Argo escrita por Marie


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Para a Ariadny.



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Argo

Tão logo aportaram na Trácia, Jasão descobriu a verdade sobre ela.

Deixara que Calais e Zetes lidassem com o vidente* e fora atrás do recruta magricela que quase nunca mostrava o rosto, Alexandre, e que, uma vez em terra firme, detinha do péssimo hábito de os despistar para só voltar para junto da tripulação quando o navio zarpasse.

Ao contrário de seu lar, na Tessália, onde as planícies eram muitas e o calor nada parco, ali reinavam as densas florestas em cadeias montanhosas e, vez ou outra, os sopros gelados vindos do norte.

Jasão perdera o rastro das pegadas de Alexandre duas ou três vezes por conta da sombra que os pinheiros lançavam no solo do bosque, mas muito pouco demorou até que deixasse a umidade da floresta e desembocasse num campo de oliveiras.

O Sol o cegou imediata e momentaneamente, fazendo-o consciente do calor vespertino. Contudo, não tardou para a fumaça vinda do noroeste desnorteá-lo com o cheiro de louro sendo queimado; com o cheiro das sacerdotisas de Apolo.

No princípio, quando viu a túnica de Alexandre jogada ao chão, achou que a sacerdotisa, ao longe e de costas para ele, tivesse sacrificado o garoto ao seu deus. Todavia, logo que se aproximou o suficiente para entender que a única coisa a vesti-la era o longo e espesso cabelo, algo o acometeu e ele jamais saberia dizer se fora o sentimento de traição que desencadeava a fúria, o pânico por ter sido tolo e concordado em arriscar a vida de uma menina ou mesmo o orgulho por ela ter, e não apenas uma vez, salvado toda a tripulação.

— Salve o meu príncipe – ela entoava em sua prece e Jasão demorou para compreender que falava dele, pois, se fosse quem pensava que era, a garota não nascera na Tessália. – O tio aproveitou-se de sua honra e, como ardil, o instigou para uma missão impossível. Salve o meu príncipe, deus Apolo. Salve o meu príncipe com a sua magia.

O corpo dela se convulsionava e seus olhos permaneciam fechados. As folhas de louro queimando no braseiro, sendo inaladas por seu corpo e lhe envolvendo a nudez em fumaça. Jasão sabia que aquilo era o alimento das visões e sabia também que viciava. Os tolos diziam que causava a loucura, os sábios insistiam que era sagrado.

Abaixando-se, recolheu a túnica e, só então, aproximou-se dela. Tocou-a no ombro, a pele fria o assustando quase nada em comparação ao horror em seu rosto ao vê-lo. A garota encolheu-se no chão, cobrindo o corpo precariamente com suas mãos de dedos machucados pelo cordame do navio.

— Venha, Atalanta – foi tudo o que disse ao estender para ela o tecido de um azul agora desbotado.

— C-como...? – os olhos escuros ainda desfocados, entorpecidos. Os cílios trocando carícias entre si enquanto, abobalhada, ela piscava. Um dos lábios sangrando provavelmente porque, entretida com sua prece, ela os mordia. As mãos maltratadas tateando o tecido e desajeitadamente vestindo-a com ele... Era impossível esquecer-se do nome de alguém assim.

— Eu estava lá. Entre os convocados por Meléagro* para caçar o javali de Cálidon. Orei para a deusa Ártemis e, mesmo assim, a minha lança atingiu-o e não o matou; muitos foram mortos; Nestor e Télamon fugiram; Teseu atirou a lança e errou o alvo; meus dardos também não atingiram a fera... No entanto, você conseguiu flechá-lo e Meléagro pôde, enfim, cravar a lança no dorso dele. Você era veloz – e, enquanto corria, um tom rubro tingia-lhe a alvura da pele, tal como uma cortina carmesim lançada sobre uma parede de mármore*, pensou, mas nada disse.

Ela amarrou os últimos cordões das vestes sujas de terra e, cobrindo o rosto com o capuz após prender os cabelos e escondê-los, ergueu o rosto com o medo e o receio transformando-se em resignação.

— Estou expulsa?

Jasão afastou-se um passo antes de dar-lhe as costas e, ao se virar, viu lágrimas em suas bochechas.

Apenas quando entrou na floresta, com o por do Sol riscando de púrpura o dourado das nuvens, é que virou-se e estendeu a mão para a figura encapuzada aos pés do pequeno braseiro, apagado pelas primeiras gotas da chuva vinda do sudeste.

— Venha como Alexandre ou como Atalanta, mas venha, caçadora – ela imediatamente correu para ele, com oliveiras e louros esquecidos e deixados para trás, e Jasão sorriu.

***

Atalanta, não te cases, pois o casamento será a tua ruína*, havia sido profetizado. Mas o que não era uma ruína em sua vida? O odioso pai, por desejar apenas filhos homens, abandonara-a no monte Partênio tão logo nascera e Atalanta fora criada por caçadores; entretanto, nada havia sido tão terrível quanto aquilo.

Não soube quem a descobrira, mas tinha certeza de que seu príncipe não a deletara e isso fê-la não entrar em pânico imediato. Hércules puxava-a pelos cabelos escada a cima, as roupas dela pendendo rasgadas na cintura, e toda a tripulação via, atraída pelos gritos de Atalanta. A força da mão dele arrastando-a doía, só que Órion subindo logo atrás deles e olhando para ela daquele modo horrível lhe assustava muito mais.

Hércules jogou-a sobre a madeira fria.

Quando Jasão a viu, Atalanta soube que estava em pânico. Porém, foi Heitor, o príncipe troiano, quem se pronunciou contra Hércules.

— Vistam-na!

— Ela fingiu ser homem para... – Hércules começou, mas Heitor o interrompeu:

— Não me interessa quem ela é ou o que fez, mas é uma mulher sozinha entre muitos homens – além de Idmo, Orfeu e a própria Atalanta, Heitor estava sob a proteção de Apolo. Falava quase nunca e quando o fazia não havia quem não o escutasse. – Repito: vistam-na!

— É Jasão o líder aqui, não você – Teseu se intrometeu.

— E o protegido de Hera jamais permitiria que uma mulher fosse tratada desta maneira! – foi o argumento final de Heitor e o rosto de Hércules se recontorceu em repulsa.

— Não fale daquela...

— Basta! – Jasão fez-se ouvir, muito embora não tenha gritado – Heitor está certo, vistam-na.

Foi o próprio príncipe de Tróia quem veio até ela e foi a parte de cima de suas próprias vestes que ele usou para cobri-la. Quando Atalanta se encolheu na roupa empapada em suor, Heitor se ergueu e prostrou-se ao lado dela.

— Ela é uma mulher. Não pode ficar no navio. Não trará boa sorte – Atalanta não virou-se para encará-lo, contudo, sabia que Órion não tirava os olhos dela ao falar.

— O que você pensa que sabe sobre a boa sorte, Órion? – os olhos de Jasão eram ou gelo, ou mármore, ou qualquer coisa dura e fria. Falava entredentes, o maxilar travado – Se Atalanta houvesse nos trazido azar, não acha que já estaríamos todos mortos?

Silêncio.

— Mas não estamos, não é? Nenhum de nós. E, se me lembro bem, foi ela quem nos salvou inúmeras vezes – e ele acrescentou, movendo o rosto levemente para a esquerda: – Inclusive a você, Teseu. As Simplégades* teriam nos matado a todos se a presença dela fosse mesmo de má sorte.

O silêncio foi curto desta vez. Castor (ou Pólux, Atalanta jamais saberia distingui-los. De todo modo, era um dos príncipes de Esparta) o interrompeu com o que deveria ser a dúvida de todos:

— Quem é Atalanta?

Jasão riu.

Atalanta, não te cases, pois o casamento será a tua ruína, e ela sabia que seria, porém, às vezes, ao olhá-lo, era difícil se conformar.

— É Alexandre.

E, naquele instante, ela soube que havia uma diferença entre silêncio e som algum.

Jasão fechou os olhos e tragou os ventos salgados da maresia. Quando tornou a falar, sua voz era um suspiro e um grito de comando ao mesmo tempo.

— Atalanta fica e qualquer um que tiver algo contra ela ou Hera, sinta-se à vontade para deixar o navio agora mesmo. Quatro horas remando numa canoa sem quaisquer provisões fará com que aprendam a respeitar mulheres e deusas.

 O porto de Mísia, com suas lagoas e jardins floridos, já não estava tão longe. Hércules, Iolau, Hilas, Potas, Filoctetes (estes quatro últimos apenas pelo laço de sangue ou amizade com o primeiro), Órion e Teseu remaram para lá em três canoas enquanto o Argo seguia para Cólquida.

***

— Assumam seus postos! – Jasão gritou.

A tempestade veio de súbito. Intensamente violenta e incessante. Raios ribombavam no céu, competindo com Orfeu e suas melodias encantadas que deveriam revigorar a tripulação.

Viu Argos, ao timão, esforçar-se para estabilizar o navio enquanto Calais e Zetes procuravam amainar as velas. Etalides e Equionte tentavam livrar o navio da carga desnecessária e Idmo insistia:

— Ártemis. Temos que fazer um sacrifício para a deusa Ártemis. Só ela pode convencer o mar revolto a se tranquilizar.

Eufemo e Periclimeno trocaram um olhar. O primeiro falou.

— Pode funcionar, mas que sacrifício faríamos?

Mais uma onda veio e mais água entrou no navio.

Atalanta entregou para Peleu as cordas que estava puxando e correu para as escadas gritando:

— Eu sei o que fazer!

***

Jasão sentia os ouvidos zunindo e latejando, o coração contraído e a mente negando-se a conceber a imagem dela ensanguentada no chão da cabine.

O navio tombou para a direita e ele foi junto, mas não tinha tempo para cair, para se sentir zonzo... Sequer tinha tempo para entender o que estava acontecendo.

Esmurrou a porta e nada aconteceu.

— Atalanta, eu ordeno que saia daí imediatamente!

***

Doía. E como doía. As linhas em sua perna queimavam como fogo e doíam como o corte de uma lâmina afiada, mas eram da cor do luar.

Eram três e em vertical; a primeira, do tornozelo ao joelho; a segunda, do tornozelo à panturrilha; a terceira, da panturrilha ao joelho. Faltava uma quarta; em forma de círculo e envolvendo todas as três, mas Atalanta não tinha forças para prosseguir com seus votos.

Tudo era negro e opressor. Fora de foco e ruidoso. Abafado e, ainda assim, frio. Jasão estava prestes a derrubar a porta, ela sabia e rezava por isso. Não queria ter que passar por mais dor, não queria viver sozinha para todo o sempre, não queria... não queria... não queria. Mas, porém, contudo, entretanto, no entanto...

Atalanta, não te cases, pois o casamento será a tua ruína.

— Eu juro – disse no último fôlego – virgindade eterna.

A tempestade cessou e a porta da cabine arrebentou.


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Notas finais do capítulo

*Fineu;
*Príncipe de Cálidon; tinha a vida atrelada à um pedaço de lenha;
*Citação retirada d'O Livro de Ouro da Mitologia e sabe-se lá onde Thomas a conseguiu; o fato é que ela me deixa toda boba;
*Citação igualmente retirada de OLdOdM;
*Par de rochas que se moviam, uma de encontro à outra, e naufragavam embarcações em Bósforo.

Obrigada por tudo, meus amores.



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