Um encontro na chuva escrita por Lu Rosa


Capítulo 4
Quatro




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No momento em que Ana Lúcia abriu os olhos, Ricardo já estava no chão. Mohammed o havia acertado com um direto no queixo.

– Inferno! – praguejou Ricardo levantando-se – Que foi árabe? Você quer brigar, é? Cai dentro! – ele começou a fazer gestos com as mãos incitando Mohammed a brigar.

– Nunca mais toque nela, ouviu? – ordenou ele com a voz estrangulada pelo ódio. - E eu não sou árabe. Sou iraniano.

Ricardo já avançava para cima de Mohammed, quando Ana Lúcia se interpôs entre os dois.

– Parem já! – ela olhou para Mohammed. – Por favor, Mohammed. Entre no carro. Vamos embora.

– Não, Ana Lúcia. Vá você para o carro. Vou resolver isso agora.

– Por Jesus, Mohammed. Não é hora pra descarregar a testosterona. Você não conhece o Ricardo como eu. Por favor, não faça isso! – pediu desesperada.

– Fique tranqüila. Não haverá nenhuma briga aqui. – Delicadamente ele a tirou da frente.

Ele caminhou até Ricardo com as mãos abertas.

– Que foi cara? Se você quer a garota vai ter que me enfrentar. – Ricardo perguntou, sem saber o que fazer. Geralmente quando ele entrava numa briga, ele tinha total receptividade do adversário.

– Não se preocupe. Eu enfrentarei você. Mas não aqui e não na presença dela. – indicou Ana Lúcia. – Em outro lugar e em outra hora. É só você escolher.

– Está bem... - ele fez uma pausa provocativa - árabe. Á meia-noite de hoje. No final da rua. Eu e você. – Tocou Mohammed no peito com a ponta do dedo.

Mohammed nada disse. Andou alguns passos para trás, mantendo-se de frente para Ricardo e voltou para o carro.

Ana Lúcia manteve-se calada durante o trajeto, pois sabia que se abrisse a boca, não impediria as lágrimas de correrem.

A igreja da religião a qual Mohammed pertencia era belíssima. A arquitetura em um estilo que Ana Lúcia nunca vira a não ser em documentários sobre o Oriente. Simples por fora, mas magnífica por dentro. Imponente quanto ao venerando senhor que vinha ao encontro deles.

Discretamente ela se sentou em um dos bancos enquanto Mohammed continuava caminhando até o Padre.

Ele se ajoelhou perante o padre e pediu:

– A benção, Pai.

– Deus seja contigo, meu filho.

– Pai, - começou Mohammed levantando-se – preciso de ajuda. Preciso de conselhos.

– Venha meu filho. Vamos conversar.

Olhando para trás, Mohammed sorriu para Ana Lúcia.

Depois que os dois homens saíram, Ana Lúcia começou a andar pela Igreja admirando os ícones e os vitrais representando varias etapas da vida de Jesus.

Olhando para o lugar onde os devotos acendiam velas ela viu um homem que usando um abafador e dois homens vestidos de ternos e óculos escuros a observavam atentamente.

Cautelosa, ela voltou em seus passos ate o altar da igreja, disfarçando como se estivesse prestando uma atenção especial ao teto do templo.

Os dois homens também desviaram a atenção dela, voltando a conversar em voz baixa. O outro homem com o abafador, depois de olhá-la furtivamente, voltou aos seus afazeres.

Apesar das vibrações tranqüilizadoras da igreja, Ana Lúcia estava inquieta. A discussão mais cedo com Ricardo trouxera à tona todo medo que ela sentia dele. Todo o medo e humilhação que sofrera nas mãos dele. Ela sempre conseguira se esquivar, mas desde que conhecera Mohammed parecia que havia assumido o papel de donzela em perigo.

E como se seus pensamentos o trouxessem até ela, ele voltou em companhia do padre. Ela caminhou até eles.

– Esta, Pai, é a moça que me salvou. Ana Lúcia Paes. - apresentou-a ao padre. - Este, Ana Lúcia, é o Padre Dvorak Karpinskyita.

– Seja bem vinda filha. Mohammed falou muito bem de você.

– Receio que ele esteja exagerando um pouco, padre. Não fiz nada mais do que acolhê-lo em minha casa. - respondeu encabulada.

– Filha, aquele que pensa que fez pouco, realiza maravilhas. Você salvou a vida deste jovem. Deu-lhe proteção e abrigo. Acha isso pouco? Não é. Você devolveu-lhe a esperança e a alegria de viver, conforme ele me disse. Não se envergonhe do bem que você pratica.

Os dois se olharam e o padre observou, em toda a sua experiência, que havia mais ali do que gratidão e desejo de proteger. Havia ali o mais puro amor que duas pessoas poderiam ter uma pela a outra. Não um amor tranqüilo como aquele que leva anos para florescer. O amor deles nascera do medo e coragem. Da esperança e desespero. Da tristeza e alegria. O tipo de amor que dura para sempre.

O padre os abençoou e eles saíram da igreja. Renovados como nunca estiveram. E embora eles não comentassem um com o outro, pouco a pouco aceitando o amor que a vida lhes dera. Não perceberam que eram observados.

Quando o carro se Ana Lúcia saiu, dois homens correram para um carro preto estacionado há alguns metros de distância e saíram também.

– Você acha que era ele, Ali?

– Tenho certeza, Solom. Anotou a placa do carro?

– Sim. Vamos segui-los, descobrir onde ele está escondido e depois avisamos Oman.

Mais tarde, no jardim, Ana Lúcia sentou-se ao lado de Mohammed.

– Está uma noite linda, não? Porque faz tempo que eu não vejo uma lua cheia tão linda.

Mohammed permaneceu calado.

– Eu acho que poucas noites este ano a lua pareceu tão esplendorosa...

– O que existe de verdade entre você e aquele rapaz, Ana Lúcia? - perguntou ele sem rodeios.

Ela demorou um pouco para responder.

– Entre eu e Ricardo? Já houve. Mas não haverá nunca mais. – ela revelou com amargura.

– Não é só uma briga entre namorados? Por que eu não conheço muito os costumes de vocês, brasileiros. Mas na universidade eu sempre via outros casais. Eles brigavam, ficavam até alguns dias sem ver falarem. Mas sempre tudo era perdoado, desculpado.

Ela olhou para ele atônita.

– Você acha que o que acontece entre eu e o Ricardo é só uma briga entre namorados? Então acho que chegou a hora de você conhecer as minhas verdades. - ela estendeu a mão para ele. - Venha comigo.

Os dois voltaram para casa. Repentinamente a lua foi encoberta por nuvens e uma chuva começou a cair.

– Isso aqui são fotos de um inquérito policial. Eu pedi a um tio meu que é policial para copiar as fotografias para que eu sempre tivesse uma lembrança do que um erro pode fazer.

Mohammed começou a olhar as fotos, murmurando estarrecido. As fotos mostravam Ana Lúcia de uma maneira grotesca. Como se ela tivesse sido atropelada ou coisa assim.

– Esta... É você?! - perguntou incrédulo.

– Sim, sou eu. Fui vitima dos carinhos de um lutador de jiu-jitsu. Agora você vê que o que aconteceu entre eu e o Ricardo não foi apenas uma briga de namorados. Ele quase me destruiu! – ela revelou à beira das lágrimas. - Passei um mês no hospital me recuperando da surra que ele me deu. Por que eu não... Isso já não importa mais. Eu só não queria que você pensasse por um momento sequer que ele e eu temos a mínima chance de reconciliação como ele quer. Nunca mais eu me aproximei de rapaz algum neste último ano. Vou me formar no final do ano e não tenho companhia para o baile de formatura. Simplesmente por que eu desacreditei do amor. Eu simplesmente não consigo relaxar perto de um rapaz. Eu cometi um erro que me acompanhará por toda a minha vida. - agora ela chorava copiosamente - Por que os ferimentos do corpo saram, ossos voltam para o lugar, mas e o coração? Esse nunca mais se recupera. - Ana Lúcia nunca falara tanto sobre a agressão que sofrera como naquele momento.

Cada palavra que Ana Lúcia pronunciava, cada lagrima que ele via escorrendo pela face dela, eram como punhais que lhe cravavam no coração. Mohammed viu no relógio de cabeceira de Ana Lúcia que já eram onze e meia. Ele tinha mais meia hora antes do confronto. Precisava se concentrar. Mas a fúria que ele sentia naquele momento era muita. Ele se lembrou de todos os momentos que passara ao lado de Ana Lúcia desde que a conhecera, há dois dias e em cada um deles ele já a vira assustada, sorridente, confiante, sonhadora. Mas vê-la naquele desespero...

Ele se levantou da cadeira e foi até ela.

– Não se preocupe isso já passou. Eu sei o quanto você é forte e vai superar isso.

– Eu achei que havia superado. Mas sentir ele me segurando... Novamente me forçando a algo que eu não queria...

Foi nesse momento que Mohammed percebeu o porquê da agressão. E ele quase sufocou de ódio.

Sentindo a fragilidade de Ana Lúcia naquele momento, Mohammed procurou não preocupá-la mais dando mostras de sua fúria. Controlando-se ao máximo ele disse:

– Ana Lúcia, já é tarde e eu acho que você deveria descansar um pouco. Amanhã será um novo dia. Para nós dois. Eu prometo. - e contrariando a si próprio, depositou um beijo na testa de Ana Lúcia.

A emoção da revelação havia minado as forças da moça, que murmurando uma boa noite, enrodilhou-se na cama como um bebê.

Mohammed a cobriu com o cobertor e saiu cuidadosamente do quarto.

A chuva havia aumentado, mas Mohammed não sentia frio. Estava por demais concentrado para sentir o que quer que fosse a não ser uma profunda raiva. Ele concentrava toda a sua energia naquele momento. Os passos dele ecoavam na noite e quando ele chegou ao lugar marcado um pequeno circulo de rapazes aguardava por ele.

– Então você veio árabe. Eu achava que você já havia pegado o seu tapete voador e se mandado daqui. - Ricardo deu uma gargalhada sarcástica.

Mohammed não se dignou a responder, limitando-se a tirar a jaqueta.

– Eu nunca vi alguém com tanta pressa de tomar uns socos como você. Mas tudo bem. - Ricardo começou a tirar a camiseta, ficando somente de calça comprida.

Ricardo impressionava pelo físico conseguido à base de exercícios, mas também de anabolisantes. Ele tomava remédios proibidos por lei que matariam um rapaz comum. E ele sempre se safava da justiça, fazendo alguém assumir a culpa por ele, fosse através de coação ou pagamento.

Mas se por um lado o físico de Ricardo era parcialmente artificial, de outro, o de Mohammed era totalmente puro. Vivendo numa região árida e as práticas esportivas das artes iranianas de combate na Universidade fizeram de Mohammed um adversário à altura.

Quando ele procurou alguém para segurar sua jaqueta e sua camisa, um rapaz se adiantou.

– Você poderia segurar para mim? - pediu educadamente.

– Claro. Hei – continuou o jovem – eu não te conheço, mas se você pode me fazer um favor?

Mohammed assentiu com a cabeça.

– Quase todo mundo aqui sabe o que ele fez com a filha do Seu Marcos, mas nós tivemos medo de enfrentá-lo. Então, vingue-a por todos nós.

Solenemente, Mohammed apertou a mão do rapaz, selando a promessa.

Os combatentes tomaram posição e a luta começou.

Foi o barulho da chuva na janela que acordou Ana Lúcia. E em seguida um relâmpago riscou o céu, iluminando o quarto, deixando a em pânico. Ana Lúcia morria de medo de relâmpagos. E a incidência deles na cidade de São Paulo era enorme.

Levantando-se ela decidiu ir até a cozinha para fazer um chá calmante para voltar a dormir.

No corredor, ela notou que a porta do quarto de Mohammed estava entreaberta. Não resistindo a um impulso, ela abriu a porta devagarzinho só para ter uma visão de Mohammed na tranqüilidade do sono. Mas foi grande a sua surpresa ao ver a cama completamente arrumada.

Ela foi até o guarda roupa. Todas as roupas e a pasta da qual ele não se separava estavam lá.

Tomada de um sinistro pressentimento, Ana Lúcia saiu. A chuva continuava torrencial. Ela abriu o portão e foi para a calçada. Olhou para os dois lados da rua e viu.

Em um dos cruzamentos da rua, um círculo de pessoas. Ela correu para lá. Mas, antes que ela pudesse chegar, o circulo se desfez e as pessoas começaram a vir em sua direção, sendo que eles traziam um carregado. Ela se encolheu em um canto escuro, esperando ver a confirmação de seus piores pensamentos. Ela sabia que veria Mohammed sendo carregado depois de ter sido arrasado por Ricardo.

Mas, embora não acreditasse, não foi Mohammed que Ana Lúcia viu sendo carregado. Era Ricardo! Completamente desmaiado. Ela viu o grupo passando e saiu do esconderijo.

Ao voltar para a rua, ela viu andando em sua direção duas pessoas. Uma sendo parcialmente amparada pela a outra. Seu coração lhe disse quem era e ela correu ao encontro dos dois.

A outra pessoa entregou a jaqueta a ele e continuou andando.

Passando por ela, Ana Lúcia viu que era Roberto, o irmão de Ricardo. Ao chegar perto de Mohammed, ela viu o rosto machucado.

– Mohammed! – ela abraçou-se a ele – Por que você fez isso? Eu deveria te matar por isso! Fiquei muito preocupada vendo Ricardo sendo carregado e pensando que era você.

– Fique calma, Ana Lúcia. Não é tão ruim assim. - Ele não pôde reprimir uma expressão de dor que desmentiu suas palavras.

– Não é tão ruim? – repetiu ela, perdendo de vez o controle e socando repetidamente o peito dele – Eu odeio você! Eu odeio você! – ela dizia e chorava ao mesmo tempo.

Ele a abraçou, fazendo que ela encostasse a cabeça em seu peito, enquanto acariciava os cabelos encharcados de chuva. Ana Lúcia sacudia os ombros soluçando. Ela podia sentir as batidas do coração dele batendo no mesmo ritmo que o seu. E como se isso tivesse algum poder mágico, ela foi se acalmando, até que os soluços não passassem de murmúrios.

Quando pressentiu a calma dela, ele a segurou pelas laterais do rosto, fazendo que ela o encarasse.

– Ele nunca mais vai tocar em você, Ana Lúcia. Se ele fizer, eu o mato.

Ainda tomado pela adrenalina do combate, baixou seu rosto em direção ao dela, ele beijou avidamente seus lábios deixando-a sem fôlego. Ela retribuiu ao beijo na mesma intensidade como se sua vida dependesse daquilo. Ela pousou as mãos em seus ombros sentindo a musculatura poderosa dos braços dele. Nenhum dos dois sentia a chuva caindo, tal era o ardor dos beijos e caricias. Depois, Mohammed diminuiu o ritmo, beijando-a devagar, saboreando cada segundo nos lábios trêmulos da moça. Suas mãos deslizaram pelas costas dela chegando até a cintura e ele a puxou para mais perto.

Ana Lúcia tirou as mãos espalmadas do peito forte e as levou até o pescoço dele, entremeando os dedos entre os cabelos dele provocando um estremecimento no rapaz. Com um gemido, ele aprofundou o beijo.

Entre os beijos ele murmurava o nome dela e ela sentia arrepios de prazer ao ouvir, junto ao ouvido, seu nome na voz profunda de Mohammed.

Quando eles finalmente se separaram, nenhuma mulher exibiria tanta felicidade no rosto. Com as feridas finalmente curadas e os fantasmas afastados, Ana Lúcia estava finalmente consciente de sua feminilidade e entregue ao amor.

– Eu não vou lutar mais contra esse sentimento, Ana Lúcia. Apesar de todas as incertezas, eu quero você. – ela estremeceu ao ouvi-lo falando de forma tão violenta ao mesmo tempo em que ele roçava os lábios na curva suave de seu pescoço.

– Eu já te pertenço, querido. Desde aquela noite, quando nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. – respondeu ela acariciando o rosto dele com a ponta dos dedos.

Uma brisa soprou e a moça estremeceu de frio. Afinal estavam os dois encharcados de chuva.

Na mesma hora, o rapaz colocou a jaqueta sobre os ombros dela pegando-a no colo sem nenhum esforço.

Ana Lúcia encostou a cabeça em seu ombro e os dois voltaram para casa.


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