Noites de Um Século escrita por Dead Coyote


Capítulo 1
Capítulo 1 - Encontro




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1-         Encontro

É uma madrugada fria, pouco iluminada pela lua minguante, solitária no céu pouco estrelado. O vento assovia carregando consigo o sereno, cujas gotículas são flechas atingindo continuamente o rosto pálido e os cabelos vermelhos de Patric. Ele percorre as ruelas escuras da cidadela que dorme num silêncio solene, deixando atrás de si o velho Teatro Central, há pouco reformado, onde nas madrugadas de quinta apresentam antigas óperas. O homem alto, vinte e seis anos, rosto fino no qual brilhavam tristes os olhos castanhos, caminhava quase que instintivamente em direção a uma casa discreta atrás de uma varanda e jardim mal cuidados, a tinta num tom rosado aproximando do laranja começava a descascar expondo a massa esbranquiçada. Não percebia o vulto a sua espera no beco mais adiante, pouco antes de seu destino. E mesmo que percebesse o ser entre as sombras que o espreita desde que cruzou aquela esquina escura ao sair do teatro, provavelmente não o daria maior importância. De cabeça baixa, a gola do grosso casaco levantada para tentar proteger o pescoço do frio, caminha penosamente.

Seus passos demorados, porém calmos, são bruscamente interrompidos por um forte solavanco para frente. Era como se estivesse sendo sugado e jogado de um lado para o outro por um forte vento. Enxergava apenas manchas em tons escuros passando rápidas em sua frente. Quando, segundos depois, consegue se equilibrar novamente, pondo-se em pé, sentindo o corpo ser preso por braços fortes que o envolvem impedindo seus movimentos. Lábios frios aproximam-se de seu pescoço, abaixando a gola do casaco para tocá-lo com presas finas e umidamente geladas. Estava dentro de um beco escuro que sempre ignorara existir em seu caminho para casa, entulhos de todos os tipos enchiam o lugar dando a impressão de ser ainda mais apertado e sujo. Permaneceu imóvel, tanto pela pressão imposta por seu agressor como também pelo susto não o permitir nenhuma reação instantânea, imobilizando-o. Sentia os lábios percorrerem a extensão de seu pescoço, aproximando-se de sua orelha, sussurrando em meio à respiração fria e quase inexistente.

“Calma, tenha calma. Não irá doer se você não reagir. Isso logo acabará.” a voz era rouca, porém firme, apaixonante e convincente. Não, não conseguiria reagir.

Sentia os lábios descerem novamente abrindo-se em seu pescoço, o hálito úmido provocando calafrios por seu corpo. Então sua pele foi rasgada por presas longas e afiadas num golpe preciso e decidido. Seu sangue saindo devagar pelo corte, e com ele sua vida ia sendo sugada por aqueles lábios, que não se distanciavam da ferida que provocara e pela qual alimentava-se prazerosamente. Patric estava consciente de tudo, alguma certeza dentro de si o dizia que ainda não era sua hora, que deveria livrar-se daquilo de cabeça erguida, estava estranhamente calmo.

“Antes eu admirava muito vocês...” foi o que seus lábios pronunciaram em voz completamente racional.

Tudo aconteceu em questão de segundos. Estava caminhando na calçada, a caminho da velha casa e no momento seguinte estava no fundo de um beco ao qual nunca dera importância. Alguém o segurava pelas costas, sugando seu sangue, prestes a matá-lo. Mas ele não tinha medo, por algum motivo não conseguia sentir medo. Seu agressor parara de sugá-lo, mas permanecia com os lábios grudados em seu pescoço, ouvindo, esperando.

“Admirava-os sim, e há exatamente um mês passei a odiar todos vocês, VAMPIROS! Malditos bebedores de sangue...”.

“Não é assim que uma vítima deve se postar.” o vampiro afasta-se, jogando Patric para frente. Encarava-o com um olhar frio, os olhos reluzindo à pouca luz da noite, como se fossem duas chamas pálidas naquela forma encoberta pelas sombras. Os olhos e a voz misturando ironia e raiva, escondendo no fundo uma pitada de curiosidade. “O que está resmungando aí? O que aconteceu há um mês?”

“E o que lhe importa? Não sou sua vítima? Mate-me, pois é isso que lhe interessa no momento!”

“O que me interessa no momento?... Sim, deveria matá-lo, talvez fosse isso que iria fazer, deveria fazer.” o vampiro finge pensar dedicadamente o assunto, os lábios debochando num sorriso imperceptível. “Mas me interesso também por histórias... Isso, gosto de histórias! E você parece ter uma boa pra me contar. Diga, por que nos odeia tanto? Como sabe de nossa existência?” andava de um lado para o outro, sem desviar os olhos de sua vítima. Parava de costas para a saída do beco. A lua alta jogava contra sua silhueta uma luz pálida, tornando visível seu contorno. O rosto e a mão muito brancos, quase luminosos, porém permitia-se notar que quando fora humano tinha a pele um pouco morena. Os cabelos negros e lisos caiam em desalinho sobre os ombros largos. Aparentava-se muito jovem, pelo menos o devia ser quando se tornou vampiro. O rosto era apenas uma sombra negra contra as lamparinas da rua às costas.

“Morta, sem nenhuma gota de sangue no corpo. ‘Morte por hemorragia durante a noite’ concluíram espertamente os médicos. Mas então cadê todo o sangue dela? Cadê?” a voz aumentando, quase gritava. “Eu sei que foram vocês! Já li a seu respeito! Eu sei que foi você, um de vocês que a matou! A ela e tantos outros nas estradas próximas!”

“‘Ela’ quem? De quem está falando?” O vampiro estava sério, realmente interessado.

“Minha mãe...” o homem abaixa a cabeça, aparentemente tentava conter as lágrimas, mas não, lutava contra a raiva dentro de si, esforçando-se para manter a voz baixa e calma.

Mantiveram-se em silencio.

“Scarlet... no jardim aos fundos da casa pêssego no fim da rua... certo?” indagara o vampiro, agora de costas para sua vítima, observava a lua ser escondida delas nuvens. Nenhum pesar em sua voz, apesar de parecer esforçar-se um pouco para dar algum sentimento àquelas palavras. Em vão. Não se preocupava.

O ruivo não disse nada. Apenas suspirou pesadamente, deixava claro não conseguir conter a raiva contra a qual não lutava mais.

“Desculpe-me, mas tem que ser assim... não gosto de escolher muito minhas vítimas, é quase impossível matar alguém que não deixará algum pesar ou marcas quando se for... mas realmente me encantei com ela. Uma mulher forte. Lutou bravamente pela vida. Seu coração teimoso, pude sentir, como me deu prazer sugar aquele vida!”

 Tudo aquilo que o vampiro dizia parecia insensato, impossível. Mesmo o próprio vampiro a sua frente parecia irreal, como se tudo não passasse de um teatro e a vítima de quem ele falava era apenas um personagem secundário. E Patric assistia a toda aquela encenação quase sem se dar conta que era um dos atores, e que naquele momento discutia com o ser sobrenatural, o vampiro que matara a sua mãe. Estava completamente interessado na cena que se passava a sua frente de modo que a sua razão não o impedia de desejar mais daquela realidade teatral e daquele homem pálido, quase reluzindo à luz opaca da noite. Queria ouvir mais, cada palavra pronunciada ele absorvia com notável atenção sem mesmo entender o porquê, parecendo estar hipnotizado. Ouvia.

“Tirei-lhe algo de insubstituível valor. Sei quanto dói uma perda assim...”

“Não! Não sabe! É impossível que você saiba o que é perder...”

“Perder a mãe?!” o vampiro demonstrou uma entonação de algo próximo da raiva em sua voz, mas não se exaltou. “Acha que só porque sou um vampiro não possuo sentimentos? Que em algum momento não fui humano? Também perdi minha mãe para um vampiro. Conheço a sua dor!”

Silêncio. Encaravam-se como se travassem ferozmente uma disputa com os olhos. Por instantes permaneceram assim, sem palavras. Patric moveu os lábios como se quisesse dizer algo, não o fez. Então o vampiro suspirou, quase inaudível, os olhos negros demonstravam nesse momento um pouco de dúvida que um humano nunca poderia perceber, e prosseguiu retomando o ar superior e calmamente sobrenatural de antes.

“Mas a sua vida continua. Compreendo o que lhe causei. Deveria tê-lo matado sem dar atenção às suas palavras, mas agora não posso mais fazê-lo, sinto-me forçado a pagar-lhe pelo que cometi. Entretanto devo-lhe muito mais do que posso lhe dar. Apenas viva... e esqueça nossa existência.”

Afastou-se devagar dando as costas ao homem que ali permanecia... E desapareceu nas sombras do fundo do beco em meio aos entulhos.

Patric não se moveu ainda por um longo instante, como se estivesse anestesiado por aquela conversa, aquele encontro. Sentia-se tonto. Reparou no beco que o cercava, suas sombras. De repente volta a si de sobressalto. Dera-se conta do que ocorreu e seguiu apressado para o breu ao fundo onde o vampiro sumiu de vista. Encontrou ali uma pequena porta enferrujada e escurecida pelo tempo ou por uma pintura velha que dava para um porão abandonado. Estava completamente escuro e Patric não conseguia enxergar nem sequer os degraus da escada estreita, mesmo assim desceu, mas nada encontrou lá embaixo, com aquela escuridão seria impossível encontrar alguma pista do vampiro. Se ele era real.

Retornou a superfície da rua e ao abrir a porta seu rosto foi tocado por uma luz dourada e tímida. Estava amanhecendo, e estava vivo. Mais um dia nascia para sua vida comum e humana gastar-se em seus afazeres. Só então se lembrou que foi mordido e levou a mão direita ao pescoço, verificando ali a ferida que já começava a estancar e constatando que perdeu um pouco de sangue. Algo mudara fazendo surgir dentro dele um estranho desejo. Um extremo desejo que ansiava pela noite seguinte.


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