Alcali escrita por Aeikin


Capítulo 1
Depois que o fogo apaga, as cinzas reinam.


Notas iniciais do capítulo

Esse casal tava precisando de uma fic. Parei pra perceber que faz quase um ano que tenho essa ideia e nunca consegui colocar ela no site, ou pelo menos terminá-la e dar-lhe um final decente. Eu amo Shyvana e Jarvan, e pra mim, não acaba assim. Então, apreciem.



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Alcali

Corredores vazios, idas a bares sozinho, outro lado da cama gelado, garoa fina do nascer do sol até o cair da noite. Escritório trancado, palavras travadas na garganta e uma sensação angustiante no peito. Batimentos acelerados ao todo tempo, sensação de falta e... a cama ainda fria. Era uma única rotina, um único ideal a ser seguido. Ele sabia disso. Sabia de seu dever e das consequências de não segui-lo. O título de príncipe mimado já havia sido esquecido há tempos, apenas permanecia um grande desolado ao fim. Jarvan conseguia ver os vermes em suas entranhas, impedindo-o de encarar o que estava a sua frente.

Seria egoísta para ele olhar ao seu lado? A frente não estava disponível. Ao menos, ao seu lado era melhor. Ao lado, simples e astuta, estava alguém. Alguém merecedor de tal posição. Mas aqueles pequenos e milhares de vermes se apoderavam de sua alma. Eles, as suas dores, seus medos, seus arrependimentos e seus rancores, se misturavam e formavam a obscuridade necessária para seu ser. E o outro lado de sua cama continuava gelado.

A meio-dragão, robusta e exótica, o esperava se virar. Ou ao menos notar. Notar nela uma valorização e reconhecimento. Mas Jarvan via Shyvana, ele só não conseguia admitir para si.

As águas daquela cachoeira caíam em uma queda infortuna. Elas nunca seriam as mesmas... Por cada solo que passassem, novas experiências e novos pensamentos viriam. E novas influências. E assim como aquelas águas frescas de verão, Shyvana não era a mesma.

Sentada depois da grade de proteção da pequena ponte, ela olhava as águas indo... deixando algumas poucas lágrimas se misturarem com o salgado. Não estava em segurança naquele lugar, a queda d’água era a poucos metros dali. Mas ela não queria estar em segurança. Não queria mais proteger. Só queria estilhaçar. Estilhaçar seu orgulho e sua lealdade e os reduzir às cinzas. Pelo menos uma vez. Agir com insensatez, mostrar aos humanos que dragões são só isso: pura fúria.

Mas em meio às quedas de água e lágrimas, ela detestava sua ira. Detestava ser egoísta e chorar por um querer impossível. Se contradizia. Aquela notícia a retirara do chão, a fez perder a razão que ela jurou nunca ser destruída. Não era só isso. Havia perdido Jarvan também. Riu de si. Não poderia perder alguém que não tinha.

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Lealdade. Se Jarvan fosse atribuir um nome para tal palavra, ele era Shyvana. Desde aquele dia gélido nas montanhas, o significado daquela palavra mudara. Havia ganhado uma tonalidade mais avermelhada. Mais sádica. Mais sangrenta.

Nunca foi de certo confiar em um meio dragão, mas aquela foi a melhor atitude impensada que ele já poderia ter tomado. Ela lhe ofereceu sua vida em troca de tudo que havia sido feito. O brilho daquelas pupilas âmbares foi gravado em sua mente. Aquele brilho desafiador. O brilho de um dragão em sua ira plena. A brasa que Shyvana soltara aquele dia virara cinzas, e Jarvan viu certa beleza naquele pedaço de nada deixado para trás.

Jarvan no começo se achava roubando a liberdade de alguém. Ele reconhecia a honra de Shyvana, mas se sentia um fardo para a própria meio dragão. O tempo deixou claro que Shyvana o protegia porque simplesmente queria. Ela tinha uma enorme dívida com Jarvan depois daquele dia, e sempre deixava claro que ela o havia escolhido. Não o contrário. Dentre tantos humanos, havia sido ele.

Ele se sentia um fardo, mas era justamente ele querer ser um fardo que o tornava um. Queria continuar sozinho, queria lutar por si próprio. Bater em seu próprio peito e dizer que suas dores foram curadas por ele mesmo. Queria idolatrar suas ruínas em meio às cinzas. E era exatamente por isso que sua cama estava gelada. Estava.

O sol de fim de tarde fazia o rio ao seu lado brilhar em uma tonalidade laranja. Aquele mesmo brilho efêmero que acaba todos os dias. Jarvan conhecia tal sensação de final. Era a mesma sensação quando cruzava seus olhos como os de Shyvana. Ele havia comparado o brilho do rio naquela tarde com o afastamento de Shyvana nos últimos dias. Jarvan não se sentia errado. Mas mantinha sua máscara de indiferença. Custasse o que custasse. Ardesse o que ardesse.

Andava na grama de sua margem, querendo olhar sua queda. Ele não conseguia saber se uma cachoeira era algo bom ou ruim para o rio. Mas por uma estranha sensação, a linha de seu pensamento foi perdida e apenas aquela sensação de falta preencheu seu corpo. A medida que seus passos aumentavam sua velocidade para ver a queda, aquela sensação ocupava cada lacuna que Jarvan insistia em não ver. Aquilo se revirava dentro de si. A sensação de tristeza ao ver o brilho límpido do rio iluminado pelo pôr-do-sol o fez correr. Voltou a revirar. E Jarvan correu. Correu em direção a ponta do dique que era sua indiferença.

A excitação era misturada com a hesitação enquanto corria. Não entendia. Era quase como um cego por vontade própria. Correu até a ponte e ouviu o rangente barulho de ferrugem. Socou a grade de proteção com uma frustração inexplicável. Antes não conseguia lidar com as pessoas, naquele momento não conseguia lidar consigo mesmo.

– Qual o problema, príncipe Jarvan?

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Shyvana sentiu aquele cheiro familiar pairando pelo ar perto de si. Antes, no começo, ela estranhou aquele cheiro. O achou repugnante. Vulgar. Mas conforme o tempo passava e Shyvana via beleza por trás dos atos de Jarvan, o cheiro foi se tornando agradável, foi tornando-se suportável. Naquele momento, ela queria que fosse apenas suportável, não algo a mais.

Logo depois, ela ouviu passos apressados. Jarvan corria. Shyvana quis se levantar e perguntar o que estava de errado. Mas ela não o fez. Ela preferiu se esconder. Ela estava no suporte e ele na ponte. Ela estava na margem e ele no centro. Ela tinha um dragão queimando dentro de si e ele era um humano com sua miséria. Ela rompeu friamente com a sua lealdade naquele minuto. Na verdade, ficar parada foi a expressão máxima de seu medo. Medo de ouvir a verdade. Só de pensar no que aconteceria a fez querer chorar. O vento bateu e Shyvana sentiu o impacto da mão de Jarvan contra o metal. E para que as lágrimas não escorressem, ela recorreu a sua lealdade.

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– Você me assustou. – Ele disse enquanto olhava para cima e via as poucas nuvens daquele fim de tarde.

– Peço desculpas. – Sua voz soou gentil. Ela mordeu seus lábios.

– Eu que peço... Você poderia cair daí. – Jarvan riu de canto.

– Do que ri, príncipe?

– Rio de como as coisas são... Você nunca cairia, não é mesmo, Shyvana? – Um pássaro cantou. Ela viu a onda que se formou no momento em que uma lágrima caiu no rio. Alguns segundos depois, a onda era levada. Shyvana também.

– Claro que não. – Aos ouvidos de Jarvan, a voz de Shyvana era normal, impassível. Mas ele sabia que ela lutava.

– Não venho muito a esta ponte. Não tenho boas memórias. É a ultima antes da queda d’água, porém é a mais silenciosa. Esse silêncio é assustador.

– Desaprova o silêncio, Jarvan?

– É no silêncio onde meus demônios moram. – Nada foi ouvido de Shyvana naquele momento. Jarvan soltou um longo suspiro. – Você começa a ter medo do silêncio quando decifrar a escuridão de sua mente já não é satisfatório.

– Foi nesse ponto no qual cruzamos?

– Sim, eu achei que fugindo do castelo encontraria reparação.

– O que encontrou, Jarvan?

– O que encontrei? – Ele riu de canto. Uma brisa leve levou os cabelos negros pelo vento. – Encontrei o silêncio que dilacera a minha alma. Percebi que a paz é algo utópico. E que estou sempre caminhando para a minha própria ruína, varrendo as minhas cinzas.

– Essa sensação me é familiar. – Foi a única coisa que ela quis dizer. Ela já conhecia a alma de Jarvan, ele não precisava falar para que ela entendesse o que acontecia.

– Por que vem sempre aqui?

– Gosto de ver as águas e os peixes passando.

– Se identifica? – Ele riu de canto e aquilo irritou Shyvana.

– Na verdade, não. Só que elas me lembram você. – Shyvana só percebeu as palavras depois que elas saíram de sua boca e se encontraram com o ar.

O silêncio reinou durante segundos. O barulho da queda d’água que antes era quase inaudível, se tornou a única coisa a se escutar. O coração de Jarvan deu uma leve acelerada. As palavras ecoaram em sua cabeça. Não só uma. Nem duas. Um sorriso nasceu do canto dos lábios. Aquilo fazia bem pro ego. O ego que Jarvan tinha perdido até encontrá-la. Shyvana juntou os cacos e o como se não fossem cacos, os costurou sem pensar. Até agora.

– Por que? – Ele se sentiu culpado por seu silêncio. De alguma forma, aquilo havia a machucado. E ele sabia disso.

– Por que? – Ela repetiu com aquela voz gentil novamente. Aquela voz que Jarvan tinha medo de quebrar. – Cada água que passa nunca mais passará por este solo... Elas nunca serão elas mesmas. Sempre absorverão um pouco de cada lugar. Me lembram você por causa disso. Porque a cada passo que você dá, não é possível voltar atrás. A cada passado que você dá, você não é o mesmo. A cada passo que você dá, você ramificou seu futuro e deixou para o passado algo que poderia fazer parte do futuro. E você ao menos nem sabe disso.

– Está falando de minha indiferença?

– Sim. – Outra onda se formou. Shyvana percebeu que naquela progressão, a superfície do rio ficaria igual ao chover.

– Você é a única que fala comigo normalmente. Que não tem medo de me machucar ou de jogar na minha cara o meu ego. – Ele quis mudar de assunto. “Não. Não diga que eu sou única, não minta.” – Me lembro de quando meu pai pediu para você me tratar com mais respeito. – Ele riu, lembrando de um passado que não voltaria. – Você não tinha jeito naquela época...

Fui muito bem domada.” Foi o que nasceu em sua mente, mas Jarvan apenas apreciou o silêncio.

– Shyvana? – Ele teve medo. Um leve desespero começou a nascer em suas entranhas.

– Estava distraída, príncipe. O que o senhor disse? – Ela juntou todas as suas forças e falou com a melhor que tinha.

– Não era nada demais. – O choro veio até sua garganta e ela o engoliu com dificuldade. – Me diga, estará ao meu lado amanhã? – A proposta foi jogada ao vento. Jarvan conhecia todas as palavras de sua resposta.

– Com todo o prazer. – Shyvana sorriu fraca para si mesma. Voltou a engolir o choro. Ela já havia engolido várias coisas.

– O casamento vai beneficiar ambos lados. – Jarvan riu amargo. – Quem não ficaria feliz com isso? – Ele sorriu imaginando sua desgraça.

Aquela simples palavra foi o estopim para seu desespero. Shyvana parou de segurar uma haste de ferro e tapou a sua boca com as mãos, tentando controlar os urros de seu coração. Suas lágrimas escorriam como chuva dos grandes olhos amarelos. Aquilo era o fim de sua sanidade. Queria se transformar e voar para longe. Queria se jogar daquela cachoeira e ser levada pelas águas. Um soluço veio até a garganta e pairou pelo ar abafado.

Jarvan escutou. Sabia que não deveria, mas esticou-se e viu a única imagem que ele não queria ver. Em anos, Shyvana chorava. E chorava por causa dele. Sentia-se um incomodo. Para ele, inicialmente era aquilo: uma sensação de perca. Os batimentos cardíacos sempre estavam acelerados, como se estivesse esperando algo acontecer. E esse algo não vinha. Esse algo dependia dele. E aquela sensação de alerta ficava. Era um grande arrombo em sua alma. Um arrombo que ele não conseguia perceber, mas conseguia sentir. Mas esse sentimento havia sido ultrapassado naquele momento. Ele viu as lágrimas escorrendo. Quis consolá-la. Quis dizer para ela que ele era dela. Mas ele não podia ser. Ele quis que ela viesse para seus braços e ficasse lá até pegar no sono. Queria dizer que estava tudo bem. Mas não estava. Ela era aquela que te protegia. Ele que queria a proteger naquele momento. A proteger dele mesmo. Não conseguia negar que a queria do seu lado. Mas não podia.

– Deveria entender mais esse sentimento. – Ele sussurrou com os cabelos negros caindo pela face. Não podia mais olhá-la. Não podia mais iludi-la. Aquilo era errado. Era doloroso. Era só questão de escolha de palavras para estilhaçar. E quem deveria ser estilhaçada era Shyvana.

– Eu que deveria perguntar isso pra você, Jarvan. – Ouvir seu nome de forma tão pessoal foi como o cruzar de um relâmpago no céu de seu coração. Brotaram lágrimas em seus olhos, mas ele não as permitiu rolarem. Depois que o fogo apaga, as cinzas reinam. E novamente foi ouvido o silêncio. No meio de suas lágrimas, Shyvana teve certezas. Eles não eram nada além daquilo. Nunca foram. E nunca seriam.


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Notas finais do capítulo

O que o Jarvan fará ou deixará de fazer fica por vocês.