Geralmente eu diria “Sabe que sim, mande logo”, mas desta vez fiquei grata por ele ter perguntado.

– Claro, estou descendo. – Avisei e o ouvir fechar a porta. Peter olhava para mim curioso. – Fica aqui em cima, e vê se não solta um pio. Não vai demorar. – Eu disse e comecei a descer as escadas.

Logo Sr Louis entrou na biblioteca com sua usual pasta embaixo do braço. Era um homem jovem e ganhava a vida como tutor particular. Ele sempre teve um interesse por mim e a minha “capacidade autodidata”, mas só tinha autorização pra parecer uma vez semana.

Tinha cabelos pretos sempre impecavelmente penteados para trás, compridos o suficiente para que alguns fios se escondessem na gola de seu sobretudo negro, como tudo nele, impecável. Tinha porte magro e postura exemplar, passos controlados e voz gentil, educada e macia. Os olhos claros por trás dos óculos fundos era algo que eu sempre gostava de notar.

– Boa Tarde, Srta Thatcher. – Ele me cumprimentou educado e gentil como sempre. Eu lhe sorri simpática.

– Boa Tarde. Como foi o caminho até aqui hoje, Louis? – Perguntei, era uma piada interna. Sempre que eu lhe perguntava ele precisava ser criativo o bastante para se superar.

– Eu diria que agradavelmente úmido. Estava pensando seriamente em banhar-me no caminho. – Falou me fazendo rir um pouco. Ele abriu a pasta em cima de uma mesa e começou a espalhar seus papéis. – Então, o que temos para hoje? – Perguntou depois de rir um pouco.

Eu fixei os olhos nos papéis tendo uma ideia estranha.

– Que tal um chá e biscoitos, Louis? – Perguntei. Ele pareceu surpreso e contente com a proposta.

Eu pedi ao mordomo, que diga-se de passagem chama-se Charles, que nos trouxesse um lanche com chã, suco, biscoitos, tortas e tudo o mais para nos trazer uma tarde agradável, e ele assim o fez.

Eu e Louis conversamos e lanchamos diante da grande porta da varanda. Falávamos sobre Sócrates, Platão, e claro, Shakespeare, seu favorito. Num momento de silêncio, Louis pareceu se perder em pensamentos, encarando a porta de vidro a chuva lá fora.

– O que pensa sobre a chuva, Srta Thatcher? – Ele perguntou.

– Me chame por Mary, Louis... – Eu o repreendi fazendo-o sorrir um pouco. – Bem... a chuva e parece agradável quase sempre. – Falei começando a ficar pensativa.

– Quase sempre? – Perguntou enfatizando o “quase”.

– As vezes as noites mais lindas e tempestuosas nos trazes notícias terríveis. Num dia ensolarados as pessoas evitam coisas ruins. – Eu comecei a falar, sem me importar de desabafar um pouco, mesmo que não sendo nada objetiva, como o meu tutor. – Parece que a chuva é um imã para coisas ruins... A chuva trouxe-me coisas horríveis, problemas, pensamentos... – Eu disse, pensando em meu amado avô.

– Entendo... – Sussurrou Louis. – A chuva me lembra um regador, Mary. – Ele disse. – Quando a terra está seca e rude, as gotas fertilizam o solo. As vezes os corações. – Falou.

Continuamos a conversa por mais algum tempo, e logo Louis se foi, deixando-me pensativa ali, sentada na mesa diante do que sobrara de nosso lanche.


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Notas finais do capítulo

O próximo quem narra é o Peter! Acho que posto ele amanhã ou domingo de noite.



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