Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 13
Liberta


Notas iniciais do capítulo

Hello, gente linda, mais um capítulo quentinho pra vocês. Espero que gostem e boa leitura!



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Samantha

Pensar na morte não era algo tão ruim assim, pois fazer isso me deixava alerta e pronta para enfrentar qualquer coisa. Lógico que eu tinha bastante medo de morrer, a não existência sempre amedrontou os humanos desde o início dos tempos, no entanto eu tentava de todo modo aceitar a morte como algo natural. Bom, desde que fosse realmente morte com um corpo inerte, flores, cemitérios e funerais. A percepção única de morte que eu havia aprendido durante toda a minha vida.

Então os alienígenas vieram e nos ensinaram outro tipo de morte. Meu pai a chamava de “morte espiritual”, pois seu corpo continuava vivo enquanto apenas o seu espírito ela levado para algum lugar distante. Uma outra alma então preenchia o lugar. E nesse caso essa outra alma não era algo daqui ou pertencente a qualquer religião ou filosofia humana. Essa alma na verdade era um ser de outro planeta.

Nada mais fazia sentido.

Você não poderia mais se conformar com o fim, com a ideia de jamais ver seus amigos e familiares novamente, pois os corpos daqueles que você amava continuavam ali, intactos e exatamente como antes, a vida sendo recontinuada do mesmo ponto onde outrora havia parado. As mesmas roupas, o mesmo perfume, as mesmas lembranças. Braços antes quentes, protetores e acolhedores agora se tornando a morada do inimigo. Olhos antes doces, gentis e carregados de amor agora maculados com o prateado. Um prateado bonito. Repugnante. O lembrete de perda mais sutil que eu já vi.

As almas sempre tentaram me matar a todo custo durante o tempo que precisei sair para o mundo exterior. Elas enganavam, fingiam e diziam que nada de mau iria acontecer àquele que se entregasse de bom grado, como se doar seu próprio corpo fosse um maravilhoso privilégio. Eu não faço ideia de como era a percepção delas sobre a vida no geral, mas, sinceramente, elas pareciam não ter a noção de estarem cometendo roubo e assassinato. Na verdade, pareciam se orgulhar muito de tudo isso. Elas haviam consertado o planeta, melhorado e purificado tudo... para uso próprio. Os humanos não puderam viver para desfrutar de tamanha mudança, eles foram dizimados em nome de uma salvação planetária disfarçada de egoísmo. Afinal, quantas vezes eu os ouvira falar da felicidade que era para uma alma habitar a maravilhosa e bela terra?

Odiar almas então passou a ser o combustível que alimentava meu ser. Foram anos de dor, fome e isolamento que forjaram dentro de mim essa percepção. E então, todos os meus paradigmas caíram por terra no dia em que salvei quatro humanos na floresta. Quatro humanos. Três de nascença e uma alma transformada. E saber que essa alma não era a única a, pelo que diziam, “mudar de lado” foi um choque maior do que eu esperava. Demorou muito tempo até eu aceitar a ideia, mas há coisas que acontecem na vida que parecem ter sido escritas antes mesmo de você pensar em fazer e acontecer.

Eu estava viva. Apesar de toda minha jornada até aqui, eu continuava inexplicavelmente viva. Acho que se a morte pudesse falar comigo ela diria: – “Hei, garota, uma hora você não terá para onde correr. Suas escapadas já estão me deixando cansada. Cuidado...”

Mais uma vez eu escapara da morte e agora podia observar o céu azul refletido nos espelhos, as nuvens brancas distorcidas em espirais. Eu podia ouvir as risadas roucas de Jamie e Adam, as piadas de Kyle e a voz docemente irritante de Sunny. O ar entrava e preenchia os meus pulmões com o cheiro quente do deserto me trazendo a sensação de paz e a água sulfurosa aquecia o meu rosto. O coração em meu peito pulsava o sangue rapidamente trazendo cor a minha pele e eu devia tudo isso a ele.

A uma alma.

Que eu havia covardemente tentado matar.

Cal salvara a minha vida e se não fosse por ele a essa hora Adam estaria chorando por mim. E essa era uma dívida que eu jamais teria como pagar.

Com exceção de Jeb, que jamais expressava qualquer tipo de opinião sobre a vida alheia, todos se espantaram quando eu e Cal começamos a nos falar. Ele se tornou alguém com quem até gostava de conversar e sua presença não era mais incômoda para mim. Eu podia contar com a sua ajuda sempre que precisava e não fazia isso apenas pelo fato dele ter salvado a minha vida, mas sim porque estranhamente gostava de estar perto dele. Na verdade, a presença dele ao meu lado agora era constante, talvez mais movida pela curiosidade em tentar entender o que havia ali do que qualquer outra coisa. A sua história de mudança e redenção parecia tão surreal quanto o fato de haver humanos vivos no deserto e só me restou acreditar que nada, exatamente nada mais no mundo, poderia me surpreender.

Logicamente os cochichos e burburinhos cessavam imediatamente quando passávamos. Os “defensores” das almas demonstravam imensa felicidade pela minha mudança repentina e aqueles que as odiavam ficaram descontentes por perder mais alguém que antes os apoiava. Porém, minha aceitação — não no geral, pois o mundo lá fora ainda era um campo de guerra e a minha raiva não evaporara apenas por causa de três almas arrependidas — não ocorreu somente após o episódio com os espelhos. Uma conversa que há muito eu tentava evitar e que aconteceu naturalmente também contribuiu para que eu pudesse ver as almas por uma nova ótica. Ainda havia muita mágoa e perguntas a serem respondidas, mas ao menos com aquelas que se propuseram a viver com humanos eu seria compreensiva.

Eu estava sozinha em meu quarto, lendo um livro velho do tempo dos humanos, quando alguém pediu gentilmente para entrar. A voz compassada e firme me fez suspirar lentamente.

— Alguém precisa de algo, Peregrina? — perguntei sem tirar os olhos das páginas amareladas. "Ela não viria até mim por vontade própria", deduzi, mas estava errada. Parecia que estar errada era uma constante nas últimas semanas.

— Sim, eu. Preciso falar com você — ela proferiu timidamente.

— Aconteceu algo com Adam? — tentei desconversar. Eu sabia qual a sua intenção e não estava preparada para isso ainda. Grace havia sido a segunda pessoa que eu amava que eu havia visto “possuída” por uma alma após a invasão e por isso não foi fácil admitir a perda novamente. Imaginei que se, por um acaso, tivesse visto meus pais como almas provavelmente teria feito uma besteira. Ou com eles ou comigo.

— Não, está tudo bem. Todos estão bem. Menos você. E é sobre isso que quero conversar — Peg se aproximou lentamente e sentou no colchonete à frente. — Sei que você está com raiva de mim por causa de Grace e queria dizer que sei uma forma de remediar isso. De acabar com o sofrimento de você e Adam — a alma juntou as mãos e sorriu triste. — Na verdade isso iria acabar com o meu sofrimento também.

A observei e ela parecia sofrer por minha causa. Ela sofria porque eu sofria também e isso era completamente estranho. Pensei em como ela faria para aplacar minha perda e não cheguei a nenhuma conclusão.

— Não entendi, Peregrina. O que você pretende fazer?

— Vou devolver Grace para você e Adam — ela soltou de uma única vez. — Pensei muito e essa é a única maneira que encontrei de remediar essa situação. Não quero roubar a vida de outra pessoa novamente, fazer seus ente queridos sofrerem. Eu passei por isso dentro da Mel e não sei se aguento viver isso novamente — lágrimas rolavam de seu rosto lívido e pela primeira vez desde o dia em que a havia conhecido olhei para Peregrina, a alma, e não somente para o corpo de Grace. Seus olhos mostravam que provavelmente ela não dormia há tempos e percebi o quanto estava abatida.

— Do que você está falando? — questionei curiosa, depois de respirar bem fundo. — Ela retornou por causa das lembranças? Você sentiu algo diferente?

— Não, Sam. Eu sinto muito, mas ela não retornou e creio que jamais retornará. Pet foi inserida quando Grace era muito nova e, pelas poucas lembranças que consegui ver, a captura dela foi traumática. Grace se foi a muito tempo, antes mesmo de eu vir para esse planeta. Infelizmente não posso fazer nada por ela. Mas quero fazer isso por você e por mim.

Pensei em todos os lados da história e medi o que seria bom e o que seria ruim em sua escolha. Se Peregrina devolvesse Grace, eu nunca mais teria que vê-la e isso a enterraria de vez, no entanto todos na caverna sofreriam sua perda novamente. Senti que a alma que chorava na minha frente era sincera e me comovi com sua vontade de ver o bem-estar do próximo acima do seu. Jeb havia me dito que as almas nesta caverna tinham ganhado o direito à vida com muita determinação e sacrifício e que um dia eu conseguiria enxergar a dor através dos olhos de prata de cada uma delas. E conversando com Peg eu enxerguei isso.

— O que Ian disse sobre isso? — perguntei e ela escondeu o olhar.

— Ele ainda não sabe.

— Você acha justo fazer isso com ele, Peregrina?

— Não entendo onde você quer chegar — ela se levantou e eu a encarei.

— Peregrina, se você devolver Grace o seu corpo morrerá e esse sacrifício não adiantará nada para mim. Eu agradeço muito, mas isso seria injusto com todos aqueles que te amam. Além disso, eu não sinto mais raiva de você, não foi culpa sua o que aconteceu com ela. Só agora eu entendo isso... — disse e meu coração ficou instantaneamente mais leve. — Você precisaria de outro corpo para viver e teria que passar por tudo isso mais uma vez, mais lembranças e sofrimentos desnecessários. Não precisa mais se preocupar mais com isso, Peregrina. Grace se foi e só me resta a conformação de que nunca mais a verei.

— Mas você vai ficar bem com isso?

— Vou ficar pior em ter que encarar o rosto amargurado de Ian sem você, a tristeza de seus irmãos, o olhar perdido de Adam e uma caverna cheia de gente e vazia de esperança. Quando cheguei aqui tive certeza que Jeb era louco, pois ele me dizia cada coisa estranha sobre você, coisas sobre você ter trazido vida a esse lugar. E como tudo agora me parece ser verdade, não serei eu a acabar com a paz no único lugar da terra onde ela ainda existe sem mentiras e ilusões. Eu teria que enterrar um corpo vazio e isso parece mais cruel do que o fato de você o usar. Então, acho que vamos ter que aprender a conviver juntas, eu sem julgá-la e você sem se culpar toda vez que me ver. Acha que consegue?

Ela me deu um enorme sorriso, um sorriso seu e único. Peg era diferente de Grace e eu usaria essas sutilezas para me adaptar a essa nova vida, pois já estava cansada de odiar e viver cheia de conflitos. Grace havia partido e eu manteria em minha memória apenas a lembrança de uma doce menininha, que jogava bola esvoaçando seus cabelos cor de prata e sorria para mim sem os dentinhos da frente. Já Peregrina era uma mulher forte e capaz de enormes sacrifícios, alguém que merecia o seu lugar.

Alguém que merecia uma vida.

— Obrigada, Sam — ela pegou minhas mãos e uniu as suas de forma quase maternal. Seus rosto era jovem, no entanto exibia todos os seus milênios nas expressões que fazia e com isso percebi que não adiantava mais lamentar o passado.

— Então vamos seguir em frente — eu disse controlando as lágrimas. — Vamos nos dar uma nova chance e esquecer o que já foi. Sei que ainda vai demorar até eu conseguir realmente deixar de pensar em muitas coisas relacionadas a isso, mas pelo menos estou disposta a ver e entender todos os lados da moeda. O que vivemos agora é algo inédito e completamente distante de tudo que um dia sequer imaginamos como o fim, por isso ainda preciso de tempo para digerir tudo — eu sorri ao pensar em toda essa profusão de acontecimentos e sentimentos. — Os humanos têm uma vida muita curta. Não quero passar o resto dos meus dias odiando você. Agora... preciso ficar sozinha, por favor — cortei o momento me sentindo um pouco mais alegre e ela riu. — Nos vemos daqui a pouco na cozinha.

Ela enxugou o rosto e saiu sem dizer mais nada. Alguns raios fracos de sol despontavam sobre as paredes de pedra e o calor me despertou para o momento. Eu acabara de impedir uma alma de libertar Grace e apesar das circunstâncias me sentia bem com isso.

Um mundo realmente estranho estava se formando dentro de mim.


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Notas finais do capítulo

Nos vemos no próximo capítulo, aguardem surpresas!