Os olhos de Vênus escrita por Aphrodite Laclair


Capítulo 1
I




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/552214/chapter/1

Os olhos de Vênus

Longas tranças escorridas que serpenteavam pelas costas dela — Emily. Corriam como tinta e coloriam sua pele branca com um milhão de nuances de amarelo e veja, não é um canário? Mas canário aprisionado dizem que não canta! Ao seu redor a poeira flutuava no ar — o sol entrava pelas janelas altas, claras, e tudo parecia ainda mais antigo, mofado. Emily amava aquele lugar. Emily havia dado mais que o sangue para estar ali, naquele museu: havia dado tudo.

Do outro lado da sala onde em sete horas, trinta e sete minutos e (ela para e olha o relógio na parede bege) vinte e cinco segundos aconteceria uma exposição de pinturas cubistas. Quase um ano de intensa preparação: receber, catalogar, analisar o estado, conservar! A profissão de uma museóloga nunca tinha fim, jamais! Enfim. Do outro lado da sala. Do outro lado da sala, Anya — a garota nova transferida direto de um dos museus de Moscou, naquela Rússia gelada, para Londres — observava, a cabeça inclinada e a expressão intrigada, a moldura vermelha de um quadro.

Emily repreende seu próprio coração que se torna absolutamente ingênuo, tolo, cada vez que seus olhos relanceiam para a figura de Anya, que inevitavelmente estará fazendo alguma coisa obscura? Quem sabe o que se passa naquela cabeça loira? O que se esconde atrás daqueles animados olhos violetas é um mistério. Um mistério total, completo e absoluto, e Emily se resigna.

Mas não realmente. Profundamente. Caminha, um decidido passo após um decidido passo, os olhos erguidos e a expressão segura. Ela é uma adulta. Para atrás de Anya e sorri.

— Anya, o que tanto olha numa moldura?

— É vermelha. — ela responde, indiferente, sem se mover. Emily não se importa.

— Eu vejo.

— Não combina com a pintura, não deveria ser vermelha, deveríamos mandar trocar.

— Não podemos mandar trocar, — Emily explica pacientemente, seus dedos se esgueirando e se aninhando junto ao cotovelo coberto por um casaco, duas blusas (cashmere?) de Anya — essa é a moldura desde que o autor pintou essa obra.

— Está me dizendo que será essa moldura e pronto e acabou. — não é uma pergunta.

— É exatamente o que estou dizendo.

— Isso é uma desgraça.

— Isso é trabalho, Anya, trabalho. — dois minutos de muda contemplação da moldura. — Você quer um café?

— Achei que você nunca fosse perguntar.

~

Anya está sentada. Seu braço direito encosta no braço esquerdo de Emily cada vez que ela se move, o que acontece muito, já que ela está limpando os detalhes de uma escultura particularmente complexa e delicada. O que também quer dizer que Emily não tem permissão de falar, Anya se estressa muito fácil quando está assim ocupada. Então ela apenas fica lá, tensa, segurando a respiração, sentindo os braços delas roçarem (tiraram os casacos, a sala está quente) e Anya simplesmente não dar a mínima para ela.

É quase reconfortante.

~

É manhã e Emily está sentada no chão, as pernas cruzadas como uma bailarina, levando um copo de café lentamente aos lábios, devagar. O clima é ameno porque é outono. Anya odeia climas amenos, sendo russa até os ossos, então está, a expressão ranzinza e o olhar cheio de ódio, apoiada na parede, em pé ao lado de Emily, que tenta convencê-la como outono é maravilhoso — é tempo de renovações, afinal. Sobre isso, Anya é categórica, sua resposta é rápida e enfática: estou me fodendo. Logo depois, acrescenta: não quero renovar coisisíssima nenhuma. Emily suspira e desiste.

Se pergunta se com Anya não é uma sucessão, um ciclo vicioso de suspiros e desistências.

~

A primeira vez que Emily viu Anya fora do museu pareceu muito errado. Como agarrar a Mona Lisa e sair carregando ela para longe do Louvre soaria. Ela estava num bar, na parte de fora, um copo cheio de vodka numa mão e um cigarro de filtro preto na outra. Parecia triste e sozinha e, acima de tudo, parecia odiar Londres. Emily podia entender, ela também odiava Londres. Então, se aproximou e disse olá.

Anya só a encarou com aqueles grandes olhos violetas por longos instantes. Então disse que não ia dividir a vodka e foi embora.

~

Anya é apaixonada por piano quase tanto quanto Emily ama ser museóloga. Ela inclusive já tentou trazer um concerto de piano para o museu mesmo, mas vetaram. Ela ainda não perdoou a administração pelo que ela chama de essa grave ofensa. Todas as quintas feiras ela pergunta você quer ir ao concerto comigo? Emily sempre fica tentada, tentadíssima, a dizer sim. Mas sempre diz não.

Porque aquele relacionamento, se é que existe um, é confinado à solidão daquelas paredes.

~

Emily tossiu no meio daquela fumaça que lhe dava um ar étereo, de sonho. Estavam na fachada do prédio, do lado de fora ele já se entregava, já mostrava o que era, a que veio. Emily gostava disso. Se orgulhava. Museológa era tudo, tudo, tudo para ela. Qualquer coisa virava pó quando comparado à isso.

— Quando cheguei aqui achei que era um incêndio! — uma tosse seca, forçada, e Anya revira os olhos. Francamente.

— Claro. Aham. — sopra mais uma baforada de fumaça, distraída. — Lembra daquela exposição de arte barroca…?

— Semestre passado? Pinturas e esculturas?

— Essa mesma.

— Tem uma garota, o nome dela é Natalya, Natyuska, alguma coisa assim, a conheci nessa exposição. Trocamos telefone e tudo o mais.

— Interessante. E? — Emily sorri, os olhos se enrugando. Interessada, divertida, os olhos brincando com uma nota de preocupação. Anya sente uma onda de amor lhe percorrer, e balança as mãos, como se dispensasse as palavras.

— E nada.

— Não aconteceu nada?

— Uns beijos.

— Isso sim é interessante.

— Não seja ridícula! — o som de algo (revista) se chocando com algo (braço de Emily). Risadas.

Risadas que se apagam no fundo.

~

— Odeio manhãs. Odeio pessoas matinais. — Emily se arrastou para a sala escura e abafada, mas fria, mesmo assim, fria, em que Anya analisava imperiosamente uma escultura com um ar surrealista.

— Não seja boba, Emily, pelo amor de deus. — ela resmungou, com descaso, se inclinando para deslisar o dedo indicador coberto por luva ao longo de um pequeno estrago no canto esquerdo. — Mhm.

— O que você achou aí?

— Nada demais, nada demais. Um estragadinho. Ação do tempo. Nada que possamos fazer, infelizmente… Há um limite de quantas restaurações uma obra de arte aguenta. E para algo pequeno assim!

— Odeio o clima de Londres.

— Quem é que não odeia?

— Você! Olhe você aí, — seu tom de voz estava cheio de um desprezo desdenhoso — imponente e imperiosa no seu sobretudo que te caí tão bem (onde você comprou esse sobretudo? Não é meio ilegal não parecer um marshmallow com pernas nessa época do ano?) analisando uma escultura recém-chegada como se não fossem indecentes 7h43 da manhã! 7h43!

— Você que vai ficar com a parte de ser guia hoje, Emily. Tá no painel.

— Viu! Hoje, ainda por cima, é o meu dia de ser guia! Odeio ser guia. Odeio turistas. Odeio não-turistas. Malditos. Que fiquem todos longe do meu museu.

— O museu tecnicamente é da prefeitura.

— Detalhes!

— Ontem foi o dia daquela estagiária egípcia, não foi? Jade, o nome dela?

— Sim, acho que foi, acho que foi… Amanhã é você, e é isso que me consola. Eu posso me foder hoje, e eu definitivamente vou me foder, mas o que é seu está guardado, Anya, você que aguarde.

— Meu deus! Como você está ranzinza! É por causa da neve?

— É a neve e o frio, meu deus como está frio. Você obviamente não notou, sua russa indecente, mas está beirando graus negativos!

— Normal. Na minha terra isso aqui é, sei lá, outono. E um bom outono.

— Isso tinha que ser proibido por lei.

— Pare de reclamar e me ajude aqui a girar essa estátua, no relatório do Museu de Idaho diz que está tudo perfeitamente em ordem, mas estadunidenses são idiotas.

— EI! Olá! Estadunidense aqui! Aliás, isso não tinha vindo do Museu N. de Montana?

— Sei lá, todos os estados daquele país obsoleto me soam iguais, mas você pode checar o relatório ali. — apontou com a unha manicurada para uma pasta em cima da mesa.

— Nah. Deixe-me te ajudar com essa escultura.

Vinte minutos de trabalho intenso e silencioso depois, a estátua recebia oficialmente a inscrição de perfeitas condições, com a exceção de pequenos desgastes pelo tempo no relatório do Museu de Londres, assinado pela museóloga russa — formada e mestrada pela Universidade de Moscou — Anya Braginski, com pequenas notas aqui e ali provenientes da museóloga estadunidense (formada em Yale) Emily Jones.

~

Do outro lado do salão a funcionária chinesa (Seoglian?) explicava sobre os conjuntos de chá de barro do século IX e sobre a importância de se fazer chá neles continuamente (o que ela estava fazendo) para que o barro não ressecasse e quebrasse. Ao lado de Emily, Anya esperava, imóvel, as mãos entrelaçadas em frente ao corpo. O braço direito de uma encostava no esquerdo da outra. Era profundamente reconfortante, a voz de Seoglian e as histórias de antigas vilas chinesas em suas cerimônias de chá. E a presença silenciosa de Anya. Sempre Anya.

— A gente podia ir naquele concerto de piano. Eles vão tocar composições de Rachmaninoff‎. — a voz dela soou vaga e baixa, os olhos perdidos na figura atlética da colega de trabalho chinesa.

— Vamos, então.

— Vamos? — os olhos dela se viraram surpresos em sua direção.

— Vamos. Vamos assistir esse concerto. — sorriu. — Vai ser legal.

Anya riu, se inclinou e beijou a bochecha de Emily, que corou, o cabelo loiro encaracolado como uma cortina que lhe escondia dos olhos violetas.

— Vamos logo. Vamos deixar Seoglian e seus bules.

(naquela noite, Emily pensou entender quando sua irmã dizia que quando a gente ama muito alguém, de verdade, ama tanto que pensa que poderia explodir. No concerto, os olhos violetas de Anya brilhantes, Emily notou: ela a amava tanto, tanto, que pensava que poderia explodir.)


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

então, eu escolhi a profissão de museóloga. um museólogo é uma pessoa que trabalha em museus e/ou galerias de arte, coisas assim. também são conhecidos (mais popularmente) como curadores. (para mais informações: assistam caçadores de obras primas) sim, existe uma faculdade para isso! mas uma vez conheci uma funcionária de museu que fazia as mesmas funções de uma museóloga, mas era formada em história, então imagino que dependendo do setor do museu seja mais flexível??? o fato é, não sei se tem museologia na rússia, mas eu sei que tem aqui no brasil, inclusive no meu estado, então supus que teria por lá também. as funções de um museólogo são muito, muito amplas, e dependem muito do setor em que ele decidir trabalhar; ambas as minhas protagonistas trabalham com arte, em sua maioria, moderna, e num museu, então suas funções são basicamente as descritas nessa fic. mas a profissão vai muito além, isso aqui é só uma amostra grátis!!! tbh, uma profissão tão complexa merece até mesmo uma long fic para ser descrita em sua totalidade, mas chega de falatório. é isso aí.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os olhos de Vênus" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.