A Consciência de Ricky Prosper escrita por Bianca Ribeiro


Capítulo 1
Eco


Notas iniciais do capítulo

Where is my mind?



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Ricky Prosper é o novato na escola novamente. É a terceira vez esse ano e isso faz com que o garoto se sinta um alienígena em outro planeta. Perdera os pais quando pequeno e não tinha mais do que dois amigos que viviam em outras cidades. Morava com os irmãos gêmeos de seu falecido pai e tinha um vício inegável por café e revistas em quadrinhos

Agora, suas mãos estão suadas, a respiração está acelerada e ele não consegue parar de tamborilar os dedos no tampo de granito da mesa da secretaria da escola. Ele está com medo. Não de ser o novato outra vez ou de terminar o dia sem amigos, mas de ser descoberto. Ele tem um segredo.
Eu o conheço como ninguém. Estou com ele o tempo todo em todas as mais diversas situações. Conheço seus mais profundos sentimentos, seus gostos, suas manias, seus temores e seus segredos. Eu o conheço melhor do que ele mesmo. E quem é você?, talvez você se pergunte. Eu sou o que podemos chamar de Voz Da Consciência, ou Conselheira, ou a Voz Interior de Ricky Prosper. Bem, ao menos é assim que me considero. Sou eu quem sutilmente dá conselhos e broncas misturados aos pensamentos de Prosper quando ele parece perdido e confuso. Eu tento ajudar e às vezes ele me ouve. Quando não ouve, se dá mal.
Mas, voltando ao rapazinho louro de olhos claros e cabelos bagunçados, ele quase passa despercebido. É razoavelmente alto e esguio, as garotas de sua idade o chamam de algo parecido com colírio - e esse apelido não faz o menor sentido para mim. Ele é inteligente e taciturno. Não espera-se menos de um garoto como ele, afinal.Tudo o que Prosper toca prospera e tudo o que ele faz dá certo, mas se tem uma coisa em que é realmente péssimo é em relacionamentos. Em geral.
Seu tio acaba de deixar o prédio da escola e uma das inspetoras vestidas de cinza é chamada para acompanhá-lo até sua nova sala de aula. Prosper olha para ela e reprime um suspiro. Ele a acha arrogante e de fato ela parece ser.
– Acompanhe-me, sr. Prosper - ela diz, a voz cortante como unhas arranhando uma lousa. - Por gentileza, olhe sua grade de horários e me diga que aula tem agora.
Prosper tira a folha amassada do bolso da calça jeans e fita as letras em negrito.

Segunda-feira: História da Arte
Literatura
Cálculo avançado
Física
Francês
Mecânica

Talvez seja importante que eu mencione que essa escola é especial. Como Don - tio de Prosper - disse, é uma instituição renomada, especializada em jovens prodígios e com um histórico impecável. É claro, o tio Don não faz ideia de quem Prosper é e o que ele pode fazer, mas é mais que óbvio que o menino tem algo especial.
– Bem, bem... - resmunga a inspetora.
– História da arte - diz Prosper, ao mesmo tempo em que pensa na pouca utilidade que essa matéria terá em sua vida.
– É... terceiro andar - ela para diante das portas prateadas de um elevador e pressiona um botão. - Vou colocar você aqui, rapazinho. Quando chegar lá em cima, primeira porta ao lado da máquina de refrigerantes. Não tem como errar.
A inspetora dá dois tapinhas cordiais no ombro de Prosper e as portas do elevador se abrem. Ele entra e quando se vira para perguntar à inspetora se a porta está do lado esquerdo ou direito da máquina, a mulher já não está lá.
Ela tem mais o que fazer, eu digo a ele. Não leve isso para o lado pessoal.
Prosper suspira. Olha para a grade de horários outra vez enquanto o elevador sobe. Arruma a alça da mochila. Passa os dedos distraidamente pelos cabelos claros rebeldes. Pensa em perguntar a alguém onde fica o banheiro mais próximo.
E então as portas se abrem e ele se vê num corredor repleto de adolescentes para todos os lados. O mais estranho é que os adolescentes não estão agindo como animais, como eu mesma esperava. A não ser por uma menina pequena de cabelo cor de rosa, todos estão devidamente uniformizados e tranquilos. Quero observar essa menina, mas os olhos de Prosper buscam com urgência a máquina de refrigerantes. Ah, sim. Ele detesta se atrasar para qualquer compromisso, ainda mais quando seu atraso pode atrair a atenção das outras pessoas, como quando você chega atrasado na sala de aula. Assim que encontra a máquina, Prosper encontra a sala de História da Arte.
Não precisa ser tão CDF, Prosper!, resmungo para ele. Olhe as pessoas ao seu redor. Não parecem legais? Você devia querer fazer amigos - nem que fosse apenas um!
– Não quero amigos - ele sussurra.
Eu me encolho em sua mente.
Às vezes não estou muito certa de que Prosper não me ouve. Em certos momentos, parece que estamos em uma conversa, como duas pessoas separadas. E isso me aterroriza ao mesmo tempo em que me anima. Não é que me sinto solitária aqui dentro - ainda mais porque posso observar tudo o tempo todo -, mas talvez eu queira que minhas ideias e sugestões sejam respondidas ou até mesmo discutidas.
Prosper entra na sala de aula e acomoda-se na segunda carteira da fileira do meio. Por mais que seja um adolescente chato, ele adora aprender de verdade.
Ao seu lado está uma menina de cabelo cacheado cor de chocolate e um garoto asiático alto e magro. Em cinco segundos avalio esses dois adolescentes e toco o sino dos pensamentos de Prosper: aqueles dois são gente boa.
– Oi - o menino asiático diz de repente, estendendo a mão para Prosper cumprimentar. - É novo aqui, né? Meu nome é Marvel.
– Oi. Prosper.
Ah, vamos, você pode fazer melhor do que isso!, exijo.
– Essa... essa escola parece... legal - arrisca Prosper. Fico orgulhosa. Ao menos ele está tentando.
A menina se levanta e o cumprimenta também.
– Sou a Liz - ela bate continência -, capitã das Garotas Do Tiro e vice presidente do Conselho Estudantil.
– Ela ama dizer essas coisas - murmura Marvel, revirando os olhos pequenos. - Você veio de onde?
Prosper hesita.
– Sou daqui da cidade, mas estudava no Atlas.
Liz e Marvel arregalam os olhos - ele nem tanto - e se aproximam mais de Prosper, curiosos. O Colégio Atlas era uma escola pública onde a tia Betty dava aulas e por isso Prosper acabou sendo mandado para lá por uns três meses. Tinham um ensino fraco e problemas com drogas, mas que escola hoje em dia é perfeita?
– É sério? Como é lá? - Marvel quer saber.
– É verdade que os alunos ganham armas de choque? - pergunta Liz.
Prosper ri.
– É uma escola comum. Pública. E, não, ninguém tem armas por lá. Vocês estudam aqui há muito tempo?
– Desde o primeiro ano do Médio - responde Liz. - Mas só porque meu pai é da Coordenação.
– Eu cheguei ano passado - diz Marvel. - Meus pais resolveram se mudar para cá.
– Legal.
O sinal toca e mais alunos adentram a sala - entre eles a garota de cabelo cor de rosa que despertou minha curiosidade. Marvel e Liz voltam para seus lugares e conversam com outros colegas. Prosper abre seu caderno e só nota a figura baixa e irritada parada de pé ao seu lado quando esta pigarreia.
– Sim? - ele olha para ela. A menina de cabelo cor de rosa.
– Meu lugar - ela resmunga.
Prosper fica tenso. O principal motivo pelo qual ele sempre escolhe os lugares na frente é evitar conversar com os colegas.
Agora tem uma anã querendo me expulsar! O que eu faço?, ele pergunta.
E essa é uma daquelas vezes em que parecemos duas pessoas conversando.
Indique outro lugar para ela, sugiro.
Não vai funcionar. Olha a cara dela!
Tem uma ideia melhor?
, murmuro.
Ele engole em seco.
– Você... você poderia se sentar ali - aponta para a primeira carteira da fileira perto da janela.
O rosto da menina, embora muito bonito e delicado, contorce-se numa carranca irritada e ela aceita a sugestão de Prosper de má vontade.
– Só dessa vez, novato.
Ela o olha nos olhos e ele faz o mesmo. Os olhos dela são bonitos, de um tom de verde claro de dar inveja e eu sei que ela deve estar pensando o mesmo dos lindos olhos de Prosper.
Pare de encarar a menina, cabeção!
Mas eu sei que é tarde, porque alguma coisa acelerou o coração de Prosper - algo pequeno e irritantemente cor de rosa.


***

A primeira das tediosas aulas de Prosper foi a única em que ele viu a garota de cabelo cor de rosa. Pelo que ouvi através dos ouvidos dele, a menina é filha do prefeito da cidade vizinha - que, aliás, é minúscula e pouco habitada. Durante a aula de Cálculo, Prosper de repente me surpreende quando pensa nela e eu o advirto com toda a minha sabedoria:
Não é prudente ficar todo caído por uma menina como aquela. Para começar, você nem mesmo a conhece. Esqueceu-se do que sempre acontece quando as garotas colocam os olhos em você? Elas não enxergam você, enxergam esse seus olhos e seu rosto incríveis. Você sabe. Por favor, concentre-se em terminar o colegial e sair logo daqui...
Em certos momentos me pergunto se não sou ciumenta. Mas isso não faz o menor sentido. Estou aqui para aconselhar e zelar pelo livre-arbítrio de Ricky Prosper - qualquer opinião pessoal deve ser imediatamente descartada, até porque eu não sou uma pessoa. Gosto de pensar que sou uma força, algo que pensa e tem ideias, mas que não pode ser vista ou tocada. Por isso minha imparcialidade deve prevalecer e por isso devo deixar que ele se vire com esse assunto sobre a garota de cabelo cor de rosa.
Devo, mas não consigo.
É só uma garota, ele resmunga em pensamento. Isso me irrita. É quase como se Prosper estivesse me chamando de dramática.
Nós dois sabemos que ela já não é só uma garota. É sério. Pare. Mantenha o foco.
Prosper me ignora e, debruçado sobre a sua carteira, adormece. Ele quase sonha, mas tenho uma vaga noção disso. Quando os humanos dormem, as consciências dormem também e é por isso que no mundo dos sonhos não há lógica, limites e impossíveis. Não há nenhuma voz da razão para colocar ordem nas coisas e de maneira alguma eu me arriscaria a entrar nesse mundo. O caos me apavora.
A sineta que indica o intervalo toca e Prosper acorda. Ele babou na folha do caderno outra vez e tenta limpar disfarçadamente, mas algumas garotas notam e riem cobrindo os lábios. Três delas param diante da carteira de Prosper - uma delas loura, a outra morena e a terceira com o cabelo tingido de preto. Muito magras e muito sorridentes para o meu gosto.
– Você é o novato sobre quem todos estão comentando - diz a morena, erguendo o queixo num ângulo estranho.
Prosper parece surpreso - como se algo como aquilo nunca tivesse acontecido.
– Estão comentando sobre mim? - ele pergunta, sorrindo para elas como se valessem seu tempo.
A loura dá um tapa cordial no ombro dele e ri como uma gaivota.
– Seu bobinho! É claro. Você parece bem interessante, sabe.
– E você é lindo - diz a de cabelo tingido, sutil como um elefante.
– Qual é o seu nome? - pergunta a morena. - Sou Cora e essas são as minhas primas, Leslie e Cay - ela aponta para cada uma das meninas e logo faço a associação com seus nomes.
– Todo mundo me chama de Prosper - ele diz, envaidecido.
Isso é sério?, retalho. Todo mundo me chama de Prosper? Todo mundo quem, seus quadrinhos e bonequinhos de super heróis?
Não comece.
Concentro minha energia em tentar fazer com que Prosper se lembre de que está com muita fome. Mas as três barangas não parecem querer deixá-lo ir tão cedo. Eles conversam sobre a antiga escola de Prosper e o quanto ele vai se adaptar bem às pessoas da nova. A loura - Cay - convida-o para uma festa no sábado e ele diz que fará o possível para comparecer. Ao fim da conversa, penso que se consciências estivessem propícias a dores de cabeça eu com certeza teria uma agora.
Por acaso se esqueceu de que seu corpo só funciona se você o abastece periodicamente, garoto?, eu murmuro, tentando expressar o quanto estou zangada.
Quanto estresse, Prosper ri. E não venha com essa de "garoto".
Fico quieta, sobressaltada. Prosper está falando comigo. Comigo. Não com as ideias que expresso ou com as ondas de conselhos que envio para ele. Ele me responde como se... como se eu fosse uma pessoa. Como se esse comentário fosse acompanhado por uma cotovelada e um sorriso.
É estranho, mas pela primeira vez em dezessete anos eu não me sinto apenas uma parte dele. Sinto como se eu fosse alguém junto, alguém que pensa, fala e é diferente dele, mas que está junto.
– Prosper! - Marvel chama, acenando de uma das mesas do refeitório. Liz está com ele e, assim que vê Prosper, alisa os cabelos e ajeita a postura.
Viu isso?, pergunto, quase sarcástica.
O quê?
A garota. Liz. Olhe como ela está corada.
Ele ainda não compreende.
E o que tem isso?
Quando uma garota arrumar os cabelos, piscar os dois olhos e sorrir para você daquele jeito
ali, acredite, a coisa não está nada boa.
Você está falando comigo
, ele diz de repente, surpreso.
Penso duas vezes antes de responder.
E você comigo.
Como isso é possível?
, Prosper parece atordoado.
Não é.
É, sim. Estamos conversando. Você... você é um eco na minha mente ou...?
Sou sua consciência. Fico contente que, depois de todos esses anos em que tenho te aconselhado e ajudado, você tenha me notado.
Tudo bem, isso foi cruel. Não posso culpá-lo por nunca notar minha presença, mesmo porque ele nunca devia notar minha presença. Mas culpo. Isso faz de mim uma má consciência?
Ele arqueja e não diz mais nada. Senta-se ao lado de Marvel e Liz e é cumprimentado por dúzias de outros alunos. É assustadora a maneira como as pessoas se comportam diante da beleza. Porque, para os padrões humanos, Prosper é lindo. E isso pode vir a ser muito perigoso.
– E então? - Liz pergunta, mordiscando seu sanduíche.
Prosper olha para ela com a expressão vazia.
– O que foi? - ele indaga.
– O que acha da escola até agora?
O estômago de Prosper ronca alto e os três adolescentes riem.
– Posso responder assim que conseguir comer alguma coisa? - brinca Prosper, levantando-se.
– Experimente o purê de batatas com cebola - sugere Marvel -, você nunca mais vai querer comer outra coisa na vida.
Prosper faz careta e vai até as bandejas enfileiradas no balcão de comida.
– Se eu fosse você, tomaria mais cuidado - diz uma voz fina tentando soar sarcástica.
Reconheço através dos olhos de Prosper a garota de cabelo cor de rosa conversando com uma amiga a poucos passos de onde ele está.
Talvez seja paranoia minha, mas algo sobre essa garota me deixa curiosa e cautelosa ao mesmo tempo, como se eu esperasse que a qualquer momentos ela fosse jogar as luvas brancas para o alto e tirar facas de seu cinto colorido. É pequena e tem um olhar tanto doce quanto tempestuoso. Suas roupas são um esguicho de cores que alguém deve ter espirrado nela acidentalmente e, vendo de perto, a raiz de seu cabelo parece quase prateada. Como Prosper diria, a garota é uma esquisitona egocêntrica.
– Puxa, o purê vai acabar... - murmura a menina, aproximando-se de Prosper a ponto de ficar logo atrás dele na fila.
Ao ouvir a palavra mágica - purê–, Prosper volta o olhar para a pequena figura colorida atrás dele.
– Oh. Oi - ele diz por cima do ombro. - Ouvi falar sobre esse purê. É mesmo bom?
Resolveu fazer amigos agora, é?, resmungo com ele.
A princípio, a menina fica sem fala. Talvez por olhar dentro dos incríveis e irresistíveis olhos azuis de Prosper, ou por notar que os cabelos dourados dele parecem ter luz própria ou até mesmo por dar-se conta de que o sorriso dele é o mais perfeito que ela já viu. Mas aí ela me surpreende. Sua expressão admirada transforma-se numa carranca e ela abandona a bandeja sobre o balcão e sai da fila. Antes de ir se sentar com os amigos, lança um olhar irritado para Prosper, como se ele acabasse de ofendê-la.
Qual é o problema dela?, nós dois nos perguntamos ao mesmo tempo.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem e continuem acompanhando!