Maybe Someday escrita por SomeKilljoy


Capítulo 17
Capítulo 17


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Perdoa minha demora de mais de um ano (novo recorde!) e não desiste de mim. Não vou delongar com mais desculpas esfarrapadas, mas eu tive um ano corrido porque as coisas mudaram muito de ritmo, e meu foco desviou-se pra outros projetos de escrita :'D Comecei o capítulo em abril, mas ele foi sujeitado a muitas pausas, o que me fez terminá-lo só em novembro. what can i do. O capítulo passado também foi meu preferido e não recebi nenhum comentário, o que não foi exatamente um incentivo :'^ mas a gente supera. Also, me recuso a abandonar essa historinha, me apeguei demais aos personagens pra isso u_u por isso, não se preocupem caso eu demore demais: é só por falta de tempo e perfeccionismo, não desistência.
Quero agradecer à Yuna, a leitora mais amorzinho e dedicada que eu tenho, que nunca falha em me motivar, e à Lari, amor da minha vida, que me aguenta enviando trechos não-solicitados do capítulo de madrugada pra ela. Anyway, obrigado pra quem fica (dedico o capítulo à paciência de vocês). Desculpa às falhas, sou meramente um humano. Boa leitura ♥ (btw, Maybe Someday fez 3 aninhos dia 11/11! yaaay!)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/553622/chapter/17

 

Gray se sentia otimista em relação à semana que estava por vir.

 Era como se sua rotina tivesse tomado uma guinada positiva. Não que tivesse tanto impacto em sua vida quanto atingir um melhor desempenho escolar, corrigir todos os seus equívocos passados ou algo dessa magnitude. Mas era como se o trem que antes parecia descarrilhado retornasse aos trilhos. 

Sentia-se mais esperançoso. Alguns dias atrás, seu humor havia se sujeitado a certa instabilidade. Não que tivesse ficado perdidamente para baixo, mas a apatia tornou-se de certo modo mais presente. No entanto, mantivera-se ocupado com distrações. Colocou algumas de suas leituras antigas em dia, as quais havia adiado por uma eternidade. Continuou ativo nas caminhadas com seus cachorros. Procurou socializar com amigos — e também com quem estava quase perdendo contato —, já que interagir geralmente funcionava para revitalizar seu ânimo.

Porém, nada parecia servir como o combustível necessário para a ascensão do Gray vivaz e energético de sempre.

Talvez tenha sido o sonho, que trouxe à tona memórias sepultadas capazes de soterrá-lo. Talvez tenha sido o sentimento de culpa e impotência em decorrência da impressão que fazia tudo errado. Talvez tenha sido sua vontade de se afastar, em reciprocidade ao comportamento elusivo de Tyler. Talvez tenha sido uma amálgama de todos esses fatores. Sua auto-estima, apesar de ser suficiente às vezes, não era estruturada bem o bastante para proteger-se contra alguns abalos. Embora se reconstruísse, não era sobre uma pedra angular graúda, e sim suspensa por andaimes frágeis.

Mas, depois dos últimos dias, a constatação de que tudo sempre ficaria bem em algum ponto cristalizou-se. No caso, dessa vez, tudo ficou ótimo.

 

Gray desejava não se apegar de forma tão rápida e natural assim, mas voltar ao contato normal com Tyler inegavelmente o deixou feliz. Passar o tempo com os amigos neste sábado também, além de fazê-lo se sentir uma gratidão que estava em falta. 

E, aproximadamente uma semana antes disso, outras expectativas — embora misturadas a tensões — se originaram da iniciativa de seu pai de conversar com ele. A princípio, quando havia mencionado “ter um diálogo a sós, entre pai e filho”, Gray sentiu como se fosse algo a ser evitado com todos seus esforços. Mas, por sorte, a vontade reconciliatória do pai se sobrepôs a vontade evasiva do filho, do que derivaram bons resultados.

 Havia comentado sobre esse diálogo com alguém — Tyler. Agora, parecia que seus pensamentos e intenções provenientes dele estavam mais organizados e claros. Mas ainda buscava por uma conclusão do que fazer…

 Gray havia acabado de voltar da caminhada com os cachorros quando o pai havia o abordado. Estava libertando cada um deles das respectivas coleiras, prestes a ir aos fundos para reabastecer suas vasilhas de ração e água. Suor cobria praticamente toda a extensão do seu torso e ele só queria tomar um banho e cair de cara na cama.

— Filho? Posso falar com você, por um minuto? — Seu pai surgiu, atrás da bancada da cozinha. Em resposta, só murmurou que meio que estava ocupado no momento. — Por favor.

Pela expressão em seu rosto, a duração do que ele pretendia seria bem mais que um minuto.

Suspirou.

— Certo. Só vou tomar um banho primeiro.

Depois de dito e feito, encontrou o pai na sacada, escorado por sobre grade e contemplando o horizonte. Como não era a primeira vez que o pai tentara conduzi-lo àquela discussão, decidiu não ceder à tentação de adiá-la mais uma vez.

Adam percebeu a aproximação do filho, lançando um olhar por sobre o ombro. Gray posicionou-se ao lado dele, quase ombro a ombro. Ambos tinham quase a mesma altura, e já ouvira comentários sobre a perceptível semelhança entre eles.

— Então… — Segurou-se para não dizer “o que você quer?”. Estava aprendendo a suavizar seu tom de voz. A repreender alguns impulsos, especialmente em direção aos pais. — O que foi, pai?

Foi encarado longamente por ele. Era um encarar inócuo, mas pesaroso. O encarar de quem parece ter acabado de descobrir algo muito importante, que estava bem diante de seus olhos o tempo todo. De quem se pergunta como fora tão cego.

— Não sei como começar... O que você disse quando brigou comigo e com sua mãe no Dia de Ação de Graças me fez perceber que você pode ter uma visão diferente de como nós pensamos.

Gray esperou, somente. Os olhos passaram a focalizar apenas o sol e suas manchas poentes. Talvez o que estava por vir fosse somente outro sermão, apenas mais apaziguado. Sua vontade de se esquivar tornou a suscitar.

— Eu só gostaria de dizer… Que você pode contar o que quiser para mim, filho.

Ergueu as sobrancelhas. Volveu o olhar para seu interlocutor, cujos traços emergentes de vetustez pareciam mais pronunciados, assim de perto.

— Pode confiar em mim, na sua mãe. Saiba disso. — Adam umedeceu os lábios. — Talvez suas conclusões estejam erradas, Gray. Nós amamos você. Você não pode duvidar disso nenhum momento sequer. E isso não vai mudar, independente do que aconteça… Independente daquilo que você decida fazer. Só pedimos por sua compreensão. — Um curto silêncio intermitente. Uma pausa para pensar. — Sabe, algumas vezes, a vida nos condiciona a fazer coisas de que não gostaríamos... ou coisas pelas quais você se arrepende mais tarde. Mas essas ações não definem quem somos.

Gray ficou sem palavras. Não se surpreenderia se estivesse boquiaberto. Não teria imaginado que palavras daquela profundidade fossem ser emitidas da boca do seu pai. Especialmente para confortá-lo.

Seu pai não parecia querer respostas. Apenas mostrou um sorriso terno ao filho, segurou-o por alguns segundos pelos dois ombros, e virou-lhe as costas.

Desde então, as tentativas de aproximação do seu pai estavam ficando cada vez mais óbvias, como se agora fosse proprietário de um interesse renovado na vida do filho. Sua mãe, aparentemente satisfeita com a ideia, também passou a querer interagir mais com ele, ainda que de forma bem mais sutil.

Talvez, por estarem às vésperas de seu aniversário de 17 anos, os holofotes subitamente recaíram nele. Era um pouco assustador, para falar a verdade. Gray sabia que devia dar-lhes créditos por isso, mas ainda não podia evitar de escapar deles às vezes. Não estava acostumado com isso.

Mas, significava que as coisas estavam melhorando. De qualquer forma, sentia-se bem. E esperava continuar assim por um bom tempo. Aliás, tinha expectativas consideravelmente altas para os dias que estavam por vir… especialmente para o fim de semana. 

 

 

Depois da diversão de sábado, passou a madrugada para domingo trocando mensagens com Tyler, Lana e Cameron. Finalmente haviam decidido criar um chat em grupo, Alyssa inclusa, mas, como uma pessoa tão diurna quanto um pássaro, ela havia dormido cedo e não participou das facécias entre eles, tampouco das discussões e provocações. Como as de Lana, por exemplo, que não parava de citar o fato de que era a mais eficiente aspirante a cupido da história.

Lana: quer dizer, olha pra vocês agora. eu fiz um ótimo trabalho

Tyler: não ouse querer levar todo o crédito

Gray: você nem fez tanto assim

Lana: escuta aqui, vocês estão me ofendendo

Cameron: tô me sentindo excluído. dá pra parar?

 Lana: vou te conseguir uma namoradinha também (;

Alguns dias atrás, Tyler riria tanto quanto ele da situação, porque era como se estivesse escrito em relevo na testa de Cameron em neon de quem era pretendente, menos para a pessoa em questão. Agora, no entanto, o amigo estava com mais sorte — porque a frase propositalmente ambígua poderia levar a interpretações (e, com sorte, resultados) desejados por ele.

Depois de ficar com Tyler no chat privado, Gray foi dormir depois das três da manhã, sentindo que aquele fora um dos melhores dias do ano.

Domingo passou rápido. Gostaria de ter visto Tyler e os amigos mais uma vez, mas se conformou que não seria possível. Aproveitou o tempo livre sozinho assistindo episódios em uma sequência ininterrupta não tão saudável assim. Subsequentemente, lidou com o tempo de ônus extra por ter deixado os estudos para última hora, como sempre. Pelo menos, conseguiu se concentrar melhor dessa vez.

Quando precisou acordar cedo para as primeiras aulas da semana, estava mais disposto de sair da cama do que o considerado normal em manhãs de segunda. Em vez de bombardear seu despertador com impropérios como o de praxe, conseguiu levantar da cama apenas cinco minutos após o disparo do alarme — normalmente levava uma dúzia. Arrumou-se plugou seu mais estimado par de fones de ouvido e deixou com que a música abastasse ainda mais seu ânimo pro dia.

Ao entrar na sala de aula, imediatamente registrou o aceno de Lana e seu gesto para que se juntasse a eles. Estavam distribuídos na extremidade da sala, ela, Alyssa, Tyler, e uma outra menina. Não era tão comum ver pessoas novas procurando se integrar ao recém-formado grupo de amigos deles, mas Gray considerava qualquer um bem-vindo.

No entanto, agora percebia como se tornava mais apreensivo em relação ao nível de compreensão das pessoas. Receptividade não faltaria dele, a menos que alguém se recusasse a aceitar diferenças.

Caramba, como ele havia mudado, em tão pouco tempo. Varrendo com os olhos o perímetro da sala, identificou alguns colegas com quem não tinha mais tanto o costume de andar quanto quando começara a estudar no colégio. Alan Mills, por exemplo, ou Josh. Pessoas cuja essência não conhecia de fato. Que não sabia se poderia confiar ou não. Com quem se enturmara por necessidade de não se sentir solitário. Havia se enganado quanto à propria autenticidade esse tempo todo. Ainda havia tentado se encaixar onde não pertencia.

Não era como se tivesse passado a desgostar deles. Talvez simplesmente estivesse passando por uma metamorfose em que reconhecia a importância de poder ser ele mesmo. De ser capaz de ter essa abertura com outras pessoas.

E com aquelas… Não saberia se teria essa oportunidade qualquer dia sequer.

Seus olhos tornaram a recair na área que os lugares de Tyler, Lana e Alyssa ocupavam.

Tyler, que outrora estava praticamente debruçado sobre o tampo da mesa, traçando os elementos de sua criatividade em seu caderno de desenhos, por fim levantou o rosto e notou sua presença. Gray observou seu rosto se distender em um sorriso, seu fulgor o deslumbrando mais uma vez. O garoto imitou o gesto de Lana para que se achegasse, e finalmente o fez.

Agora, sentia que finalmente havia se encontrado.

E que não era o único a se sentir assim.

— Então, sobre seu aniversário. Como vai ser? — indagou Tyler, de frente a ele, inclinando-se sobre a mesa do refeitório que o grupo dividia, um sorriso interessado no rosto. Seu prato de comida jazia intocado, totalmente defletido de sua atenção. Gray teria perguntado se não iria comer, porque às vezes parecia que Tyler realmente se esquecia de fazê-lo, mas estava igualmente distraído. — Você mencionou que ainda estava planejando. Bem em cima da hora, por sinal.

— Caramba, Tyler. Pelo jeito que está olhando pra ele, se não te conhecesse, diria que está flertando — comentou Cameron, ao seu lado, com tom nefasto, de quem noticia acontecimentos que jamais deveriam ser factíveis.

Tyler se empertigou, as feições faciais se desfigurando em uma careta incrédula como reação a um disparate. Lana gargalhou e Gray também falhou em segurar a própria risada. Alyssa olhou compassivamente para a ele.

— Eu só fiz uma pergunta pra ele! Por que vocês sempre implicam comigo?

— Foi só um comentário. Você que fica ofendido facilmente demais. — Cameron encolheu os ombros, como quem se livra da culpa.

— Tyler, o desmemoriado, é também Tyler, o melindroso — Alyssa se juntou à brincadeira, ainda que sorrindo timidamente, com seu conhecimento lexical.

O mencionado a olhou como se ela fosse a personificação da traição.

— Eu não esperava isso de você, Aly.

Ela deu-lhe um sorriso constrangido e apologético. 

— Parecia apropriado para o momento falar isso.

 Lana sorriu como uma mãe orgulhosa. 

— Ela é demais.

Gray, enfim, ergueu as mãos em confissão.

— Sinceramente, não vejo nada de errado com flertes. Sinta-se à vontade para dirigi-los à minha pessoa.

— Por que você tá falando assim? — perguntou Tyler, revirando os olhos, mas incapaz de conter o sorriso. Por fim, ele retrucou, com certo atraso: — E o Cameron diz isso, mas se não fosse por eu ter contado para ele no sábado, ele nem notaria algo de diferente entre a gente.

— Isso não é verdade! — protestou ele.

— É sim — concordou Lana. — Até a Aly teria desconfiado e você não.

— Eu sempre achei que os dois fariam um bom casal — admitiu Alyssa. Segundo o que Lana relatara a Gray, quando Alyssa visualizara as mensagens do novo chat em grupo, havia ficado totalmente perdida e lhe questionado a respeito de seu significado. Aparentemente, todos haviam se esquecido que ela ainda não era conhecedora da “novidade”. E ela pareceu feliz com a informação, ao tê-la recebido de forma mais esclarecida.

Tyler deu um sorriso tímido. Provavelmente ainda estava se acostumando com a qualificação “casal”. Gray, por sua vez, não se incomodava com ela nem um pouco.

— Mas certo, meu aniversário… Ah, não sei se a Lana já te disse, mas você também tá convidada, viu? — disse Gray à Aly. Ela sorriu, alegre por ser incluída. — Eu estava em dúvida sobre quem mais convidar… Talvez chame um pouco mais de gente além dos meus amigos mais íntimos, não sei. Mas eu também queria fazer algo só para nós cinco, sabe? Então, pensei em vocês passarem a tarde e/ou noite de sexta no meu apartamento, já que meus pais não vão estar lá. E, na tarde de sábado, seria a verdadeira comemoração… — Ele deu um sorriso enigmático. — Mas essa parte é surpresa. Depois mando o endereço do lugar pra vocês. Eu sei que deve ser muito tempo para reservar, mas realmente espero que vocês estejam disponíveis. — Tentou aplicar a técnica de imitar olhos suplicantes de um filhote de cachorro, mas ela não funcionava muito bem nele.

— Parece divertido pra mim! — disse Lana, animada.

— Tô dentro. — Cameron meneou a cabeça em aprovação.

Tyler se contentou em sorrir sem restrições.

— Mas, hm, Gray… — começou Alyssa, com um quê de insegurança na voz. — Tem certeza que tudo bem eu estar lá? Quer dizer… Não sou tão íntima de vocês assim, sou?

— Claro que tudo bem. E você diz como se todos nós nos conhecêssemos há décadas, o que não é o caso — riu.

— Ah, droga. Preciso pensar no que comprar de presente — Tyler murmurou para si mesmo, mas Gray o ouviu.

— Não precisa — respondeu, com sinceridade. — Só de você estar lá, vou ficar feliz.

Tyler sacudiu a cabeça em insistência.

— Claro que precisa! Gosto de dar presentes.

— Tyler--

— Você sabe que não vai conseguir me fazer mudar de ideia.

Ele suspirou, seu sinal de rendição.

— Realmente.

O outro sorriu, triunfante, e sua tamanha felicidade com isso era o bastante para que valesse a pena. 

Gray tinha uma forte convicção de que aquele tinha grandes chances de ser sua melhor celebração de aniversário de todas até então.

 

 

Justamente por estar antecipando tanto o final de semana — tanto sexta-feira quanto sábado teriam um destaque especial em sua memória, tinha certeza —, parecia que a semana em si estivesse passando com a metade da velocidade atual, com os dias úteis de duração multiplicada.

Entretanto, ele ainda conseguiu se divertir com o decurso desses dias.

Na terça-feira, conseguiu dar continuidade ao projeto de estudos com Lana, sua dupla, na mesma cafeteria da primeira vez. Alcançaram níveis de produtividade bem mais elevados que os da última vez. Claro, no entanto, que tanto sua atenção quanto a de Lana não estivera completamente fixada ao conteúdo a ser estudado. Na verdade, perderam uma porção de tempo preciosa graças a Tyler e Cameron, a outra dupla endiabrada, que havia se unido em um estratagema para distrair os dois com um fluxo de mensagens ininterruptas.

Cameron: ah, a propósito, você devia ver como o tyler tá pirando com o fato de não saber o que te dar de presente de aniversário

Ele fica dizendo que acha que talvez não te conheça tão bem assim porque não sabe exatamente o que você gostaria de receber

Ele tenta se pagar de sensato, mas é mais dramático que eu

 Alguns minutos depois, Tyler contrapôs:

 Tyler: Seja lá o que Cameron tenha te dito, não acredite nele

 Gray: Como queira 

Mas, no dia seguinte, quando Tyler discretamente deu início a uma inquisição aprofundada sobre seus gostos e anseios materiais, como se pretendesse absorver todas suas palavras a respeito, Gray pôde claramente averiguar as informações recebidas de Cameron. 

Mesmo estando ciente do motivo subjacente, perguntou, inocentemente:

— Posso saber o porquê de você estar tão interessado no meu perfil de gostos assim? — Não pôde conter o sorriso de canto quando Tyler pareceu um pouco acuado com a pergunta. 

No entanto, ele se superou, como se estivesse se naturalizando às provocações e se colocando à altura.

— O que eu posso fazer se você é interessante, Gray? — disse, com uma inflexão mais afirmativa que interrogativa, encolhendo os ombros e dando um sorriso altamente presunçoso para os padrões de Tyler.

Gray havia rido, talvez um pouco perplexo com a réplica direta, mas retorquiu que estava se dirigindo a “uma pessoa ainda mais interessante”. E, como mera consequência de estarem um em companhia do outro, a conversa se estendeu até quando ambos retornaram a suas respectivas casas após a aula, através de mensagens.

As interações entre eles pareciam carregar cada vez mais uma genuinidade intrínseca; as palavras trocadas dimanavam com naturalidade, os toques vinham como reflexos do próprio corpo; os olhares criavam uma conexão que não se rompia quando eles se desviavam.

Tinha tempo que não sentia uma conexão tão profunda alguém, por mais que ainda se estivesse desenvolvendo. Parecia algo certo, um sinal de que o malogro de experiências passadas não significava uma sina reservada a ele.

E ele não tinha medo de aproveitar isso.

  

# # #

 

 — Estamos indo agora, Gray. — Sua mãe apanhou a bolsa da bancada, alçando-a no ombro. Usava um blazer e seu pai, que a acompanhava, um terno, ambos com aspecto profissional impecável. No entanto, Clarisse sempre destilava uma seriedade maior. — Voltaremos bem tarde, e esperamos não encontrar o lugar de cabeça pra baixo.

— Seus amigos vão dormir aqui? — perguntou o pai, despretensioso.

 Gray deu de ombros.

— Acho que não. Mas eles podem?

 Seus pais se entreolharam, e ambos assentiram calmamente, ao mesmo tempo.

— Divirtam-se — desejou a mãe, com um sorriso discreto, mas honesto, antes de sair do apartamento.

O pai lhe deu tapas amistosos entre as omoplatas.

— Feliz aniversário adiantado, filhão.

— Valeu, pai — respondeu, envergonhado com o vocativo. Acenou quando ele também partiu, fechando a porta do apartamento atrás dele.

Gray sentia como se o tênue fio que unia seus pais a ele, antes retesado até a iminência de arrebentar, estava finalmente se afrouxando. A tensão estava amainando, degelando.

Os desacordos não desapareceriam de uma noite para outra. Sua resistência contrária a eles, tampouco, ou seu ressentimento. Mesmo se eles fossem inconscientes, involuntários, ou produto de uma teimosia que levaria tempo para rescindir.

Tinham raízes profundas para serem simplesmente expurgadas de uma vez. Levaria tempo para que elas fossem aparadas de vez.

Mas... Gray tampouco podia se permitir permanecer estagnado, com sentimentos de natureza imutável.

Na noite passada, sua mãe havia esbarrado na porta de seu quarto enquanto passava pelo corredor, entreabrindo uma fresta. Espiando por entre a abertura, avistara Gray mergulhado nos livros, estudando mais vigorosamente, algo de raridade notória por parte dele. Ela havia deixado escapar um elogio sutil, pegando-o de surpresa por não ter notado sua presença. Ele apenas encolhera os ombros e sorrira.

Bom, ele estava tentando. E iria se esforçar para continuar assim.

Gray permaneceu a encarar a porta recém-fechada por um momento, até despertar do estupor causado pelo torvelinho de pensamentos. Então, arregalou os olhos, como se a lembrança houvesse de súbito o acometido: já era sexta-feira.

Procurou evitar se afoitar, mesmo quando viu o relógio de parede da cozinha indicar que já eram quatro horas e meia. Praguejando por não ter pensado em nada mais cedo, começou a vistoriar a área do apartamento. Para certificar-se de que não havia nada inconveniente ao redor.

Seu quarto estava no estado de desordem e caos usual. A desesperança quedou em seu peito até que ele desse de ombros, dispensando a ideia de limpá-lo. Ninguém supunha que ele fosse organizado, mesmo. Resolveu apenas arrumar a cama, estendendo sobre ela seus lençóis amarfanhados. Recolheu as peças de roupas disseminadas pelo chão, endereçando-as em um lugar aleatório de seu armário com um simples arremesso. Empilhou em desalinho os livros antes espalhados sobre a escrivaninha, de modo a ajeitá-la parcamente.

Retornou à cozinha e abriu a geladeira. Verificou se a quantidade de víveres ali mantidos seriam suficientes para abastecer a voracidade dos animais famintos que eram seus amigos. Com isso, ele queria dizer Cameron). Provavelmente sim. Além de sanduíches e outros aperitivos que ela havia feito, sua mãe havia encomendado um bolo de sorvete (seu tipo preferido) e uma dúzia de cupcakes sem que ele precisasse pedir. Nunca havia agradecido por algo tantas vezes seguidas a alguém.

Decidiu manter os cachorros em seu quarto, por enquanto, para o caso de Lana ou Alyssa serem alérgicas ou não fossem muito afeitas a essas criaturas adoráveis (esperava que não fosse o caso). Mas planejava libertá-los eventualmente. Odiava ter de deixá-los trancafiados e separados dele por muito tempo.

Parou no momento que finalmente percebeu que não havia razão para afobação, até porque isso não era muito de seu feitio. Estaria recebendo seus amigos íntimos, afinal, não integrantes da alta sociedade que exigiam alto requinte e opulência ou coisa do tipo. Na verdade, entrar em pânico seria típico de Tyler. Viu-se mentalizando como Tyler estaria em seu lugar e não pôde reprimir um sorriso. Ele provavelmente se desesperaria para deixar tudo em ordem, perfeccionista e ansioso como era. Verificaria os mesmos ambientes enésimas vezes, e provavelmente não iria se aquietar até a hora que os convidados chegassem.

Caramba, ele estava pensando demais em Tyler.

Por fim, Gray tomou um banho. Sua escolha de indumentária foi fácil por ter sido premeditada em um momento prévio. Consistia em uma camisa chambray azul escura, calça jeans cinza e tênis vans preto e branco.

 Uma vez pronto, ainda restavam 30 minutos até o horário marcado com os amigos, seis horas da noite. Então, se espraiou sobre o sofá em formato de L da sala de estar e começou a ver um episódio de um sitcom randômico na Netflix. Estava quase caindo no sono quando, apenas 20 minutos depois, sua campainha badalou. Ele se levantou de chofre com o barulho.

 Já tinha em mente quem deveria ser. Portanto, não ficou surpreso quando abriu a porta e viu Cameron escorado no batente dela. Estava inclinado quase em iminência de cair e com uma mão escondida atrás das costas, mas ainda mantinha a pose.

 — E aí — disse o recém-chegado, acenando com a cabeça, galhofeiro.

Gray revirou os olhos, mas riu.

— Você está 10 minutos adiantado.

— Estou te presenteando com 10 minutos a mais da minha companhia e você ainda reclama! Que aniversariante ingrato. — Antes que pudesse retrucar, Cameron empurrou-lhe um embrulho prateado com patinhas de cachorro. Infantil, mas consentâneo. Exibia um sorriso largo. — Mas toma. Feliz aniversário, cara. Adiantado.

Então, ele o puxou para um abraço, tapeando suas costas de um modo amistoso e másculo. Gray riu e retribuiu o gesto.

— Valeu. — Sorrindo, desvencilhou-se do abraço e abriu espaço para Cameron atravessar a soleira da porta. — Vem, entra.

Gray deixou o presente sobre a bancada limpa da cozinha, apesar da vontade de abri-lo logo.

— Vai abrir os presentes depois? — Cameron perguntou e ele assentiu. — Então, cadê os doggos?

 — No meu quarto. Quer ver eles? Superou o medo de cachorro?

 — Eu nunca tive medo de cachorro. Mas é que sua labradora é gigante e pula em mim e quase me derruba e…

 — Desculpa esfarrapada. Mikey e May fizeram o Tyler rolar uma ladeira e nem por isso ele tem medo deles. Na verdade, ele os ama — sorriu diante a imagem mental de Tyler arrulhando para seus cachorros, acariciando-os e brincando com eles —, e o sentimento é recíproco.

  Se Cameron estivesse bebendo alguma coisa, teria cuspido tudo em um jato só. As sobrancelhas erguidas e os lábios distendidos como se estivesse sofreando o impulso de gargalhar, ele indagou:

— Espera, o quê? Tyler rolou uma ladeira? Quando foi isso?!

 Antes que pudesse responder, a campainha tocou. Deixou um Cameron incrédulo de lado para poder atender.

Abriu a porta e seu sorriso se ampliou quando viu Tyler. Ele distribuía seu peso ora em um pé ora em outro nervosamente, o olhar baixo, bem em frente a ela. Trajava uma jaqueta verde musgo entreaberta, pela qual se podia ver uma blusa preta com dizeres brancos em hiragana, uma calça jeans escura e tênis cinzentos. Era um vestuário simples, mas ele estava incrível.

Ele ergueu o rosto quando percebeu a presença de Gray. Apesar de um leve rubor matizar suas bochechas, espelhou seu sorriso.

— Oi — Tyler disse, mordendo o lábio inconscientemente — Tentei ser mais pontual hoje. Espero ter sido o primeiro a chegar. — Antes que Gray pudesse cumprimentá-lo da forma que um anfitrião devia, notou o que o recém-chegado tinha em mãos. Sentiu que os músculos de suas bochechas iriam arrebentar devido à extensão de seu sorriso irreprimível.

Ele segurava um pequeno e delicado vaso de vidro, em que um par de flores lisianthus brancas se entrelaçavam com seus ramos e folhas. Um laço prateado as unia. A vermelhidão de seu rosto se acentuou quando o entregou a Gray.

— Feliz aniversário — Tyler disse, baixinho, um sorriso discreto no rosto.

 — Thay… — ele murmurou sob sua respiração, sem palavras. Estudou o vaso de flores. Seus dedos delinearam as curvas das pétalas das flores com cautela, como se pudessem esfarelar. Por fim, seus olhos fixaram com os de Tyler. — Obrigado.

Queria puxá-lo e beijá-lo, mas tinha medo de que o movimento brusco pudesse danificar o vaso em suas mãos. Apenas continuaram a se encarar.

Gray não tinha palavras para expressar o quanto aquele gesto significava pra ele, principalmente por ser algo que não esperaria de Tyler.

— Hey, que demora! Só deixa Thay entrar logo, Gray! — Cameron bradou da sala. — Vocês enrolam demais.

O rosto de Tyler se afogueou.

— Oh. Então alguém chegou antes de mim. Não estamos sozinhos.

Gray percebeu que ele estava envergonhado por causa das flores, e riu.

— Não tem problema. Vem, entra. — Sua mão procurou a dele e a apertou gentilmente. — E obrigado, de novo. Mesmo. Eu adorei.

Tyler sorriu. Sua cor facial voltava ao normal conforme sua vergonha arrefecia.

— Oh, e esse é seu presente. — Ele se lembrou de súbito. Sua mão se estendeu para apanhar um pacote envolvido em papel comemorativo que jazia encostado ao rodapé da parede, ao lado da porta. Gray definitivamente não teria o notado por si próprio. Arregalou os olhos.

— Não precisa me dar isso tudo.

O visitante o relanceou, tímido.

— A flor foi só um adicional. Mas com um significado maior, acho.

Gray queria muito não estar com as duas mãos ocupadas no momento.

— Vocês planejam ficar parados aí a noite toda? — resmungou Cameron, alteando a voz.

Os dois reviraram os olhos.

Assim que ambos entraram, Gray fechou a porta atrás deles. Colocou o vaso de flores sobre o balcão de granito, do lado do presente de Cameron. Também apoiou a embalagem de tamanho razoável de Tyler — que estava despertando sua curiosidade mais do que deveria ser saudável — contra ele, no chão.

— Flores. Que amor — disse Cameron, mas não era um comentário de escárnio. Tyler deu de ombros, simulando displicência. Porém, seu rosto tornou a enrubescer.

Gray sorriu e, enfim com as mãos livres, lançou os braços ao redor da cintura de Tyler. Enlaçou-o em um abraço apertado, quase o erguendo do chão. Ele arquejou uma golfada de ar em surpresa, mas logo circundou seu pescoço com seus braços, rindo.

— Obrigado de novo — sussurrou. Seu nariz roçou no pescoço de Tyler. Contentou-se ao notar a pele arrepiada pelo toque. Acabara de descobrir uma área sensível.

O garoto apenas emitiu um zumbido de satisfação. Embrenhou uma das mãos nos fios de cabelo rente à sua nuca, numa carícia gentil.

O momento foi interrompido por um pigarreio de Cameron.

— Não acredito que estou sendo ignorado pra vocês ficarem nessa melosidade toda. É melhor eu não ter sido convidado só pra segurar vela. Tyler, você nem me cumprimentou.

Os dois se separam do abraço. Tyler de modo envergonhado, cofiando atrás do pescoço e desviando o olhar. E Gray, vasculhando os arredores à procura de algo para arremessar na cara de Cameron.

— Oi, Cam. — O recém-chegado acenou, forçando um sorriso.

— Agora você diz oi, né — resfolegou ele, cruzando os braços. 

Felizmente, foram agraciados com o tocar repetido da campainha. Cameron não teve chances de prosseguir com seu circunlóquio dramático.

Pela terceira vez consecutiva, Gray abriu a porta. Dessa vez, defrontou-se com uma Lana entusiasmada e com Alyssa escondida atrás da sombra da amiga. Ambas acenaram e o cumprimentaram, embora cada qual à sua maneira. Sorriu e as recepcionou com boas-vindas e com “obrigados” para as felicitações de aniversário. Sem mais delongas, entraram.

As duas depositaram os respectivos presentes na mesma bancada onde estavam os de Tyler e Cameron. Passadas as formalidades de saudações entre os que já estavam ali e as duas, Lana deu um abraço demorado em Cameron.

Alyssa, por sua vez, parecia sentir falta do livro que dessa única vez não trazia com ela. Teria de encontrar alguma forma de deixá-la mais confortável entre eles. É o que um bom anfitrião faria, certo?

 — Hey, agora que todos estão aqui, Gray pode terminar de contar a história de como Tyler rolou uma ladeira abaixo — sugeriu Cameron. Seu olhar malicioso recaiu em Tyler.

 Este, por sua vez, cerrou os punhos e perguntou a Gray, entredentes:

 — Você tinha mesmo que tocar nesse assunto com Cameron? Justo ele?

 Gray empalideceu.

— Foi involuntário. Eu estava falando sobre como os cachorros gostam de você e acabei comentando--

— Oh, eu quero conhecer seus cachorros. Posso? — jubilou-se Alyssa. Depois, percebeu a intromissão e murmurou um pedido de desculpa.

 — Também quero, cachorros são fofos. Mas depois preciso ouvir essa história, entendeu, Gray? — intimou Lana.

Ele arriscou um olhar à Tyler, que fulminava-o com o olhar.

Engoliu em seco. Pelo menos, seus cachorros talvez oferecessem uma distração diversionária o bastante para fazê-los esquecer dessa história.

— Claro. Vou soltá-los então, pode? Nunca gosto de deixá-los trancados. — Como se pontuasse sua afirmação, Baloo choramingou alto o suficiente de dentro do seu quarto. Os quatro convidados vocalizaram um “own” clemente em uníssono ao ouvi-lo. Gray sorriu. — Ok, me esperem aqui.

Atravessou o corredor para o quarto. Mal rodara a maçaneta, os três cães já focinhavam a fresta semi-aberta, ansioso pra sair. Rindo, abriu a porta de uma vez. May, Mikey e Baloo se detiveram nele por um momento, empinando sobre as patas traseiras e apoiando-se nele à espera de afagos em seus pelos lustrosos. Um segundo depois, percorriam o caminho até a sala com ânimo. O dono os seguiu.

— Bom saber que meus filhotes aprovam meus amigos — gracejou, recostado no umbral da passagem pra sala. Um sorriso de orelha a orelha emergiu em seu semblante enquanto assistia os cães regozijarem-se com a presença de novas pessoas. Não paravam de rabear, correr em círculos e emitir latidos exultantes. Quando Lana se agachou para acariciar Baloo melhor, May se precipitou contra seu colo, fazendo-a perder o equilíbrio. Alyssa a ajudou, encantada. Tyler e Cameron haviam se sentado no sofá principal, vergados para mimar Mikey. Ele estava sentado comportadamente entre as pernas de ambos, arfando enquanto as mãos deles passeavam por sua pelagem.

— Posso pegar no colo? — perguntou Alyssa, apontando para Baloo. 

— Claro.

Decorreram-se alguns minutos até que a efusão se amainou. Os cachorros se satisfizeram com a atenção já dada e se acomodaram em diferentes partes do cômodo. Gray se uniu aos amigos no sofá, anichando-se ao lado de Tyler com um braço ao redor de sua cintura. Logo, Lana e Alyssa preencheram o espaço disponível no sofá, grande o suficiente para os cinco.

— Cara — comentou Cameron de inopino, uma ruptura ao plácido silêncio que imperava —, tô com fome.

— Vocês também já querem comer? — quis saber Gray. Os outros negaram, ao passo em que Cameron já se erguia do sofá e se encaminhava até a geladeira na cozinha adjacente à sala de estar.

— Você é muito folgado, cara — repreendeu Tyler. O amigo já estava vasculhando o conteúdo no interior da geladeira. — Você vai mesmo permitir isso? — perguntou a Gray.

Ele deu de ombros.

— Tô acostumado com esse porco.

— Ei! — exclamou Cameron, ofendido, brandindo a lata de refrigerante que encontrara nas prateleiras refrigeradas. Como o sofá estava de costas pra ele, as quatro pessoas que o ocupavam tiveram de girar seus torsos para fitá-lo. — Eu frequento esse lugar há anos. Era de se esperar que eu já me sentisse à vontade o suficiente pra isso, certo?

Gray revirou os olhos e o deixou fazer o que quisesse.

— Só não come tudo — advertiu.

Tyler retornara à posição normal de braços cruzados, e Gray pôde ouvir seu “hmph” emburrado. Deu-lhe uma acotovelada de leve, sorrindo de canto.

— Que foi, tá com ciúmes?

Recebeu outro resmungo em resposta.

 Gray riu, cativado, e o abraçou de lado.

— Não fica. Não é porque eu o conheço há mais tempo que você significa menos pra mim.

Tyler sorriu de volta, anuindo. Ele se recostou em seu peito e fechou os olhos. Gray, por um momento, desejou que estivessem só os dois ali.— Então, o que vocês estão a fim de fazer? — disse, meio que se forçando a se localizar naquele momento. Uma hora, poderia estar a sós com Tyler, mas agora estava cercado por amigos. — Jogar alguma coisa, maratonar série ou ver filmes na netflix?

— Por mim tanto faz — respondeu Lana, de pernas cruzadas sobre o sofá, os pés descalços. Alyssa assentiu em concordância à amiga.

— Que clichê — troçou Tyler.

 Cameron retornou ao sofá, abocanhando um dos sanduíches especiais que a mãe de Gray preparara. Provavelmente, também havia se embebedado da lata de refrigerante inteira que havia apanhado antes.

— Deixe migalhas disso cair no sofá ou no tapete, e meus pais vão forçar você a aspirá-los por quatro meses — Gray ameaçou. Cam imediatamente levantou-se do assento almofadado e afastou-se da área delimitada pelo tapete felpudo, a mão abaixo do queixo para amparar qualquer fragmento alimentício que ousasse cair de sua boca enquanto mastigava. Por conviver com ele e sua família durante todos esses anos, não se atrevia a duvidar da autoridade dos pais de Gray.

Cam abriu a boca para responder com uma voz engrolada, mas fechou-a logo em seguida. Deve ter se lembrado que não se deve falar com a boca cheia.

Após a deglutição, ele respondeu:

— Cara, eu fico no sofá ou na cama jogando e vendo série o dia todo. É o que faço de melhor. Vamos fazer alguma coisa diferente. — Ele jogou as mãos para o alto, como se exortasse uma torcida desalentada.

Tyler secundou o posicionamento.

Gray ponderou acerca das opções.

— Bem, nós podemos- — sua frase foi interpolada por um arroubo de escuridão total.

Olhou ao redor, assim como sabia que seus amigos faziam. O breu da sala só era aclarado pelo tênue brilho lunar e pelas luzes das cidades que incidiam através da porta de vidro semi-aberta da varanda. Já podia imaginar o burburinho da vizinhança diante o inesperado, embora não incomum, evento.

— Sério, um blecaute de aniversário? — reclamou Gray, com um gemido lamuriante.

Sentiu a mão nodosa de Cameron lhe dando tapinhas de consolação nas costas.

— Bom, agora não temos escolha além de fazer algo diferente — murmurou Alyssa.

— Rodinha de conversa? — palpitou Lana.

— Isso não é lá muito diferente.

— Realmente não é, mas dá pro gasto — decretou Gray. — Vou buscar as velas.

Dito e feito. Após iluminar o caminho até os armários da cozinha com o facho da lanterna do celular, esticou-se para alcançar o pacote de velas na última prateleira. Sugeriu para que fossem para a varanda, para usufruir de mais luminosidade e do frescor da noite. E, claro, para não correr riscos de atear fogo ao tapete de seus pais e deixar o apartamento reduzido a cinzas.

 Os cinco se agruparam em um círculo deformado no espaço limitado da varanda. Cinco velas coladas por parafina derretida a castiçais improvisados foram deixadas sobre a mesinha de madeira e nos braços lisos dos assentos . Tyler e Gray se acomodaram no canapé almofadado encostado na parede. Cameron e Lana se sentaram contra a grade da sacada. Alyssa se apossou de uma poltrona macia defronte ao anfitrião.

 Os semblantes eram semi-alumiados pelo bruxuleante fulgor das velas e o lume citadino. O silêncio perdurava, mas o ambiente estava tão sereno que ele mal se incomodava. Só estava feliz por ter aquelas pessoas ali.

 — Então — principiou Cameron, chamando a atenção com um bater de palmas —, devemos iniciar o interrogatório?

Lana arregalou os olhos e começou a balançar a cabeça em negativa de modo ávido, tentando desencorajá-lo. Tyler e Gray, aconchegados um ao outro, se entreolharam, apreensivos.

Ele apontou ao casal.

— Quem pediu em namoro? — questionou, nem um pouco naturalmente.

Tyler jogou a cabeça pra trás, decepcionado.

— Ah, não — lamentou-se. 

Gray riu alto.

— Que pergunta mais óbvia.

— Ei! Eu também poderia ter tomado a iniciativa — protestou Tyler. Gray lançou-lhe um olhar desacreditado que o fez suspirar, resignado. — Ok, é realmente óbvio.

— Então foi você? — Cam se dirigiu ao aniversariante, que aquiesceu com orgulho. Ele o congratulou com um high-five, ao que Tyler revirou os olhos. — E como ele reagiu? Como aceitou?

 — Uh… — Gray sentiu Tyler se remexer desconfortável ao seu lado. Talvez estivesse se recordando de todos os preâmbulos até chegarem ao ponto em que estavam. E, francamente, não sabia se o caminho adiante estava livre deles. Os dois prosseguiriam ao próprio ritmo, dançando conforme a música deles, mesmo que com alguns passos em falso. Por fim, respondeu: — É complicado.

Lana amordaçou Cameron com a palma da mão, a fim de impedi-lo de insistir por uma resposta mais bem elaborada. Infelizmente, ele se desvencilhou com facilidade.

— Ok, ok, não vou invadir mais a privacidade do casal. — Tyler suspirou de alívio. — Mas me diz — ele emendou, para a decepção geral, num tom sugestivo e jocoso —, quem disse o primeiro “eu te amo”?

Silêncio. Pela expressão subsequente do interrogador, deve ter notado que excedera os limites. E que acabara de contradizer sua afirmação.

Lana espalmou a mão contra o próprio rosto, como quem demonstra desgosto e incredulidade.

— Não tá meio cedo pra isso não? — arriscou Tyler, a voz acidentalmente soando estrilada. Havia se afastado do contato físico difundido entre ele e Gray, talvez em um ato inconsciente. Mesmo assim, este ainda se sentiu meio desconcertado por seu recuo. Resolveu não se aprofundar no sentimento.

— Acho que ele tem razão… — disse Alyssa.

— É… — Lana murmurou, olhando ao redor como se algo no cenário pudesse lhe sugerir uma solução para aquele embaraço. — Essas coisas levam seu próprio tempo. E isso tudo, quero dizer, entre vocês, é tão novo ainda… Cameron, seu cabeção. — Deu-lhe uma cotovelada no ombro para enfatizar, o que elicitou uma reclamação dolorida de Cameron.

— Eu ‘tava brincando, mano! Não era pra vocês levarem a sério! — defendeu-se, bracejando com um furor postiço. Lana lhe respondeu com um muxoxo e outra agressão física: um tapa dessa vez. Ele abriu a boca, indignado, mas acabou por se conformar com aquela penitência.

— Qual é, gente, vocês estão reagindo como se ele tivesse feito uma pergunta obscena — Gray fez o possível para deflorar uma risada. Estava se esforçando para não se manter omisso naquele momento. Não era muito do feitio dele, e queria agir o mais naturalmente possível em meio àquele dissabor. Cameron havia feito um gracejo idiota, mas inocente. Nenhuma novidade. — É o jeito dele ser sem noção assim, não é culpa dele. Só estava tentando ser engraçado. E falhando.

Isso provocou uma ruptura na atmosfera suspensa do momento. Tyler, Lana e Alyssa se permitiram soltar risadas, entremeadas por comentários como “de fato” e “ok, a gente releva”.

— Obrigado?! — exclamou Cameron com uma inflexão curiosa. Como se estivesse ao mesmo tempo grato pela salvaguarda do amigo e, diante de uma mais elaborada interpretação, injuriado por sua fala.

Uma rajada de vento começou a esvoaçar o cabelo das garotas, intensificado e enregelante de súbito. Gray se encolheu com o contato gélido no rosto.

O soprar apagou as velas em uma só arremetida. A luminosidade alaranjada, que já era insuficiente para delimitar bem os traços dos amigos, volatizou-se de imediato. Apenas o suave brilho azulado do céu permaneceu, delimitando as silhuetas deles.

— Uh. E agora? — perguntou Alyssa.

O quinteto todo desembolsou os celulares e acionou as lanternas ao mesmo tempo.

— Desculpa. Eu esqueci dessa possibilidade e não trouxe a caixa de fósforos — admitiu o anfitrião.

— Que clima de filme de terror — mencionou Tyler, meditativo. — Podíamos contar histórias “assombradas”.

— Ah, não, por favor não, nada de terror no meu aniversário. Eu já fui obrigado a ver dois filmes de terror com você.

— Vai ter que se acostumar com isso.

Gray estremeceu.

Tyler riu. Segurou-lhe a mão e, para sua surpresa, levou-a até os lábios, depositando um beijo breve em seu dorso.

— Não precisa ficar com medo — satirizou em seguida, a despeito do gesto carinhoso.

— Eu não estou com medo! Não tenho medo de escuro — protestou.

— Não falei nada sobre escuro. Acho que você acabou de se denunciar.

Gray riu. Não conseguia ficar frustrado de verdade com Tyler.

— Então o quê, você vai me proteger, Thay?

Retribuiu o riso.

— Ah, claro. Porque eu realmente tenho uma aparência muito forte e protetora.

— Bom, pelo menos você não parece ser medroso.

Tyler encolheu os ombros e sorriu. Gray queria que o ambiente estivesse mais iluminado para ver seu rosto sorridente melhor.

— Acho que você tem razão.

Não resistiu. Estava ansiando por aquilo desde que o vira e, apesar de mal ter passado uma hora, não era justo ficar reprimindo seus desejos no próprio aniversário, certo? Auto-indulgência nem sempre é algo ruim.

Abaixou o facho da lanterna ao deixar o celular de tela para cima em seu colo e fez o mesmo com a lanterna de Tyler, a fim que não ficassem tão visíveis. Então, tocou-lhe as bochechas com ambas as mãos e impeliu o próprio rosto delicadamente em direção ao dele.

Tyler se sobressaltou com seu repentino aproximar, as mãos cobrindo as dele sobre seu rosto. Com o roçar de lábios, no entanto, seu corpo relaxou, e suas mãos se embrenharam nos cabelos de Gray. Pôde senti-lo sorrir durante o beijo, o qual aprofundaram em pouco tempo.

Infelizmente, a duração também foi de pouco tempo. Mal haviam resvalado as línguas uma na outra, Tyler sustou o contato ao se distanciar. Gray abriu os olhos a tempo de vê-lo virar-se para encarar os amigos, cônscio novamente dos arredores. Seu rubor teria sido visível se não estivessem tão à meia-luz.

Foi apenas assim que se deu conta que havia criado uma interação paralela com Tyler — preferia julgar como uma involuntariedade, mas não era bem essa a verdade. Talvez sua habilidade de repartir a atenção não fosse tão boa assim.

Cameron pigarreou.

— Tá escuro, mas a gente ainda consegue ver vocês, só para sua informação. Eu aconselharia ir um lugar mais privado antes de começar a dar uns amassos — disse.

— Tirou as palavras da minha boca — Lana reforçou, às gargalhadas.

— Será que tem como a gente voltar pra dentro? Tô com um pouco de frio — ciciou Alyssa, abraçando os ombros, alheia ao resto. O efeito cômico dessa mudança de assunto fez com que os quatro rissem, e ela abriu um sorrisinho amarelo ao notar. 

Eles concordaram e se levantaram dos respectivos lugares. Gray pediu para que o ajudassem a levar as velas para dentro.

Bem no momento em que abriam a porta corrediça e atravessavam o limiar para a sala de estar, houve o estalido elétrico característico de retorno de energia. As lâmpadas cintilaram fracamente a princípio para enfim se acenderem e irradiarem sua luz artificial pelo ambiente.

Os cinco comemoraram, apesar da dificuldade de enxergar na ofuscante claridade em contraste ao escuro.

Os amigos indagaram o que fariam agora. Gray refletiu.

— Que tal o telhado?

 

 

Por se tratar de uma área de lazer comunitária de um prédio com um razoável número de habitantes, era de se esperar que estivesse ocupada ou reservada para um sexta à noite. Entretanto, Gray percebeu a dimensão de sua sorte ao guiar os amigos até lá — após subirem uma leva penosa de escadas, porque Cameron não gostava de elevadores — e se deparar com seu estado desértico.

Ou seus pais o conheciam bem o suficiente a ponto de antever sua volição de levar os amigos lá e terem feito a reserva em seu nome, sem seu conhecimento. Alguns dias atrás, teria negado essa possibilidade. Agora, no entanto, não refutaria se porventura descobrisse que era esse o caso.

Cameron, como um morador habituado àquele espaço, se adiantou e acionou o interruptor. Postes de luz vintage se acenderam, distribuídos em um padrão quadricular. O lugar era amplo e agradável, dotado de vários jogos de mesa rústicos e de um jardim com arbustos podados e flores bem-cuidadas circundando a área junto à murada.

Sentaram-se sob um caramanchão recoberto de trepadeiras, que atapetavam seu topo e se entrelaçavam por suas colunas, e de plantas epífitas como bromélias e orquídeas. Ou, então, eram meras imitações artificiais. Lá, havia uma poltrona de dois lugares e algumas cadeiras de vime, todas guarnecidas por almofadas floridas macias, nas quais se acomodaram. Cameron fez menção de se sentar ao lado de Gray porque a poltrona era mais confortável, mas ele o enxotou para que o assento se disponibilizasse para Tyler. Recebeu um dedo médio de um e um sorriso agradecido de outro em resposta.

 Assim que todos se albergaram em seus respectivos lugares, Alyssa suspirou. Pela primeira vez da noite — ou de todas as situações em que estivera presente —, foi ela quem iniciou a conversa após aquele ínterim.

 — Ah, eu esqueci que seria vela de dois casais essa noite — confessou, com a vergonha de quem não tem costume de fazer comentários fortuitos. Seu olhar viajou de Tyler e Gray, cada um envolto pelo braço do outro, para Lana e Cameron que, a despeito de estarem em cadeiras separadas, não pareciam querer quebrar o contato físico: a mão dele estava acariciando os cabelos dela.

 — Se você achar um namoradinho, não vai mais ter que passar por isso — brincou Lana.

 — Ou namoradinha — disseram Tyler e Gray em uníssono. Eles se entreolharam, coniventes.

 Alyssa deu um sorriso sem graça e curvou o rosto pra baixo, de forma que seus cabelos retilíneos acortinassem seu rosto. Ela começou a alisar a ponta de uma das mechas loiras, como se fosse um dever de suma importância e uma ótima distração.

 — Aly? — chamou a amiga diante de sua pouca desenvoltura, incentivando-a a falar.

 — Sabe, eu não me importo muito com relacionamentos românticos ou… algo mais carnal. Quer dizer, se eu gostar de alguém de verdade, a esse ponto, tudo bem… Senão, tudo bem também. — Suspirou, ainda sem erguer o olhar. — Desculpa, devo ser estranha demais pra essas coisas.

 — Não é estranho — defendeu Tyler.

 — É algo totalmente pessoal — falou Lana. — Você não precisa estar com alguém pra ser feliz. É escolha sua.

 — Obrigada… Não é exatamente uma escolha, acho que mudaria isso em mim se pudesse. Eu consigo enxergar o amor entre pessoas e consigo senti-lo, mas não desse jeito, sabe? É só como eu sou.

 — Então, você nunca se apaixonou ou coisa assim? — perguntou Cameron por curiosidade. Consequentemente, levou um tapa no ombro e um sibilo de Lana por sua indelicadeza. — Desculpe — murmurou.

 Alyssa abriu a boca para responder e a fechou logo após. Com o rosto ainda na penumbra, assentiu, confirmando a interrogação.

 O ambiente pareceu se tornar críptico. Gray estava maquinando alguma forma de amainá-lo quando Tyler foi mais rápido e realizou esse favor a ele.

 — Você é sortuda, então.

Todos olharam pra ele, tanto por desentendimento quanto por surpresa. No centro das atenções, ele emitiu um barulho como se tivesse algo preso na garganta.

— Quero dizer, não recomendo se apaixonar pra ninguém. Te deixa confuso e cria uma guerra fria entre sua mente e seu coração. Ou algo do tipo.

Houve risadas.

— Qual seria o lado capitalista e qual seria o lado socialista? — questionou Gray.

— Quê?

— O coração e a mente. Qual seria o quê. — Tyler o olhou como se estivesse com um frango cru entalado na cabeça. Esclareceu: — Você falou de guerra fria!

— Nossa. Que droga — indignou-se Tyler, chegando até a se desvencilhar do contato com Gray. Mas era visível que estava segurando a risada. Por sua vez, Alyssa parecia estar de divertindo, dissipada a tensão inicial.

— Bom. Aposto que Tyler inteiro quer implantar uma revolução — admitiu Lana.

— Por quê?

— Você é diferentão. 

Tyler não discutiu. Deu de ombros, como se a explicação o satisfizesse. Gray riu.

— Então — Cameron atalhou a conversa; suas mãos torciam uma a outra como se quisesse dar-se uma aparência mirabolante —, quando vamos abrir os presentes?

Honestamente, Gray sempre preferira abrir os presentes quando estava a sós com seu amontoado. Assim, não precisava se dar ao trabalho de dissimular ou comedir suas reações autênticas diante de cada um. Claro que o que importava era a intenção e, no fundo, gostava de cada presente recebido, mas pode ser complicado esconder o esgar de desilusão ou aturdimento na primeira reação.

No entanto, por influência de Cameron, os demais o convenceram de que seria mais divertido que ele abrisse cada um deles em sua presença. E, para não se opor à vontade da maioria, ele cedeu. Portanto, haviam levado os respectivos pacotes para o telhado para que pudessem ofertá-los ao aniversariante lá.

Só temia que, por exemplo, tivesse que lidar com qualquer tipo de comparação — como o fato de a embalagem de Tyler ser a maior ali — ou, mais provável devido à existência de Cameron, com algo constrangedor.

Gray encolheu os ombros, imparcial, mas os amigos pareceram gostar da ideia de fazê-lo no momento.

— Pode ser agora, então — anuiu. — De quem vai ser o primeiro?

— O meu, seu melhor amigo, obviamente — Cameron se impôs, erguendo a embalagem do solo entre seus pés e entregando-a a ele.

Gray a tomou em mãos e não hesitou em rasgar o embrulho para abri-lo. Dentro do pacote principal, havia mais duas caixas lacradas, mas sem invólucro festivo. Resolveu abrir a menor primeiro.

Dentro, havia uma caneca branca envolvida por plástico. Era estampada por um desenho simplista e cartunizado de um gatinho, cujas patas estavam levantadas e mostravam os dedos médios, com os dizeres em negrito “I DO WHAT I WANT.” Gray não conteve a risada.

— Não achei uma versão com um cachorrinho na mesma pose, senão teria optado por ela pra você. Combina mais. Mas espero que tenha gostado — disse Cameron, sorrindo de orelha a orelha. — Agora abre o outro.

— Eu adorei, cara, valeu mesmo — admitiu Gray, enquanto começava a desembalar o outro conforme solicitado.

Era uma mão semi-aberta como se estivesse segurando alguma coisa, exceto que, no lugar do pulso, havia um cotoco que desembocava em um pregador parecido com uma ventosa. A mão, pintada manualmente, tinha um aspecto dilacerado, putrefato e macilento, a pele parecida com um pergaminho esverdeado, carcomido e coberto por filamentos imitando veias. Claramente representava um zumbi.

— Lembra que você queria um lugar para deixar seu violão? Essa mão serve para segurar. Quem sabe possa te motivar a voltar a tocar, também.

Gray sorriu, sentindo um misto de surpresa, divertimento e comoção pela criatividade. Trocou um abraço apertado com o amigo, pontuado por agradecimentos.

— Próximo? — estimulou.

— Você soa como alguém atendendo uma fila de clientes — comentou Tyler, fazendo-o rir.

Lana se voluntariou, levantando um braço com ânimo. A embalagem que trouxera havia permanecido em seu colo desde que se dispuseram ali. Seus dedos estavam tamborilando sobre ela esse tempo todo, como se a amiga mal pudesse conter a ansiedade de entregá-la logo.

Ela se adiantou e o entregou a Gray. Quando ele começou a desfazer o envoltório de papel, um sorriso risonho emergiu no rosto dela.

Gray semicerrou os olhos em suspeita. Talvez ela fosse a responsável pelo presente constrangedor da vez.

Notando seu olhar precautório, ela disse:

— Relaxa. É que, quando vi na internet, tive certeza que devia comprar pra você. É uma coisa pequena, mas estou torcendo para que ache tão divertido quanto eu.

Intrigado com o discurso, ele terminou de abrir o presente. Que, por sinal, o deixou ainda mais intrigado.

Eram dois itens. Um deles seria um mero livro de capa dura de pequeno tamanho, senão fosse por uma ilustração caricata de Shakespeare com os dizeres, em inglês, “GERADOR DE INSULTOS SHAKESPEARE”.

— “Para ofender com classe”?! — Gray recitou o subtítulo, a entonação exclamativa devido à empolgação com a novidade. Efusivo, começou a folhear o livro. As páginas apresentavam várias combinações de injúrias eruditas e provavelmente em desuso, acompanhadas de definições prolixas pros seus respectivos significados e constituindo frases em inglês arcaico.

Voltou sua atenção ao outro item. Também era encapado com uma imagem similar de Shakespeare, exceto que seu título informava ser um pacote de bandagens com mais insultos shakesperianos ou algo do tipo. Para cessar a confusão, abriu-o e retirou uma das ataduras enroladas e leu em voz alta o que se dizia nela:

— “Vosso hálito tresanda a queijo pútrido”. — Soergueu os olhos para fitar Lana. Por fim, declarou: — Isso é genial!

Lana riu e bateu as palmas alegremente.

— Fico feliz que você tenha gostado!

Eles também se abraçaram enquanto Gray agradecia reiteradas vezes.

Só esperava que o entusiasmo com esse presente fosse proporcional aos outros entregados e não ofendessem os outros amigos. Não queria ser julgado por favoritismo. (Mas aquele presente era demais. Não sabia que Lana o conhecia tão bem.)

Tyler também parecia impressionado com a escolha dela.

— Eu sabia que Gray era fã de literatura britânica e tal… Não sou ninguém pra julgar. Mas não iria adivinhar que fosse tiete de Shakespeare.

Gray riu. Lana deu de ombros.

— Pra ser honesta, eu nem sabia que ele gostava tanto de literatura assim. Só que ele iria adorar esse gerador de ofensas cultas porque é bem a cara dele. E, bom, aposto que ele é inteligente o bastante pra entender bem inglês arcaico.

— Sou mesmo — enfatuou-se Gray.

Tyler embicou o lábio inferior, uma expressão parecida com a de um filhote perdido.

— Acho que o presente dela é melhor que o meu — admitiu, lacrimoso.

— Idem — suspirou Alyssa. — De jeito nenhum que supero isso.

 Cameron, em vez de parecer decepcionado como os outros, parecia mais enfezado. Seus braços estavam cruzados em contrafação. Seu semblante dava a impressão de que havia comido uma banana verde demais.

— Meh — murmurou ele.

Lana estava tão sorridente quanto quem está de pé sobre um pódio de primeiro lugar.

— Ah, não, gente, qual é — o aniversariante tentou consolá-los. Era justamente isso que queria evitar. Em especial com relação a Tyler. Não queria que ele sentisse que suas escolhas fossem inferiores a de ninguém. Abraçou-o de lado, apertado o suficiente para confortá-lo. — Eu gosto de todos os presentes igualmente!

— Sei — bufou Cameron.

Todos riram diante de sua infantilidade. Isso pareceu indigná-lo mais.

— Então… Minha vez? — arriscou Alyssa, intervindo no assunto.

— Claro! — Gray queria soar o mais convidativo possível.

Ela sorriu e entregou-lhe uma embalagem flácida. Imediatamente adivinhou que era uma camisa.

 Normalmente não gostava de ser presenteado com roupas, por ter um próprio estilo cuja manutenção dependia apenas de si próprio. Mas a que a amiga selecionara não o desapontou nem um pouco.

Era uma camisa cinza e simples. As palavras nela estampadas é que faziam com que valesse a pena ter. Elas listavam as “10 coisas que quero na minha vida”, em que cada item continha a palavra “cachorro” em algum contexto. Os primeiros eram, inclusive, “cachorros; mais cachorros; um grande jardim para meus cachorros; dinheiro pros meus cachorros” e assim por diante. O último item coroava com “mencionei cachorros?”

Gray sorriu de orelha a orelha ao estender a camisa e avaliá-la, segurando-a pelas mangas com as mãos afastadas.

— Eu adorei — disse. — Obrigado mesmo.

Tímida, ela retribuiu o sorriso e reposicionou uma mecha de cabeço atrás da orelha.

— De nada.

Tyler se remexeu ao seu lado. Pigarreou, denotando certo nervosismo.

— Hm, acho que agora só resta a mim.

Gray virou a cabeça para lançar-lhe um sorriso reconfortante.

— Você mesmo.

Ele sorriu. Gray deu-lhe um beijo na bochecha. Seu rosto se acarminou todo em um piscar de olhos.

Cameron fez “ewww” diante da afetividade descarada, mas foi ignorado. 

Tyler havia deixado seu pacote horizontal sobre o chão ao lado de suas pernas, sendo o maior deles. Foi meio complicado entregá-lo a Gray: seu tamanho ocupou o colo de ambos.

— Quer ajuda para abrir? — ofereceu e recebeu um sim como resposta do aniversariante.

Ambos se puseram a rasgar o papel-presente sem o menor traço de finesse, embora Tyler estivesse permitindo que Gray fosse o maior responsável por reduzi-lo a tiras esgarçadas, motivado por sua euforia.

Uma vez livre o pacote dos confinamentos do embrulho, Gray o examinou. Suas sobrancelhas se arqueavam mais à medida que seus olhos varriam a superfície da caixa.

— Uma vez, você mencionou como sempre quis acampar quando era criança. O mais perto que chegou disso foi uma barraca inflável que seus pais te deram aos nove anos. Você nunca teve a oportunidade de realmente passar um tempo imerso na natureza, numa barraca de verdade. — Ele riu e adernou o corpo ligeiramente para um lado, ponderativo — Eu sei que pareço desatento e avoado, mas me atenho aos detalhes às vezes.

— Caramba, mas um conjunto de acampamento desses não é caro? — Queria ter pensado em algo melhor para dizer. Porém, ainda estava embasbacado, o que entorpecia seu raciocínio linguístico. As palavras escaparam dele facilmente, estando quase boquiaberto.

Tyler esfregou a mão no antebraço esquerdo, o olhar arredio.

— Não é tanto assim — murmurou. Conseguiu se expressar melhor ao recuperar a compostura: — Quer dizer, é só uma tenda montável pra quatro pessoas… E meu pai é amigo do dono da loja, então eu consegui um desconto e-

Seu falatório foi interrompido pelo riso descontraído de Gray.

— Não precisa se justificar, Thay. Eu adorei. Obrigado. Sério… Nem tenho palavras direito. Hm — ele divisou a plateia dos três amigos, tentando sem sucesso ser sugestivo —, tem como vocês, uh, virarem o rosto ou algo assim?

Os três piscaram, atônitos. Então, se entreolharam, como que num acordo mútuo de deixar os protestos para depois. Com um encolher dos ombros, fizeram o requisitado.

Gray virou o corpo parcialmente para o lado. Suas mãos conchearam ambos os lados do rosto de Tyler, os polegares resvalando nos ângulos de seu maxilar. Teria aproximado seu rosto do dele com calma, mas os dedos dele já se engrenhavam em seus cabelos e ele o impelia para perto. 

O beijo devia ser suficiente para mostrar como gostara do presente. Não pelo novo bem material em si, mas pelo gesto, tão cândido quanto o que Tyler havia lhe oferecido à porta do seu apartamento. Pela atenciosidade simbólica carregada naquele pacote. Pelo deleite que o simples vaso de flor recebido lhe trouxera. Pelo fato de Tyler ter absorvido suas palavras e desejado realizá-las àquele ponto.

— Quero acampar com você — sussurrou ele assim que se separaram. Omitiu o “um dia”, porque “um dia” trazia o fardo da possibilidade de nunca ser levado a cabo, a sina de ser apenas uma ideia. Não queria sujeitar as próprias palavras a isso.

Tyler sorriu. Pela sua feição, pareceu compreender sua omissão proporcional. Não o interrogou quando ou como. Apenas sorriu, como que em anuência.

Com esperança, estava concordando não só com aquela sugestão, mas também com todos outros convites de experiências que viriam a viver juntos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

conclusão com esse capítulo: eu sou meloso pra caralho pqp como que a minha namorada me aguenta (perdoa as descrições e reflexões sentimentais e n desiste de mim²)
ENTÃO GENTE É ISSO. Espero que tenham gostado! E relevado o tamanho :P
Caso o lapso de tempo do capítulo tenha estado confuso (por causa do "flashback" no início do cap), podem me falar suas dúvidas tanto nos comentários do capítulo quanto por DM.
btw, os presentes que o Gray recebeu realmente existem! achei navegando na interwebs. infelizmente, não são frutos da minha imaginação e criatividade. se vocês quiserem, coloco o link de cada um aqui depois.
Peço desculpa pela demora de novo, galera. Vou me esforçar pra postar o outro mais rápido e escrever mais nas férias. Como o próximo cap é tipo uma parte 2, vai ser mais fácil. E ele vai ser super daora tb! >:D a gente não pode deixar o níver do Gray (13/12, a data no próximo cap) passar em branco.
Bom, gente, é isso. Obrigado por lerem e agradeço quem estiver disposto a deixar um comentário. Feliz natal e feliz ano novo procês, aproveitem as férias. Até a próxima!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Maybe Someday" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.