Distúrbios. escrita por Padecida


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você." - Friedrich Nietzsche



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/551270/chapter/1

0


– Papai, o senhor conta uma história para eu dormir?

O homem terminava de cobrir o seu pequeno filho com o lençol rendado e colorido, o favorito dele por ter sido mamãe que costurou com tanto amor. Talvez seja por isso que as linhas estavam tortas e os pedaços de tecido parecessem colados uns nos outros, mas o menino continua a achar uma demonstração de carinho bem bonita.

O quarto em que eles estavam era empoeirado, tendo nele poucos brinquedos ao longo do chão. Bolas de gude, cavalo de madeira, um baralho espalhado... Coisas que recebiam atenção por menos de trinta segundos ou serviam de contexto para as brincadeiras mais legais: aquelas com os amigos imaginários, algo saudável para crianças de sete anos. Esses amigos ficavam numa caixa de sapatos, a que o menino abraçava com tanto afinco, rabiscada de carvão.

Papai olhou para o menino. Um dia puxado no trabalho, mas nada substitui o sorriso do que continuaria o reinado da família Collins nas belas artes.

– Claro. E qual história o nobre cavaleiro deseja ouvir?

– A da caixa - falou. Os dois dentes de leite formaram uma janelinha no sorriso animado, papai tinha a impressão que uma hora ou outra veria algo acenar por ali. Papai afastou o pensamento.

Em resposta ao silêncio, o menino abraçou ainda mais o pedaço de papelão mais amado do universo.

– Já é a quinta vez que conto essa história, tem certeza de que não quer outra?

– Não. Quero a história da caixa - dava para enxergar em seus olhos infantis a curiosidade incessante.

– Muito bem.

Papai coçou a garganta como um verdadeiro narrador. Parecia que esse som era a palavra mágica que o transportava para fora do quarto, rumo a um destino incerto repleto de confidências. Onde as pessoas podem ser quem elas querem ser e onde o menino se sentia aceito perante a humanidade. Gosta de pensar que é um mundo numa incubadora e que um dia ele deixará de ser imaginário e estará por aí. Com as pessoas felizes. Por isso, cuidava para os seus bichinhos não fugirem.

– Era uma vez, um vilarejo feio onde ninguém sorria, nenhuma esperança surgia e nada florescia. Sabe o porquê? - O menino negou, mesmo sabendo a resposta. A dúvida faz parte da magia de um conto. - Porque monstros malvados faziam brincadeiras de mau gosto com as pessoas.

– Como o quê?

– Ah, muitas coisas, não dá nem para listar! Derrubavam comida de mendigos, faziam coisas feias com as mulheres e até mudavam a hora dos sinos da Igreja! Só que no meio do caos nasceu um menino. Esse capaz de fazer o que ninguém jamais fez: conviver com os monstros todos os dias, todas as horas. Afinal, um cego só sabe como é ruim ser cego caso veja algum dia. Foi o que aconteceu com o menino. Desde pequeno, vivia com os monstrinhos e tudo mais. Eles presos numa caixa de sapatos e o menino como o protetor dela.

– Que nem a caixa dos tamancos de mamãe?

– Sim - pegou a lamparina. Aos poucos, o mundo voltava a ser o mundo. Papai continuou.

– O vilarejo viveu feliz para sempre, graças ao menininho mágico que resolveu lidar com as coisas ruins. O menino também vive feliz, só que passaram a pregar peças na cabeça desmiolada dele. Por isso, ficou meio tantãn e fim.

Um breve silêncio, papai aguardava o sorriso aparecer no rosto do filho. Nada. O que apareceu foi uma pergunta que fez o homem levantar as sobrancelhas.

– E por que ainda existem as coisas ruins se elas estão na caixa?

– Bem... Porque há monstros em tudo que é canto. Se o garoto prendeu os piores e acontece tanta coisa ruim, pense só o que aconteceria se eles quebrassem a fechadura.

Respondeu com um breve "ah...". Papai deu-lhe um beijo na testa. Aquele garoto era o que mais importava para ele, apesar de suas peculiaridades. Não aguentou de emoção e o abraçou.

– Boa noite.

– Ei.

– Hm.

– Papai...

– Diga.

– Meus bichinhos pediram pra dizer que eles estão aqui - sussurrou, como um verdadeiro espião militar.

O coração de Frank Collins parou por breves três segundos.Uma mudança de clima fez com que congelasse do topo da cabeça à ponta dos dedos do pé.

– Do quê você está falando?

– Meus bichinhos - pôs a mão na caixa, afagando-a como a cabeça de um cachorro - aqueles. Estão aqui.

O homem, agora trêmulo, saiu do abraço e olhou para a parede iluminada pela fraca chama da lamparina. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... Sete sombras. Silhuetas de gente, gente talvez de verdade, num compartilhamento de pernas e braços que assimilava a aparência a de uma besta satânica. O homem olhou novamente para o menino, que respondeu como se entendesse a língua esquecida dos monstros:

– Eles estão debaixo da cama - disse, com a voz mais atenciosa, sem saber muito bem o que estava dizendo ou o que esperava dele.

Frank pediu silêncio ao mover o indicador contra os lábios. O menino ouvia múltiplas respirações, o ranger da cama... Eles estranharam o silêncio.

Sr. Collins abriu a gaveta do criado-mudo. Pegou devagar um dos bonecos do menino e arrancou a cabeça. Havia uma estaca de madeira que servia como coluna vertebral da boneca, para fazê-la sentar. Papai era o seu herói. Demorou para perceber, porque a cara de papai estava esquisita. Entendeu o incrível plano elaborado por ele em uma só sacada: ele usaria a estaca como um ossinho e brincaria com os bichinhos. Assim, estariam mais calmos, dormiriam e ele poderia dormir em paz.

Só que a estaca apontava para o seu filhinho.

– Papai?

As sombras ficaram imóveis. O menino enxergava dentro da cabeça a escuridão do lugar onde estavam e os sorrisos de escárnio. Abraão segurou o pescoço de Isaac numa tragédia contemporânea. Não passava de um cordeiro assustado pronto para o sacrifício em nome de um Deus sem rosto. A mão esquerda do adulto estava trêmula, apontando a cabeça do boneco contra sua garganta. Dizia baixo:

– A humanidade depende disso, entende? - Despiu-se a imagem de pintor de coração polido e surgia a imagem do que ele é. - Você é uma caixa frágil, muito frágil, daquelas feitas de papel. É só forçarem a fechadura, um tiquinho de nada, ePOW– fez um buraco na cama com a estaca a um dedo do rosto do menino - eles saem. Nossa família depende disso... Minha conta bancária depende disso!

Tirou a estaca, mirou no pescoço do garoto e desceu, o mais rápido que conseguia, pondo toda a sua força.

Repentinamente, braços decrépitos de cor de giz puxou pela perna. Largou a arma no chão. Ele gritava por socorro. O menino apenas contemplava como a terceira pessoa de um sonho. É só um sonho ruim. Um pesadelo. Não teve coragem de ir debaixo da cama para salvar a vida do papai.

Ouviu os gritos, o barulho de carne amassada, ossos quebrados, socorros,não!s, clemência. Tampou os ouvidos, e os barulhos não cessavam, eram ecos vindos de lá do fundo de sua cabeça. Nesse lugar, sentia prazer de imaginar a carne daquele papai malvado. Seria bom soltar os monstrinhos só para eles comerem a carne, não é? Eles devem estar com tanta fome. Como é bom saber que a justiça estava sendo feita, olho por olhos, dente por língua.

Começou a chorar, o nariz já entupia. Responsabilidade demais para uma pessoa que nem sabe tomar banho sozinho direito. Pelo menos, os gritos viravam uivos e de uivos grunhidos. Parte da agonia acabou. Os sete monstros valsavam entre as entranhas dilaceradas.

O barulho cessou em um único segundo. O menino, deitado de barriga para cima, tinha medo de desviar a atenção do teto para o chão.

Não aguentou. Olhou para o chão, o pequeno inferno, por um reflexo involuntário, precisava mensurar o estrago. Ao redor da cama, uma mar de sangue. De onde viu, a cabeça de seu pai fincada no chão, brotando da boca o rosto rubro do boneco. Não quis ver o resto do corpo, olhou novamente para o teto. Entendeu, com a pouca idade que tinha, que papai foi embora. Não chorou. Encarava o teto, cansado.

(Poderia apagar a luz, pequeno?) Pediu um dos sete. Larry soprou a vela. Foi assim que a sua vida tornou-se um eterno breu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Enfim... Aí está um capítulo e espero que gostem.Deixem comentários, por favor... Façam uma autora feliz.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Distúrbios." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.