Os Demônios de Mara escrita por Clementine


Capítulo 1
Capítulo 1




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Olho minha fraca imagem no vidro, um reflexo que nunca ficaria visível para os outros, assim como eu, meus ossos miúdos, meus cabelos brancos e minhas asas celestiais.
Os humanos não podem me ver.
Observo meus olhos claros, meus cabelos dourados, e minha pele que é tão branca quanto a neve, e depois, foco minha visão na mulher além do vidro, do outro lado.
Ela esta chorando.
Assisto do lado de fora ela gemer. Ela esta jogada em sua maca em um quarto de hospital e grita e chora tanto que eu queria poder ajuda-la, mas não posso.
Estou ali por outro motivo.
Aquela mulher a minha frente não esta machucada, ela esta dando a luz.
Ignoro o sangue em todo o lugar e espero pela chegada de seu filho. Quando ele vem, e a mulher o segura, ela não sabe o que esperar quando seu bebe não chora.
Ela não sabe o que esta acontecendo.
Eu sei.
Quando os médicos se apressam para tentar salvar o bebe, eles não sabem se vão conseguir. Não sabe se o bebe vai voltar a respirar e se suas batidas e seu prematuro pulmão fraco vai voltar a funcionar direito. Eles não sabem de nada.
Eu desejaria não saber.
Eu, Mara, um anjo celestial foi encaminhado para buscar aquele bebe hoje. Essa é a minha missão. Daqui a alguns segundos o seu pequeno coração vai parar de fazer seu trabalho e então – só então – eu poderei busca-lo.
O choro e o desespero envolvem todos na sala, médicos saindo e entrando, enfermeiras que tentam manter a calma e a mãe, oh, sua mãe esta tão nervosa e entorpecida que não consegue nem mesmo chorar.
É por isso que a maioria dos anjos evita hospitais.
Eles preferem ir à leitos com famílias em volta, onde já esperam por isso. Pegar pessoas com nomes, com histórias, para contemplarem satisfeitos a vida feliz, pura e digna do Senhor que aquelas almas viveram.
Sempre acabam deixando os bebes para mim.
Veja, a maioria deles não tem nome, e chora muito ao ser carregado para longe. Eles se apertam tanto a mãe e a mãe a eles que quase tenho que arranca-los. Carrego-os em meus braços, um de cada vez, e eles finalmente param de chorar. Eu levo suas almas e tento não pensar na mãe chorando que deixei para trás.
Quando aquele bebe morre em meio a tanto a desespero, quando não conseguem salva-lo, eu me aproximo.
Tenho de leva-lo agora.
– Esta tudo bem – Seu corpo esta parado, morto, mas sua alma ainda se move, e chora muito devagar. Eu chego até ele, o encaixo em meu colo e sussurro muito baixinho:
– Vai ficar tudo bem, esta tudo bem. Estou com você – Eu canto palavras de conforto, e não dou uma ultima olhada no quarto. Não quero ver, não quero ter que presenciar aquela dor.
Tento me lembrar de que a culpa não foi minha, e que aquele bebe que agora jaz em meus braços não chora mais, e que ele vai ir para um lugar melhor. E um dia verá sua mãe – aquela mulher descabelada e morena na cama, histérica e soluçando – outra vez.
Mas só se ela for boa também.
E eu meio que vi que ela não foi.
A morte, para nós anjos, não é algo triste. É algo natural. E chega a ser gratificante poder ser um daqueles que conduz as boas almas para um lugar seguro. Mas eu nunca consigo deixar de ouvir os corações de quem ficou para trás se partindo e estilhaçando em milhões de pequenos pedaços que nunca serei capaz de grudar. Almas partidas que eu nunca vou poder salvar.
Estou carregando seus filhos, seus avós, seus irmãos e irmãs, suas mães e pais para longe deles. Estou deixando alguém sem um membro da família, sem um amigo, sem um irmão.
Estou deixando aquela mãe sem seu filho.
Agarro-me a aquela criança, ninando-a em meus braços enquanto ando para longe daquele quarto, para longe dos gritos. Pela primeira vez, paro um segundo para observar o bebe. Suas feições são leves, e ele não é nada mais do que um recém nascido. Seus olhos mal se abrem.
Eu sei que eu deveria ir direto para o céu agora. Sei que eu devo deixar aquela alma tão frágil em um lugar seguro o mais rápido possível, porque aqui não é. Assim como anjos, os demônios também habitam esse plano, e eles ficariam mais do que satisfeitos em pegar almas tão puras e indefesas como bebes assim. Fariam sem dó alguma e na primeira chance que tiverem.
Estou ciente desse risco, estou ciente de que estou prestes a fazer algo que não deveria estar fazendo. Algo que vai contra tudo o que me disseram.
Mas não posso evitar.
Volto pelos corredores quase que correndo em direção ao quarto da mãe daquele bebe que seguro nos braços. Corro o mais rápido que posso, uma coisa que eu não estou acostumada, uma vez que uso minhas asas para quase tudo.
O céu não possui chão para que haja um inferno enterrado embaixo. Todas as criaturas lá flutuam sobre o ar e a névoa branca.
Ali, eu ainda possuo asas, mas elas não funcionam. Posso movimenta-las, mas na Terra, nos corredores daquele hospital, eu sou um anjo incapaz de voar.
Quando finalmente alcanço o quarto, desacelero. Meu peito esta doendo, minha respiração ofegante.
Posso ver agora a sua mãe de novo. Não tinha reparado da primeira vez como ela era bonita. Seus cabelos pretos estão bagunçados e ela esta chorando, gritando, esperneando por seu filho.
– Quero meu bebe – Ela diz – Quero meu pequeno Mason.
Mason.
Então esse é o nome da criança em meus braços.
A mulher chora pelo filho que estou levando embora.

A maioria das pessoas acha que não tem nada de ruim em ser um anjo, mas ali esta: Todas as criaturas carregam um pequeno inferno dentro delas.
As pessoas que deixei para trás são o meu.

– Ficará tudo bem - Eu grito promessas vazias mesmo que ela não possa me ouvir. Preciso fazer alguma coisa. Preciso salva-la porque me rasga de dentro para fora ver ela chorando. Preciso correr e devolver seu filho mesmo que isso seja impossível.
Eu preciso... Preciso ir embora.

Assim que saio de seu quarto, eu volto novamente pelos corredores. A alma de bebe em meu colo agora chora com seus pequenos pulmões que não funcionam mais e eu o aninho melhor até ele parar.
Envolvo-o com a minha aura celestial e calma. Estou pronta para ir embora.
Fecho os olhos e concentro-me na luz. Brilhante e real, descendo do céu para funcionar como um portal entre eu e o outro mundo. Concentro-me concentro-me concentro-me por muito tempo mas nada acontece.
Quando abro meus olhos sei o porque.
Bem ali, se espreitando na curva, esta um demônio escondido. Quando eu finalmente o vejo, ele sorri para mim com dentes de marfim e muito muito muito baixinho que mal consigo ouvir, ele sussurra.
Tarde demais – Ele diz.
O bebe começa a chorar. Ele chora tanto que se os vivos pudessem escutar o apelo que os mortos fazem, cada ser nesse hospital estaria vindo socorrer a pequena alma em meus braços.
Mas eles não podem ouvir e portanto, não podem me ajudar.
Mara sua estúpida estúpida menina estúpida. Não deveria ter voltado, não deveria. Sabia disso.
Mas eu precisava.
Eu voltei pela mãe que chorava. Voltei por ela.
Voltei porque queria saber o nome do bebe, queria saber de onde veio, queria ver a humanidade, a dor e o sofrimento que a morte leva e trás leva e trás e sinto que de algum modo, a culpa de tudo isso é minha.
Voltei porque queria saber a história de Mason pois não me lembro da minha.
Não sei quem eram meus pais, não sei se tinha irmãos, não me lembro de meu sobrenome nem do tipo de pessoa que eu costumava ser. Não me lembro de nada.
E agora Mason e eu vamos morrer uma segunda vez por isso.
Por causa da minha bagunça interior, da minha desordem, da minha vontade pecaminosa de saber mais do que o Senhor permitiu que eu soubesse.
Mas não sem lutar.


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Notas finais do capítulo

É minha primeira fanfic, então por favor, sintam-se livres pra comentar qualquer coisa. Qualquer critica é bem vinda.



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