The Walking Dead - Rio de Janeiro/ Temporada II escrita por HershelGreene


Capítulo 15
Capítulo XV - Junior


Notas iniciais do capítulo

Enfim, estou de volta...... Quer agradecer IMENSAMENTE a
YanBernardo - Pela mensagem de apoio
July Coqueiro - Que mal conheço, mas já considero pakas
Pedro, o Junior original

No capítulo anterior:
Responsável pela segurança do parque, Gabriel e Sarah traçam planos sobre o futuro do grupo. Porém, quando um imprevisto chega aos portões, medidas drásticas precisam ser tomadas.



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A garoa restante das pancadas de chuva se encerra ao anoitecer, as nuvens pesadas carregadas para longe por um vento quente e abafado que sopra pelas ruínas da cidade do Rio de Janeiro. As estrelas agora se espalham pelo céu crepuscular, despontando pela imensidão azul-anil como as joias perdidas de uma divindade há muito esquecida. A escuridão engloba gradualmente a cidade, mergulhando a tudo e a todos no terrível pesadelo negro que dura até o raiar do Sol seguinte. Os mortos se agitam com o começo da noite. Milhares e mais milhares de cadáveres saem de seus esconderijos diurnos para a caminhada habitual. O odor característico de fezes e decomposição contamina o ar quente do verão, tornando-se insuportável para os animais e os humanos restantes na cidade.

Junior consegue sentir o cheiro tornar-se cada vez mais forte à medida que a luz se esvai por trás dos prédios, como um alerta soando antes do tsunami. Ele sabe o que estar por vir na noite, e não quer fazer parte daquilo. Por isso, se empenha em arrumar o mais rápido possível o compartimento de cargas do caminhão de mudanças. Enquanto seus braços e pernas se mantêm concentrados em retirar do interior bolorento do compartimento os itens fúteis para a viagem, seu cérebro tenta se distrair e se concentrar na tarefa. Pensar dói. O melhor que Junior pode fazer no momento é continuar retirando poltronas e mesas do caminhão e largando-as no asfalto molhado.

Ele consegue sentir o coração batendo forte contra a camiseta ensopada, o suor brotando na testa e nas costas devido ao esforço e ao calor. Está fazendo tudo aquilo sozinho, enquanto os outros discutem em sussurros o futuro do reduzido grupo. Para ele não há outra resposta. O rumo certo é longe dali, daquela cidade destruída e esquecida. Alguns, como a sua própria irmã e Júlia, sugerem o interior do país. Seguir viagem até o estado de Minas Gerais e reconstruir a vida em alguma cidade ou fazenda intocada. Já Alice e André preferem fugir pelo mar, em busca de vida em outras cidades costeiras ou até mesmo outros países. Ambos receberam aulas de direção e pilotagem de barcos na colônia em que moravam. Era chamada de “plano B”, uma espécie de rota de fuga caso a colônia fosse invadida ou destruída. Para Junior não importava. Se estivesse longe, estaria feliz.

Apenas uma pessoa não parecia de acordo em deixar o Rio de Janeiro para trás. Hugo mantivera-se longe do restante do grupo durante todo o tempo. Cabisbaixo, tossindo descontroladamente por conta da bronquite, o garoto preferiu a companhia do silêncio e de seus pensamentos, caminhando ao redor do caminhão, chutando pequenas pedras como distração.

Junior encara o rosto abatido do amigo com uma esquisita sensação de pena, enquanto o mesmo passa pela traseira do caminhão, em sua décima quarta ou quinta volta. Junior o acompanha com o olhar, observando-o descrever um círculo ao redor das poltronas a cadeiras largadas e desaparecer do campo de visão à esquerda. Depois que o menino some, Junior balança a cabeça e empurra para fora do compartimento uma mesa de nogueira arranhada, que cai com um estrondo no asfalto. Pensar dói demais. Porém, a breve passagem de Hugo não passa despercebida de Clara, que se aproxima do irmão gêmeo com um copo de suco instantâneo nas mãos e um cobertor ao redor dos ombros.

– Sabe – diz ela, sobressaltando o irmão – Não sei se você lembra, mas papai costumava a nós levar até o sítio do vovô, só para deitar conosco na grama e contar as estrelas antes de dormir.

Junior atira um abajur de chão para a rua escura. Ambos escutam a lâmpada se quebrar com a queda.

– Lembro sim – responde ele, sem emoção – Ele nos contava uma história diferente para cada estrela nova que víamos no céu.

Clara solta uma risada abafada.

– O que houve com você hoje?

Junior percebe que a irmã se encolhe com a pergunta, apertando o cobertor contra as costas molhadas. Ele decide não esperar pela resposta, e vai atrás de um gaveteiro estilo retro para expulsá-lo do caminhão.

– Foi simplesmente, terrível – comenta ela, quando as gavetas desabam na rua escura com um baque surdo – Estava assustada e sozinha. Talvez mais assustada do que já estive na vida.

Junior larga sua próxima vítima – um pufe redondo verde-limão – e abraça com força a irmã, esmagando o copo de plástico entre os dois. O suco escorre pelos dedos de Clara, manchando ambas as camisas.

– Opa, desculpe por isso.

Clara solta um sorriso bobo e planta um beijo na testa de Junior. O garoto sente as bochechas esquentando ao reparar que Alice está atenta. No mesmo momento, Hugo surge da escuridão da noite com mais uma volta completa ao redor do caminhão. Os dois se encaram por alguns segundos. Então Hugo volta a abaixar a cabeça e sumir.

– Você devia ir conversar com ele – comenta Clara, limpando o suco dos dedos com o cobertor.

– O que eu posso falar? Nós vamos embora, ponto final.

– Você pode fazê-lo entender – diz ela, empurrando o irmão para fora do compartimento de carga – Sei que consegue, maninho.

Ele se vira para a irmã, de cara feia, e faz uma continência exagerada.

– Você é quem manda, madame – suspira ele – E, por favor, pare de me chamar de maninho.

Clara mostra a língua. Depois sorri, dá as costas e volta para junto dos outros no interior do compartimento.

Junior corre atrás de Hugo, passando pela frente do caminhão e dobrando a direita, onde o garoto está parado olhando o céu. Ele passa pelos portões do parque sem lançar um singelo olhar. Não pode e não quer. Pensar dói demais naquele momento. Ele respira fundo, inalando o ar quente do verão carregado pelo fedor de mordedores, e se aproxima do amigo.

– Ei, cara – começa ele, nervoso – Olha, preciso conversar com você.

Hugo gira nos calcanhares, ficando de frente para Junior. Ambos se encaram novamente. O choque dos olhos azuis e verdes ardendo na escuridão sombria da noite.

– Não posso conversar agora, Junior – diz ele, mexendo os dedos desconfortavelmente – Estou ocupado pensando em um plano.

O garoto dá as costas e volta a caminhar. Junior corre atrás dele.

– É exatamente sobre isso que quero falar contigo – diz ele, apoiando a mão nos ombros de Hugo. O garoto solta um suspiro longo, depois revira os olhos:

– Fale.

– Nós tomamos uma decisão, e bem... Sabe... Nós vamos embora.

O garoto fecha os olhos e assente, como se as palavras de algum modo pudessem lhe causar uma enorme dor.

– Sabia que iam desistir – diz Hugo – Mas vocês precisam entender que é a melhor solução que temos.

– Não é questão de desistir, Hugo. O lugar já era. Acabou. Assim como o Copacabana Palace e a escola. Nós seguimos em frente.

O garoto avalia Junior, faiscando os olhos verdes com máxima preocupação. Junior quase consegue ver as engrenagens do cérebro do amigo girando, absorvendo as informações.

– Seguirmos para onde? – pergunta ele, lançando as mãos para o céu – Para a miséria, sem comida ou água. Andando o dia todo sob o Sol escaldante do verão? Sem saber onde vai dormir ou se chegará vivo até o dia seguinte? Isso não é vida, Junior!

Junior se recorda dos dias após o ataque ao shopping Iguatemi, correndo pela cidade como um mendigo, só ele e a irmã. Foram dias péssimos, mas eles estavam vivos.

– O grupo está pensando em seguir para o interior, em busca de uma cidade não atingida pela praga ou pelo menos uma comunidade murada e segura – conta Junior - André e Alice até sugeriram seguirmos para o mar até o Nordeste ou até mesmo Caribe e os Estados Unidos. Tem que haver outros além de nós em algum lugar!

Hugo abaixa a cabeça e considera as opções. Junior aguarda pacientemente, lançando um olhar para a cidade ao redor. Mal consegue perceber a silhueta dos prédios mais pertos, recortados contra a luz das estrelas e da Lua. A escuridão agora é parte da cidade.

– Vocês querem mesmo acreditar nesta insegurança? – pergunta Hugo.

– Melhor uma vida insegura que a morte certa.

Ele levanta os braços em sinal de rendição.

– Ok, vocês venceram – diz Hugo, respirando fundo – Mas antes de irmos embora atrás de um futuro perigoso e arriscado, olhe para trás e me diga: Vale a pena mesmo deixar tudo isso para trás?

Junior faz o que lhe é ordenado e lança um olhar por cima do ombro. Mesmo à noite, ele consegue enxergar com detalhes a beleza do Parque da Quinta da Boa Vista. As velhas cercas de ferro, os bosques escurecidos repletos de árvores nodosas, a luz da Lua refletida nas águas paradas de ambos os lagos, os caminhos serpenteando pelos montes e depressões, e, na mais alta colina, a imensidão gelada do Museu Imperial, brilhando acima de todas as coisas com um fervor sobrenatural.

– Agora, imagine isso seguro – diz Hugo, a voz baixa como um sussurro. Junior está tão fascinado pela imagem à sua frente que a voz do amigo entra pelos seus ouvidos como a de um narrador de documentário – Imagine essas cercas reforçadas, com torres improvisadas de vigia. Imagine campos de cultivo, com plantações variadas e verduras frescas. Imagine poder sentar em uma mesa de jantar, conosco ao seu lado, com comida fresca no prato. Consegue imaginar uma coisa dessas?

– Sim, mas... – diz Junior, ainda pasmo – É impossível.

– Possivelmente, apenas.

– Mas e todos esses mordedores – diz Junior, indicando com a cabeça o ruído habitual de gemidos carregados ao vento – Simplesmente não dá.

– Por isso precisamos de um plano – fala Hugo – O que, no caso, eu tenho.

– Eu... eu... eu não sei, cara. É muito arriscado. Eu prefiro ir embora.

– E morrer em uma estrada qualquer, com bolhas nos pés e a garganta seca? Não, cara. Nós precisamos deste lugar. Ele só precisa de uma ajeitada.

Junior vira de costas para o parque e encara o amigo.

– Esse seu plano, você pode me dar certeza que tudo dará certo? Que minha irmã e eu iremos dormir seguros esta noite?

Hugo balança a cabeça em negativa.

– Não tenho certeza de nada, você sabe disso. Mas podemos tentar.

Junior dá um passo para trás.

– Eu não sei.

– Você confia em mim, Junior?

– Eu... Eu...

– Você confia em mim?

Junior engole em seco. Respira fundo.

– Claro. Com todas as minhas forças.

Hugo abre um sorriso largo, como criança no natal.

– Ótimo! – diz ele – Pois vou precisar da sua ajuda!

...

Junior mal consegue imaginar quantas possibilidades existem de algo dar errado naquele plano. Agachado contra as cercas de ferro do museu, com o aço gélido na arma nas mãos, ele consegue sentir os batimentos cardíacos intercalados com o pulsar das veias, todo o corpo se preparando para o que vem a seguir. Ele sente uma imensa vontade de urinar naquele instante, mas seus membros não movem sequer um músculo, todos tensos enquanto ele aguarda o sinal para o inicio da ação.

Atrás dele estão Alice, Hugo e Clara. Também estão agachados contra a cerca, atenciosos à espera do sinal e respirando fundo. Junto ao quarteto há quatro mochilas recém-reorganizadas com os utensílios necessários para a execução do plano. Junior sente um formigamento ao lembrar-se do que o espera no interior da sua. Seu corpo inteiro se arrepia só de pensar.

O grupo não aceitou o plano com tanto fervor quanto ele. Receosos com a superioridade numérica dos mortos e a baixa visibilidade, alguns deles – André e Clara - decidem ajudar com a cara amarrada, resmungando aos cochichos e respondendo as perguntas com ironias e palavrões. Hugo precisou recapitular seu plano infalível quatro vezes para a aceitação geral, detalhando cada ação e cronometrando os passos. Era improvável, arriscado e suicida, onde até mesmo Junior conseguia perceber uma serie de falhas. Mas, como Hugo usou em seu discurso, aqueles eram tempos desesperados. E tempos desesperados pedem medidas desesperadas.

O ronco do motor ruge como uma fera, assustando Junior e os outros agachados na escuridão e no silêncio. De repente, brilhando como dois sóis na noite distinta, os faróis do caminhão de mudança piscam uma série irregular de vezes, chamando a atenção de qualquer coisa em um raio de quilômetros. Junior consegue ouvir os rosnados dos mordedores se intensificarem, como se estivessem irritados com a luz ou felizes pelo sinal de carne fresca. Os mais próximos apontam os passos arrastados para a entrada do parque e se aproximam vagarosamente em direção aos faróis que ainda piscam.

Junior e os outros entram em ação, todos saltando do lugar ao som da primeira buzinada, correndo em direção à pequena horda de errantes que se aproxima como uma tropa romana de suicidas. O primeiro errante dele é um guarda de trânsito com a roupa em frangalhos e o rosto mastigado nas bochechas e no queixo. Junior se movimenta para a esquerda e para a direita, confundindo o morto. Depois, ele chuta as pernas do mordedor e o derruba no chão, ajoelhando para cravar-lhe a faca na testa. Depois dele, um trio surge em seu campo de visão. Composto por duas prostitutas e um policial sem um dos braços, o grupo avança para ele de uma única vez, encurralando-o contra a carroceria do caminhão. Ele derruba a primeira com uma facada certeira na têmpora, depois se vira e afunda a lâmina entre os cabelos oleosos do policial. Desta vez, porém, a faca permanece presa ao crânio duro do mordedor, deixando o braço de Junior exposto para a segunda prostituta, que se aproxima salivando baba preta.

Uma flecha se enfia por entre as orelhas da mordedora, matando-a a poucos centímetros do braço de Junior. O corpo se contrai involuntariamente, desabando contra o asfalto escuro. O garoto aproveita o momento livre de errantes e chuta o crânio do policial até que a faca se liberte do osso, com um asqueroso barulho de sucção. Junior depois lança um olhar para cima, observando Júlia, na janela da cabine, soltar mais uma flecha contra a escuridão da noite.

– Te devo uma! – comenta ele, agradecido, limpando as mãos sujas de sangue na carroceria.

– Quero uma dose depois, docinho – diz ela, encaixando mais uma flecha no arco – Mas antes, você tem trabalho a fazer.

Ele acena em concordância e lança um olhar para os companheiros de combate, espalhados pela entrada do parque. Hugo está junto aos portões, decapitando um após outro com seu facão de caça. Já Alice prefere atirar com sua pistola, disparando tiros surdos devido ao silenciador, sua arma piscando como luzes de natal a cada pressionada no gatilho. Clara, por sua fez, age como um furacão de grande escala. A irmã de Junior gira em círculos pelo meio da horda, decapitando e cortando, fazendo voar jatos de sangue escuros e pedaços de ossos. Os mordedores são abatidos em questão de segundos, o tempo necessário para que André faça o que precisa ser feito com os faróis na cabine. Ao final da última piscada, a escuridão recobre o caminhão e seus arredores, acalmando os rosnados distantes. Eles possuem pouco tempo agora que atiçaram metade do bairro contra eles.

– Lidaremos com os outros mais tarde – diz Hugo, aproximando-se do caminhão – Por enquanto, estamos seguros.

– Esse grupo foi pequeno – comenta Clara, com o rosto e os cabelos pingando sangue de mordedor – Mas não sabemos quantos mais nós atraímos para cá.

– E não ficaremos para descobrir – responde Hugo, retirando um lenço do bolso e entregando-a. Depois, o garoto se vira para o caminhão e bate três vezes na lataria.

André e Julia saltam para fora da cabine. Com a escuridão sufocante da noite, Junior mal consegue perceber suas silhuetas. O gemido esfomeado dos mortos se torna mais audível, como uma música aumentada rapidamente. Ainda distante, mas perto o suficiente. Os outros percebem e recarregam suas armas, nervosos, prontos para usá-las de novo.

– E então, André – pergunta Hugo – O código Morse deu resultado?

O garoto inclina a cabeça para o parque escuro e sorri. Junior e os outros se reúnem para observar mais de perto. Mesmo longe, na escuridão total que assume a cidade após o anoitecer, ele consegue enxergar o brilho fraco de uma luz piscando, na janela térrea do museu, respondendo ao farol. Alice solta um suspiro aliviado e Clara sussurra um “graças a Deus”. Até mesmo Junior se permite dar um sorriso.

– Ótimo, a parte um do plano foi concluída – diz Hugo, desviando a atenção do grupo para si – Eles ainda estão vivos. Isso é bom, mas não é vitória. A parte mais arriscada vem agora. Todos sabem o que fazer? Ótimo. Assumam suas posições.

Junior percebe os outros cinco vultos correrem em busca de seus postos. Ele mesmo aperta o passo até o portão de entrada, colocando sua mochila pesada nos ombros e ligando a lanterna de pilhas que possui nas mãos. O fino facho de luz ilumina Clara e Alice ao seu lado, enquanto Hugo se aproxima sorrateiro, com a faca em uma das mãos e a pistola semiautomática na outra. Os segundos se arrastam como eternidades. Enquanto esperam o sinal, o coro de rosnados se intensifica. Parece que a melodia fúnebre sai de todas as fachadas e esquinas da cidade. Junior ainda não consegue perceber nenhum mordedor em seu campo de visão reduzido, mas o cheiro de carne em decomposição e fezes já é perceptível no olfato humano.

O motor do caminhão de mudanças ruge em algum ponto na noite, arrancando o coração de Junior do lugar. Os faróis se acendem novamente, iluminando a vida ao redor. Com o canto do olho, ele percebe o caminhão manobrar para a direita e seguir por uma das ruas laterais do parque, levando André e Júlia consigo.

– Ok, essa é a nossa deixa – comenta Junior, tomando fôlego e apertando o cabo da faca através dos dedos suados – Vamos nessa!

Os quatro invadem o parque pelo portão principal escancarado, com a sutileza de bandidos profissionais. Eles agem rapidamente no começo, enquanto Clara e Junior apontam as pistolas e as lanternas para frente, Hugo e Alice abrem suas mochilas e tiram de dentro a corrente e o cadeado para o portão. Alguns mordedores se aproximam rosnando, mas Clara os derruba sem cerimônia com sua faca, tomando extremo cuidado em deitá-los no chão sem fazer barulho. Os portões rangem ao serem fechados, ecoando o som pelas árvores, mas o quarteto age silenciosamente passando a corrente por entre as barras de ferro e trancando-as com o cadeado pesado.

– Beleza, tudo tranquilo por enquanto – diz Alice, limpando a testa suada com a mão – O que nos falta fazer agora é...

Uma mordedora se lança no meio do grupo, atirando-se ao pescoço de Alice como uma cobra dando o bote. A lanterna da garota voa de suas mãos com o susto e cai a alguns metros na grama. Junior leva milissegundos para entrar em pânico, o cérebro iniciando o modo ataque às pressas, o suor escorrendo frio pelas costas. Enquanto Hugo e Clara seguram o cabo de suas respectivas facas, Junior age sem pensar e dispara contra o crânio da errante, acionando o GPS de todos os mortos em quilômetros.

Um jato de sangue escuro salpica Hugo durante o tiro. O corpo do cadáver desaba na grama fofa com um baque surdo. Junior levanta Alice, preocupado, verificando o pescoço da garota em busca de mordidas ou arranhões. Graças a Deus ela está limpa e viva, mas o custo é imenso. Ele consegue perceber, pelo canto do olho, umas dezenas de errantes se aproximando de todos os lados.

– Você é o ser humano mais...

– Não dá tempo agora, Clara! – corta Hugo – Xingue seu irmão depois, temos problemas piores agora!

Um grupo de mordedores se aproxima rastejando, vindos da colina do museu. Hugo assobia e aponta para o sul, em direção a um estacionamento abandonado com apenas alguns carros largados. O quarteto deixa a horda para trás, desatando a correr pela noite escura rumo aos bosques no sudoeste. Seguem pela margem de um dos lagos, repleto de pedalinhos abandonados em forma de cisne, com um pequeno templo grego enfiado em uma ilhota no lado oposto. Há alguns mordedores presos na lama que se formou ao redor das águas, tão apodrecidos que Junior não consegue distinguir o que é lodo e o que é pele. Ele desembainha a faca para acertá-los, mas sua irmã o impede e aponta para o sul, onde outro grupo de errantes está saindo dos bosques para pegá-los. Ele devolve a faca ao cinto e continua a corrida.

A corrida desemboca em uma bifurcação, com um enorme gazebo plantado no topo de uma colina de rochas. Junior chega depois dos outros, cansado e suado, com as costas doloridas pelo peso da mochila. Ele sabe que ainda falta muito para o fim daquele pesadelo, e seus pulmões já estão doendo de respirar. Ele, porém, abre a mochila pesada, toma um gole de água fresca do cantil e se ajeita para voltar ao trabalho. Os outros aceitam o cantil de suas mãos e tomam demorados goles, saciando a sede em instantes. O grupo de mordedores ainda está se aproximando, e mais outros gemidos distintos surgem nos bosques ao redor. O plano está correndo perfeitamente até aquele ponto, tirando o disparo.

– É aqui que me separo de vocês, certo? – comenta Clara, indicando o caminho da direita, que ziguezagueia até o museu escuro.

– Mantenha-se alerta sempre – diz Hugo, retirando do cinto uma pistola de sinalizador e passando para ela – Se precisar de ajuda, dispare para o alto.

Alice abraça a garota como uma despedida, e depois se afasta em passos rápidos, amarrando o cabelo em um rápido rabo de cavalo. Junior toma o seu lugar, abraçando a irmã com a mesma intensidade, pensando na possibilidade de nunca mais vê-la. Ele sabe que não pode continuar pensando desse jeito, ou vai se distrair em um combate com os mortos. Por enquanto, Junior precisa acreditar que o plano de Hugo dará certo e ela vai estar a salvo antes do amanhecer. Após ele, Hugo e Clara se abraçam de forma desajeitada, ambos vermelhos mesmo na escuridão. Junior solta uma risada forçada, cheia de segundas intenções, que faz com que os dois se afastem como imãs de polos diferentes. Clara então sussurra um “Boa sorte!” e desaparece às pressas pela direita.

– Agora somos só nós três – comenta Hugo, sendo óbvio.

O grupo de errantes que os perseguia surge atrás deles, com a adição de outros desgarrados. A bifurcação se enche de gemidos esfomeados e rosnados com baba preta e viscosa. Junior e os outros decidem poupar munição e tomam o caminho da esquerda sem atacar, correndo pelo bosque com as lanternas brilhando nas mãos.

O caminho da esquerda permanece reto por alguns segundos de corrida esbaforida. Porém, o bosque termina em um cruzamento de quatro ruas. Eles, com o mapa já quase decorado no subconsciente, viram a direção da corrida para o sul, seguindo em direção ao portão no final da via, provavelmente aberto e repleto de errantes. Junior tenta se distrair enquanto corre, ignorando os sons dos mortos ao seu redor, iluminando a copa das arvores com a luz da lanterna. Suas pernas estão cansando rapidamente, provavelmente por conta do enorme peso que carrega nos ombros. Sua testa está molhada e seu cabelo está pingando suor. A sede também retorna após alguns segundos, arranhando sua garganta como um gato agressivo. Está quase pedindo um tempo para recuperar o fôlego e as energias quando uma senhora extremamente obesa surge dos bosques liderando uma horda surpresa de mordedores.

A faca de Hugo é quem derruba a senhora. Com a agilidade de um profissional, o garoto consegue tempo de largar a mochila no chão, girar o corpo e desembainhar a faca no mesmo segundo. No instante seguinte, o corpo da velha já desabou sonoramente no chão, dando espaço para mais deles. Junior consegue acertar sua primeira vítima antes que ela possa vê-lo, enterrando a lâmina na nuca e retirando-a escura de sangue e fluidos cerebrais. Outro mordedor se aproxima pela esquerda, usando um terno repleto de rasgos e arranhões, com a gravata vermelha ensanguentada ao redor do pescoço. O garoto levanta a faca com ambas as mãos e perfura o crânio por cima, afundando-a até o cabo. O corpo do mordedor se debate com os reflexos involuntários e desaba no chão repleto de folhas com um som aquoso, formando uma poça de sangue negro ao seu redor. Uma criança destroçada se aproxima de Junior, vestida com frangalhos de uma camisa de futebol cara e uma chuteira imunda nos pés mortos. Ele consegue acertar um belo chute no rosto da criança, derrubando-a no chão com a força. Depois, Junior pisa no pescoço do pequeno para travar-lhe os movimentos da cabeça e cravar-lhe a faca bem no meio da testa. Os olhos leitosos se apagam e vidram o vazio, como se fosse apenas uma criança deitada, olhando as estrelas em busca do sono.

Alice enfrenta mais problemas em seu combate. Presa contra uma árvore por um lixeiro desfigurado, a garota se concentra em desprender a faca do cinto, enquanto mantêm o antebraço na garganta do mordedor para afastar seus dentes negros e viscosos. Alheia à horda ao seu redor, sua respiração agitada e os rosnados altos do lixeiro atraem cada vez mais mortos para aquela árvore. Quando finalmente consegue retirar a lâmina afiada do cinto e usá-la para destruir o cérebro de seu atacante, metade da horda já se virou em sua direção e a cercou com um círculo disforme e escuro, que diminui a cada passo. A garota entra em pânico, virando a cabeça em todos os ângulos em busca de uma saída, sem êxito. Alice então ajoelha na terra batida e tampa os ouvidos, esperando.

Hugo e Junior se lançam por entre os errantes para salvá-la. Com a desvantagem numérica evidente, ambos sacam as pistolas e se posicionam um de costas para o outro, atirando no grupo de cadáveres com um ângulo de 360°. Alice levanta a cabeça ao ouvir os tiros e sorri aliviada para seus salvadores, enquanto abre a mochila nas costas e retira sua própria Glock 9mm, pronta para participar do extermínio. A horda é reduzida a corpos espalhados em poucos segundos, derrubados com tiros entre os olhos e na testa, caindo no chão como marionetes cujas cordas foram cortadas repentinamente.

– Você está bem? – pergunta Junior, apertando os ombros de Alice e procurando sinais de mordida no corpo da garota.

– Estou. Claro – responde ela, fungando o nariz – Obrigada. Eu realmente pensei que havia chegado minha hora.

Junior a abraça quase sem querer, como se seu subconsciente tivesse dado a ordem por instinto. Ela corresponde, meio sem jeito, provavelmente corando as bochechas. Os dois ficam juntos por alguns segundos, ou talvez uma inteira eternidade, mas mal se importam. Junior está prestes a perguntar o que está entalado em sua garganta desde que conheceu aquela garota, mas um barulho nas árvores atrás de si o faz engolir a fala.

Um mordedor salta da escuridão do bosque para um último ataque, agarrando as costas de Junior com mãos firmes que destroem o abraço e o clima tranquilo. O garoto percebe que os dentes do mordedor vão lhe perfurar os ombros, e não há como se desvencilhar dessa. Sua faca caiu no susto e não há ângulo para atirar com a pistola. Junior fecha os olhos e espera os milésimos escorrerem, sentindo as unhas do cadáver pressionarem sua pele e esperando os dentes sujos de bile preta lhe arrancarem um pedaço das costas. Pelo menos vai morrer após um abraço.

Um tiro distante ecoa em seu tímpano, tão perto do ouvido que lhe ensurdece. Ele abre os olhos, transtornado, e descobre Alice parada à sua frente, mirando o cano da pistola em um alvo acima do ombro direito de Junior. Os dois se encaram por um momento, enquanto uma conexão de sentimentos é passada. No instante seguinte, os dedos do errante se soltam de Junior e o corpo desaba nas folhas mortas com um jato se sangue escorrendo do ferimento.

Junior respira fundo, aliviado:

– Essa foi por pouco – comenta ele, esfregando as marcas profundas deixadas pelas unhas do errante.

– Você me salvou. Eu te salvei. Estamos quites agora – diz ela, assoprando o cano da pistola como um cowboy, sorrindo.

– Se os dois pombinhos param de se amar, podem vir aqui?! – diz a voz de Hugo, em um canto do bosque, ajoelhado junto a um corpo de mordedor – Temos um problema sério.

Junior e Alice se aproximam do cadáver, curiosos. Ele consegue ver, mesmo na escuridão, que o corpo foi estraçalhado da barriga para baixo. Suas tripas estão espalhadas pela terra seca, e ambas as pernas foram tão devoradas que só os ossos sobraram, com alguns pedaços de carne e veias mortas entre eles. Os sapatos estão largados, mas não há sinal dos pés, provavelmente devorados junto a todo o resto. Alice vira de costas ao observar a cena, enjoada com os restos da orgia gastronômica, mas o que realmente deixa Junior mal é o rosto do corpo, iluminado pela lanterna de Hugo. Ele consegue perceber os cabelos soltos, a boca e o nariz repletos de sangue seco, e os olhos abertos e vazios, refletindo as estrelas. Mas o que mais chama a sua atenção é o ferimento de bala na testa, acompanhado com um fino rastro de sangue seco.

– É a Sarah – comenta Junior, passando a mão nos cabelos, incrédulo.

– É... – sussurra Hugo com a voz distante – Parece que nem todos estão são e salvos no museu. Eu falhei com eles. Falhei com ela. Escolhi os melhores do grupo para uma missão, deixando um parque inteiro nas mãos de crianças e velhos. Agora me pergunto quantos mais se foram por causa do meu erro...

Junior se ajoelha ao lado de Hugo:

– Pare com isso, cara. Não foi sua culpa. Você é um líder nato, até adultos te obedecem e te respeitam. Mas não é um deus. Merdas acontecem, às vezes. Você não vai estar sempre disponível para salvar a todos, porra.

Hugo se vira para o amigo e solta uma risada pelo nariz, meio sem graça. Junior retira a lanterna no rosto de Sarah e se levanta, como se estivesse dando adeus para ela. Era uma morte sofrida, provavelmente demorada, onde Junior se arrepiava só de pensar na dor que fora os últimos minutos daquela garota. Estava prestes a dizer que era melhor deixarem o corpo para trás e seguirem com um plano, quando outro mordedor sai da escuridão das árvores, desta vez acompanhado com dezenas, talvez centenas de amigos.

– CARALHO! CARALHO! PORRA! CARALHO! – grita Junior, levantando Hugo com uma mão e agarrando sua mochila com a outra – VAMOS EMBORA AGORA, MERDA!

Os três retomam a corrida pelas árvores, desta vez perseguidos por uma super-horda provavelmente formada por aqueles que escutaram os tiros. Com o desespero, as três lanternas ficam para trás, restando apenas correr no escuro avassalador da noite, sem saber se aquela sombra é apenas um tronco ou um cadáver esfomeado pronto para cravar-lhe os dentes. Eles correm em silêncio, poupando oxigênio, ofegando com sacrifício. Os mortos ficam para trás, mas não muito. A cada segundo, mais e mais errantes eclodem dos bosques para a perseguição, incrementando as fileiras do exército de cadáveres que avança pelo lado sul como uma onda negra.

A corrida nos bosques termina em um estacionamento vazio, junto ao portão sul e as cercas de ferro. Junior solta um arquejo dolorido e lança um olhar por cima do ombro, encarando a horda distante, mas ainda sim perto o suficiente. Os três voltam a correr, desta vez para fora do parque, atravessando o portão para as ruas escuras do bairro de São Christóvão, iluminado apenas pela Lua. Há alguns carros espalhados na avenida junto ao parque, mas a maioria está enfileirada junto à calçada como uma muralha externa para as cercas do parque. O projeto havia sido iniciado nas primeiras semanas de permanência, mas era algo extremamente complicado e cansativo de se realizar, reduzido para apenas alguns carros estacionados na calçada. Para realizar uma das partes do plano, eles teriam que arrancar um pedaço dessa muralha e usar para afastar a horda do parque. Dependiam de um carro barulhento e funcional, ou suas vidas estariam seriamente em risco, com centenas de mortos atrás e uma cidade infestada e escura pela frente.

Cada um escolhe um carro para testar. Enquanto Alice e Hugo escolhem os carros mais próximos ao portão, Junior caminha mais longe junto à cerca, procurando um carro com potencial para fazer barulho. A chuva volta a cair, desta vez com uma força extrema, como se Deus estivesse acabado de ligar o chuveiro. Junior solta um palavrão baixinho e corre para o carro mais próximo, se enfiando no interior mofado de uma picape preta com rastros de sangue nos pneus. A chuva aumenta torrencialmente, ricocheteando com tanta força e barulho no para-brisa e no teto que ele chega a pensar ser granizo ou pequenas pedras caindo do céu. Ele não consegue ver os outros pelas janelas embaçadas e nem a multidão de errantes, mas o cheiro de fezes com mofo – mesmo disfarçado pela chuva e a terra molhada – continua perceptível.

Junior abre o porta-luvas, vasculha embaixo dos bancos e nos compartimentos laterais, sem êxito. Parecia que o dono da picape, seja lá quem for, havia morrido junto às chaves de seu carro. O garoto respira fundo e soca a buzina, frustrado, encarando a chuva como uma velha inimiga. Era o fator surpresa para estragar o resto da noite. Parecia ser uma piada de mau gosto divina. Eles mal tinham visibilidade, possuíam uma considerável inferioridade numérica e ainda teriam de enfrentar tudo molhados até os ossos. Era o cúmulo, um combo de maldade. Mas não se podia escapar ou pedir para parar. Junior então abre a porta da cabine com um chute, respira fundo algumas vezes e se prepara para encarar o dilúvio na cabeça.

Antes disso, porém, três errantes se lançam para a porta aberta da picape.

Junior se assusta com a rapidez do ataque. Os três mordedores – Duas mulheres seminuas e um homem desfigurado – parecem sair do nada, brotando na calçada naquele instante. O garoto consegue acertar um chute no primeiro e o derruba em uma poça de lama. Porém, quando os outros dois se enfiam pela porta atrás de um pedaço de carne. Junior é obrigado a recuar para o interior do carro, se arrastando do banco do motorista para o do carona. Ele consegue alcançar a pistola na parte de trás do cinto e atira duas vezes, derrubando um e acertando o ombro esquerdo do segundo. O terceiro mordedor consegue se levantar da poça e se junta com um quarto e um quinto para uma nova investida. Junior mira a pistola para mais uma sessão de tiros, mas o clique surdo da pistola informa sobre o cartucho vazio. Ele pragueja e chuta, vasculha nos bolsos atrás de balas solitárias, mas os dedos roçam no vazio. O desespero sobe sufocante pelo estômago, travando-lhe a garganta.

Sua salvação surge em forma de buzina. Repentinamente, uma viatura da polícia surge na rua atrás de Junior, os faróis acesos brilhando na chuva como holofotes. Ele suspira aliviado e abre a porta do carona, em suas costas, pronto para deixar aqueles mordedores para trás e fugir com Alice e Hugo. Porém, ao virar-se na fuga, um dos errantes consegue agarrar sua mochila e a puxa com força de volta ao interior da picape. Ele é arrastado para o banco do motorista, em puro pânico, debatendo-se ao sentir a baba preta pingar em suas costas e em sua nuca. O errante que agarrou sua mochila tentar mordê-lo, mas seus dentes só alcançam os cabelos de Junior. O garoto sente os dentes do mordedor se fecharem a milímetros de seu crânio e diversos de seus fios castanhos darem adeus a sua cabeça. Ele percebe, pelo canto do olho, que os mordedores estão com dificuldade de se enfiarem todos juntos na porta de picape e usa o momento de distração para escorregar da mochila e fugir para a viatura parada do outro lado.

Ele bate a porta traseira e se enfia nos bancos de couro, respirando agitado e dolorido pelos fios de cabelo perdido. Hugo e Alice estão sentados nos bancos dianteiros, sendo ela a motorista, como parte das aulas de sobrevivência que recebeu em sua comunidade. O chão do carro está repleto de garrafas de cerveja e de vodka vazias, indicado que outra pessoa usou o carro depois dos policias, ou os mesmos aproveitaram o fim do mundo para curtir uma noite. Era algo engraçado de se pensar, em outro momento. Agora, Junior não tinha o menor fôlego ou ânimo para rir.

A sirene da viatura se ilumina inesperadamente, iluminando o asfalto ao redor nas cores azul e vermelho. O barulho ecoa também, provavelmente chamando a atenção de todos os mortos nas redondezas. Junior se espanta ao ver Hugo abrir um sorriso satisfeito ao ver os mordedores mais próximos mudarem o passo espasmódico em direção à viatura. Os quatro errantes da picape também percebem a algazarra e desistem de mastigar a mochila deixada no banco do motorista.

– Agora, só precisamos esperar que os mordedores no parque escutem e saiam para as ruas – comenta Hugo, olhando pelo vidro traseiro em busca de algum vestígio de cadáver ambulante – Vamos levar o máximo que puder para longe e... Bem, o resto vocês sabem.

Junior agarra a tela que separa os bancos dianteiros dos traseiros e aproxima a cabeça dos amigos.

– Você mentiu para mim, cara! – vocifera ele – Você me disse que eu estaria bem até o final dessa noite! Eu quase morri agora, você sabia?

Hugo o encara com perplexidade, assim como Alice.

– Junior, se acalme – diz ele – Todos nós quase morremos hoje. E eu nunca te jurei que você sobreviveria até o final, porque isso eu não posso jurar. Não tem como saber se vamos...

– VAI PRO INFERNO VOCÊ E ESSE SEU PLANO MALDITO! – corta Junior, ríspido – ERA MELHOR A GENTE TER IDO EMBORA, MESMO!

– Para morrer amanhã? Cair nas mãos de assassinos ou estupradores?! Não sei você, mas não quero arriscar a certeza de um lar pela probabilidade de uma morte.

Junior cruza os braços e fecha a cara. Depois, pisa com toda a raiva em uma garrafa vazia no chão, quebrando-a até os cacos se reduzirem a farelos. Os outros o observam quase com expectativa, como se estivessem esperando mais um ataque de pirraça dele. Mas aquilo não ia voltar a acontecer. Havia sido um desabafo, impulsionado pelos momentos de pânico, mas estava terminado. Junior agora só queria acabar o maldito plano para poder voltar ao museu e quem sabe saborear uma concha das sopas enlatas que trouxera da missão de coleta mais cedo.

– Cara, desculpe por isso agora... – diz ele constrangido, olhando para os cacos espalhados no chão – Não faço de novo.

– Te entendo, cara – diz Hugo – Quase fui mordido hoje, umas duas vezes. Parece que o mundo está brincando contigo, testando seus limites. É normal explodir assim. Ninguém está te culpando.

Alice estala os dedos e solta um assobio:

– Ei, Garotões! – diz ela, olhando o retrovisor – Podem parar a melancolia porque temos trabalho a fazer! Eles estão vindo!

Os três sentem pelo ar os primeiros indícios da horda se aproximando, o odor rançoso se instala no interior da viatura muito antes que qualquer um deles possa erguer a cabeça e encarar o breu da rua. A tranquilidade serena da noite é abalada pela sinfonia infernal de gemidos e grunhidos, que vibra o ar antes mesmo que Junior possa fazer contato visual com a massa de figuras desfiguras que emerge dos portões do parque como um exército manco de Satã.

– Só precisamos levar esta galera para longe – sussurra Hugo, encarando a maré de mortos-vivos com dificuldade pela grade que separa os bancos da viatura – Só então, poderemos voltar a dormir em nossa casa.

– Bom, não sei quanto a vocês, garotos – comenta Alice, abaixando o vidro do motorista e erguendo uma pistola para o céu escuro – Mas eu quero acabar logo com isso para voltar para minha cama!

O tiro do sinalizador sobe serpenteando em direção à Lua, como uma cobra feita de puro fogo. Um milésimo de segundo se passa sem nenhum acontecimento especial, então a noite se torna um dia sangrento, com o disparo iluminando quilômetros de vermelho. As redondezas fervilham de gemidos e passos, como se um caldo de mordedores raivosos tivesse acidentalmente entornado em todo o bairro. Milhares de cadáveres percebem a iluminação repentina e retomam o rumo de sua caminhada espasmódica para o local de origem do disparo, uma viatura estacionada em uma rua ao sul do parque.

– Chamamos a atenção que queríamos – comenta Junior, observando o cerco de cadáveres se fechar contra as laterais e os fundos – Ok, agora precisamos REALMENTE dar um fora daqui!

Hugo e Alice concordam com a cabeça e a chave é girada, a viatura ganha vida e o motor ronca um rolo de fumaça pelo escapamento. Os errantes mais próximos são derrubados pela movimentação repentina e seus corpos são esmagados pela multidão em câmera-lenta atrás deles. Alguns braços e mãos conseguem encostar-se ao veículo e uma série de marcas de dedos ensanguentados sujam os vidros e a lataria. Junior observa pela janela a horda passar como um borrão distinto de dentes e olhos leitosos, tentando reconhecer as feições desfeitas e respirando profundamente para afastar a sensação de claustrofobia. Ele ergue o braço instintivamente por cima do ombro para agarrar uma garrafa de água na mochila, porém seus dedos roçam o vazio. Junior solta uma exclamação que assusta os outros e dois e faz Alice quase chocar o carro contra a parede de cadáveres que os cerca.

– Mas que porra foi essa?! – diz Hugo, virando-se para encará-lo – Quer nos matar?!

– A MOCHILA! – berra Junior, em puro pânico – PERDI A MOCHILA NA PICAPE!

Hugo compreende de imediato. Seus olhos se arregalam e o queixo do menino cai à medida que ele fixa o olhar no vazio existente nas costas de Junior.

– Era só uma mochila, Junior – diz Alice, sem tirar os olhos da rua escura à frente - Conseguiremos outra qualquer dia desses.

– Não era uma mochila, Alice. Era A mochila. O material todo estava lá dentro!

– O que isso significa?!

– Bom, significa que deixamos para trás o único jeito de acabar com essa horda. Teremos que pensar em algum outro jeito, pois só temos algumas balas e...

Um cadáver magrelo do sexo masculino surge na frente da viatura e é rapidamente atropelado por Alice. Metade do corpo se choca contra o para-brisa, trincando-o por inteiro e sujando de sangue escuro e viscoso. O carro derrapa no asfalto, puxando para a esquerda com um violento golpe de volante. Junior aperta o estofado sob si com tanta força que os nós de seus dedos se tornam brancos. Barulhos aquosos e duros informam que a viatura está abrindo caminho pelo meio da horda, triturando um mar de entranhas, bile escura e matéria cerebral, que pintam a lataria com um macabro tom de rubro com negro. Alice aperta o volante com as mãos suadas e tenta ligar o limpador para desobstruir a visão, porém os pneus traseiros deslizam tanto no asfalto escorregadio de sangue que a garota rapidamente perde a direção.

– FREIA! FREIA! FREIA! – grita Hugo, em pânico, sacudido a garota pelo ombro – CACETE! PUTA QUE PARIU!

Não há tempo nem para gritos finais. Em alta velocidade e sem direção, a viatura se choca contra um SUV estacionado em um posto de gasolina, estilhaçando os vidros e atropelando a bomba de gasolina com uma explosão de destroços, pedaços de ossos e tripas. O carro de policia freia, por fim, no interior da lojinha de conveniência do posto, destruindo por completo as mesas e cadeiras de plástico e pondo um fim no balcão repleto de balas e chocolates vencidos.

Junior abre os olhos um pouco depois da batida, ainda zonzo com a colisão e se perguntando quando caiu no chão. Ele ergue a cabeça e se percebe no interior de uma viatura totalmente destruída, sem nenhuma janela, com pedaços de cadáveres espalhados pelo estofado e o teto. A grade que separa os dois bancos se desprendeu e Junior pode ver claramente os dois amigos nos bancos dianteiros, repletos de cacos de vidro e pedaços de prateleiras no colo. Sua cabeça dói horrores e seus joelhos e mãos estão em carne viva. Ele se levanta, fazendo as garrafas de bebida rolarem para longe, equilibrando-se com cuidado em busca da maçaneta. Os outros dois também saem da viatura destruída, aos resmungos e gemidos. Hugo aparenta estar bem, escapando com apenas alguns arranhados leves e um corte na bochecha, enquanto Alice sofre com sangramentos na cabeça e no nariz, além de um lábio cortado e arranhões no queixo.

– Essa foi uma das boas, admito! – comenta Hugo, rindo. Ele se desequilibra e cai contra a porta fechada da viatura, escorregando até o chão sujo de poeira e cal. Junior pega um bolo de guardanapos sobre uma das mesinhas restantes e pressiona contra o sangramento na testa de Alice, enquanto ela sussurra um obrigado silencioso.

– Ok, precisamos de um novo plano e rápido – diz Junior – Alguma ideia, Hugo?

O garoto faz que não com a cabeça e encara os destroços cobertos por uma fina camada de poeira da colisão recente. Nuvens de cal chovem no ar escuro e algumas placas de gesso do teto se soltam, levanto consigo as lâmpadas fluorescentes há muito apagadas. Junior passa as mãos pelo cabelo sujo e se vira para encarar a horda que se aproxima, procurando em algum lugar da sua mente um bom plano. A onda de errantes surge por ambas as ruas que originam a esquina do posto de gasolina onde estão. São quase cento e cinquenta mordedores variados, em diferentes estágios de decomposição, em uma marcha lenta em busca do cobiçado prêmio. Junior percebe que estão encurralados, sem rotas alternativas ou becos para escapar. A viatura está acabada, com a frente totalmente amassada, os pneus furados e a lataria lambuzada de sangue e entranhas. Ele está prestes a se virar para os amigos e comentar o triste fim que teriam quando uma exclamação de Hugo faz Junior virar a cabeça:

– MAS QUE PORRA! – diz ele, puto, levantando-se rapidamente do chão – A merda do tanque deve estar vazando.

Junior engole em seco. Sua mente se ilumina como uma lâmpada. Ele tem uma ideia.

Uma a uma, ele recolhe as garrafas de bebidas no chão da viatura e as enche com o líquido amarelo e fedido que vaza do tanque até uma poça no chão da loja. Os outros dois entendem o significado da ideia e correm em direção ao balcão retorcido, catando pilhas e mais pilhas de guardanapos empoeirados. Junior vira a cabeça por cima do ombro e se apressa – há vultos da horda em todos os cantos, alguns já ultrapassaram o SUV batido e se arrastam para o interior do posto de gasolina – o tempo está se esgotando.

– Vamos, Alice! Rápido – Junior já está com alguns guardanapos amassados na mão enquanto Hugo lhe entrega um isqueiro Bic do mostruário da lojinha. A garota lhe entrega a primeira garrafa. Junior rapidamente põe os guardanapos no bico e então vira a garrafa de cabeça para baixo, deixando-a assim por alguns segundos até que os panos se ensopem. O odor de podridão já está forte o suficiente para os olhos lacrimejarem de nojo. Alguns dos primeiros errantes são derrubados a tiros por Hugo, que descarrega as balas restantes da pistola como um último apelo.

– Cacete! Porra... Mas que porra! – Hugo aperta mais uma vez o gatilho, mas o pente vazio estala inutilmente. Ele e Alice então erguem suas facas, em posição de ataque. Atrás deles, Junior acende o isqueiro e coloca fogo nos guardanapos, as chamas se espalham por toda a garrafa, alimentando-se do combustível.

Junior lança o coquetel molotov no centro da horda.

A explosão alcança um raio de três metros, levantando uma bola de fogo que ilumina a noite em tons de amarelo e vermelho. Os mordedores mais próximos são lançados para os ares, seus corpos em combustão devido ao metano de suas roupas ensopadas de sangue. O turbilhão de fogo e fumaça lambe as outras fileiras do exército de errantes, engolindo seus rostos pálidos em casulos de chamas. Os mais próximos da explosão que não foram atingidos caem com a força do impacto e derrubam seus companheiros, como peças de um terrível jogo de dominó.

– Uma já foi! – comenta Hugo, pegando a segunda garrafa e enfiando um bolo de guardanapos – Passa o Bic, agora! – Ordena, incendiando o coquetel e lançando contra a investida dos mortos.

A segunda garrafa acerta em cheio o capô do SUV. A bola de fogo arremessa pedaços do veículo como projéteis em chamas, ricocheteando na horda e eliminando dezenas de suas fileiras. O efeito dominó derruba as quatro últimas linhas de ataque com uma confusão de braços e pernas que termina em um grande amontoado de corpos em chamas. Chamas lambem o resto do SUV destroçado e sobem pelas pilastras descoloridas até o teto do posto. O calor do incêndio que se alastra rapidamente faz Junior soltar uma risada estrangulada e incoerente. Parece que uma lâmpada de esperança se acendeu em seu peito. Mais uns três coquetéis e eles estão salvos, praticamente.

Os mortos derrubados pelas explosões rapidamente se levantam e retornam ao passo espasmódico em direção à lojinha, sem sequer notarem o fato de estarem completamente em chamas. O sorriso de Junior some.

– PUTA MERDA! – berra ele, lançando mais uma garrafa contra a horda. Alice e Hugo fazem o mesmo e três explosões sacodem o ar e esquentam ainda mais a noite. – Esses filhos de uma puta estão custando a morrer!

Hugo sai de perto da vitrine estilhaçada e percorre a escuridão da loja em busca de alguma coisa. Quando retorna, sorrindo satisfeito, mais duas garrafas foram arremessadas contra a marcha irrefreável de mordedores.

– Precisamos abrir um caminho pela horda! – diz ele, colocando a mão sobre o rosto para se proteger do calor que exala do incêndio – Se conseguirmos esta brecha estamos a salvo!

O teto do posto de gasolina estala ameaçadoramente, parcialmente colorido de chamas amarelas e laranjas. Alguns mordedores desabam no chão, finalmente vencidos pelo fogo que os consomem, mas a maioria continua a se aproximar.

– Mas o que impede do restante simplesmente não se virar para nós e nos devorar na fuga?! – Alice lança mais uma garrafa, acidentalmente atingindo um errante me cheio na cabeça. O fogo se espalha pelo restante do corpo e respinga chamas nos companheiros ao lado.

– Bom, teremos que causar uma distração – grita Hugo, apontando para trás – Uma distração beeem quente!

Junior e Alice olham para onde o braço do garoto aponta. Ambos se entreolham, aterrorizados.

Os três recolhem as mochilas restantes do interior da viatura e repartem as balas restantes entre si. Então, eles sacam as facas e se preparam para a corrida mortal que se aproxima, todos aflitos e suados. Alice e Junior tomam as posições dianteiras, em pé sobre o carpete de cacos de vidro da vitrine destroçada pelo carro de polícia, enquanto Hugo fica mais atrás esperando o sinal. A horda continua avançando, agora a poucos metros de distância, brilhando amarela e laranja contra o negro da noite. Há fumaça no ar e o calor está tão insuportável que as costas de Junior parecem se afogar no próprio suor.

Os três aguardam pacientemente por uma brecha, nem que seja um espaço entre dois errantes, um último suspiro de esperança naquele jogo de xadrez arriscado. Respirações fundas são intercaladas com batimentos acelerados e pingos de suor que escorrem das testas. E então, dois mordedores desabam inesperadamente, vencidos pelas chamas que os engolem. O caminho á direita fica livre.

Junior acena para Hugo e se lança para fora do posto, ultrapassado apenas por Alice. Os dois desatam a correr em plena velocidade pela direita, driblando a horda e as pilastras em chamas do teto que lentamente começa a ceder sobre suas cabeças. Hugo vem logo atrás, em plenos pulmões, atirando contra os mordedores mais próximos que notaram a movimentação repentina. O restante da horda não presta a atenção ou é tão lerda que seus corpos continuam a se mover em direção à lojinha. O trio alcança o fim do posto e se abriga atrás de um ônibus na esquina antes mesmo que qualquer um dos mordedores possa sequer ter virado a cabeça em sua direção.

A explosão de milésimos dura toda uma eternidade de cores. O som se assemelha à um tambor gigantesco tocado pelo próprio inferno. Os três se encolhem atrás da carroceria do ônibus enquanto o cogumelo de fogo manda pelos ares todo o posto de gasolina. Pedaços da viatura e do SUV, estilhaços de metal e uma chuva de cacos de vidro se espalham pela atmosfera da rua como uma tempestade de meteoros. A onda de fogo subsônica varre dezenas de corpos. Alguns são incinerados, mas a maioria é despedaçada pelos estilhaços e suas partes voam pelos céus como um macabro show de fogos de artifício.

As janelas do ônibus se estilhaçam com a explosão e caem em forma de chuva sobre o trio. Junior bate a cabeça na carroceria com o susto e sente Alice saltar de medo ao seu lado, com os olhos arregalados de pânico.

– Puta merda! – exclama Junior, limpando o suor da testa com as costas das mãos, visualmente assustado – Ficarei surdo assim por anos! – Ele lança um olhar para os restos fumegantes do posto de gasolina. O teto se foi e a carcaça do SUV está largada a vários metros de distância de seu antigo local, totalmente carbonizada. A lojinha de conveniência foi reduzida em uma pilha de destroços fumegantes e não há sinal da viatura. Os mortos foram totalmente erradicados do local. Não há vestígios da horda, tirando os pedaços de tripas e membros largados por todos os cantos da esquina.

– Precisamos ir embora – comenta Hugo – O barulho vai atrair todos os mortos do planeta para cá. Vamos para casa.

Os três se levantam, sacudindo os cacos de vidro e a poeira das roupas. A chuva de verão, antes um temporal, agora se reduz a uma fina geada refrescante. Junior sorri para os outros dois e eles retribuem o sorriso, satisfeitos por sentirem as gotas escorrerem pelo cabelo e pelo rosto. O trio então dá as costas para o posto de gasolina e inicia a caminhada de volta. Os passos são tranquilos, sem ansiedade ou pressa. Parece ser uma cena de outro universo, mas não é. É esperança. Esperança por terem sobrevivido à noite e por que vão sobreviver à próxima. Esperança que um dia caminharão pela mesma rua sob a mesma chuva, tranquilos e despreocupados. Esperança por que eles estão vivos, no meio de um mundo repleto de dor e morte.

É Júlia que os recebe no portão sul, alguns minutos mais tarde, seguida de perto por Clara e Denise, a grávida. Junior abraça sua irmã com tanta força ao vê-la viva que os dois caem no asfalto molhado ensopando todas as roupas. Os outros trocam abraços rápidos e risadas aliviadas, como antigos amigos se encontrando para uma noite de vinho. Eles entram no parque, agora livre de mordedores, e trancam o portão com uma série de cadeados e correntes tão firmes que quase parece impossível alguma vez aquilo se abrir de novo. No caminho de volta ao museu, agora iluminado pela luz bruxuleante de velas em seu interior, os seis retomam o mesmo caminho que desembocava no corpo destroçado de Sarah. A lembrança faz Junior desviar o olhar do bosque e abaixar a cabeça.

– Já retiramos o corpo dela – comenta Clara, agarrada ao braço do irmão, como se estivesse lendo seus pensamentos – Estávamos justamente indo atrás de vocês quando nos deparamos com ela. Gabriel e Bento enrolaram ela com um pano para as crianças não verem e Marta está ajudando o doutor a cavar a cova.

Hugo assente. Junior respira fundo e solta um sorriso triste para a irmã. Clara lhe planta um beijo na bochecha.

– Só perdemos ela? – pergunta Alice.

– Sim. Estavam todos trancados no interior do museu quando eu cheguei. Ligamos as lanternas e atraímos todos àqueles que vocês não conseguiram afastar com o sinalizador. Júlia e André também fizeram um bom trabalho com a porção norte. Ouvimos as granadas daqui, mas nada mais alto do que o que vocês fizeram. Sei que vocês devem ter tidos motivos, mas foi irresponsável. Teremos muitos mais mortos nas grades agora.

– Foi necessário – diz Hugo – Lidaremos com mordedores do lado de fora. O importante é que permaneçam lá fora.

Eles ultrapassam o coreto que os dividiu antes, mais cedo. Parece que havia acontecido há muito tempo para Junior, quase que em outra vida. A chuva aperta e eles aumentam a velocidade do passo para subirem a colina até o museu. No meio do caminho, Hugo retorna ao assunto:

– Quem finalizou Sarah? Por que já a encontramos com um tiro na testa.

– Gabriel disse que viu a garota sendo mordida – conta Denise, arfando com a caminhada – Porém, ele nos contou que ela estava responsável pelo portão principal. O que ela fazia perto do portão sul nós não sabemos.

O clima se intensifica. Olhares são trocados.

– Conversarei com ele – diz Hugo, pondo um fim no enredo – Ele deve ter uma explicação.

O resto do grupo está reunido ao redor do monte de terra fofa onde agora descansa Sarah. As pessoas não choram pela falta de intimidade ou o pouco conhecimento que tinham pela garota, mas demonstram respeito e pouco falam diante da cova. André e os avós, Amadeu e Elizabeth, estão um pouco mais distantes, sentados em um banquinho com um encostando a cabeça no ombro do outro. Se Junior não sentisse tanto ciúme do garoto, acharia aquilo comovente. Eles se reencontraram, e estavam vivos. O doutor tenta citar algumas palavras da bíblia, mas a chuva aumenta um pouco mais e o grupo é obrigado a deixar Sarah dormir em paz, sem funerais ou frases de consolo. Junior está quase seguindo o resto do grupo em direção ao museu para um pouco de sopa enlatada no estômago, quando uma voz o faz parar:

– EI, Junior! Espere um pouco aí, cara! – grita Hugo.

– Mais algum problema?

– Não. Não... Não é sobre isso – começa ele, emparelhando seus passos com Junior – Eu só queria te dizer obrigado, cara. Por tudo. Você nos salvou hoje. Se não tivesse pensado em lançar fogo nos mordedores, provavelmente eu não estaria de volta a este lugar. Devo minha vida a você.

Junior solta uma risada, nervoso. A chuva desce uma mecha do seu cabelo para a testa.

– Não precisa me agradecer por nada. A ideia de explodir a viatura foi sua. EU estaria morto se não fosse você. Os coquetéis molotov foram só uma coisa de puro pânico e tensão. Você ouviu a Clara, aquilo foi mais um erro do que uma estratégia.

– Mas salvou minha vida. Além do que, você acreditou em mim. Acreditou neste lugar. Quando todos queriam virar as costas e partir, você me escutou e mudou de ideia. Viu o potencial que esse parque tinha e se colocou a disposição para salvá-lo. Nunca vou me esquecer disso – Hugo coloca a mão no ombro de Junior – Você é oficialmente meu melhor amigo e a pessoa que eu mais confio neste lugar todo. Você é o segundo em comando.

– Agradeço e admito que o sentimento é recíproco – responde ele.

Os dois caem na risada e sobem em direção ao museu.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo:
Após um momento de calmaria e de recuperação, Hugo se vê diante de um problema que pode rachar seu grupo novamente. Algo chega aos portões do parque.



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