Era Uma Vez Eu escrita por Fernando Cabral


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/549670/chapter/1

Era uma vez eu.

Eu morava em um lugar isolado de qualquer urbanização. Antes de eu e meus vizinhos irmos morar lá, nenhum homem havia pisado naquela terra. Pelo menos nenhum homem urbano. Se algum índio ou povo mais antigo visitou o lugar, não tínhamos como saber.

Fomos atraídos até lá com ganância em extrair da terra materiais preciosos, e assim que adquiríssemos uma quantia razoável do produto, voltaríamos à cidade e viveríamos como ricos.

Alguma coisa até achamos, mas nada comparado ao que sonhávamos. Acabamos ficando presos ao lugar, fosse por falta de dinheiro para poder voltar à nossa cidade, fosse pelo conformismo.

Começamos então a nos especializar em áreas como o plantio, a pesca, a caça, e todas as outras habilidades ligadas à floresta. A aldeia se desenvolveu um pouco. Melhoramos nossas barracas, transformando-as em precários casebres, e tivemos filhos. Não eu, aliás. Para mim ainda era cedo demais para pensar em sustentar mais uma boca.

A aldeia aumentou. Os filhos cresceram, casaram, e casas novas foram sendo adicionadas às antigas. Logo outras casas surgiram, um pouco destacadas da aldeia, e assim por diante, até chegar ao ponto de nem todo mundo ali se conhecer. Tinha gente que já morava bem mais adentro na floresta.

Quando eu já tinha idade suficiente para colecionar alguns fios brancos sobre a cabeça, resolvi começar a pegar mais leve no trabalho e ficar com um pouco mais de tempo livre. Todo dia, ao amanhecer, ia para a beira de um lago não muito distante da minha nova casa, que era um pouco isolada da minha aldeia de origem. Assistia ao céu clarear, sentado na minha cadeira de madeira e palha, fumando cachimbo. Era uma das coisas que haviam me deixado mais feliz na vida. A paisagem era encantadora, mesmo para quem tinha passado a maior parte da existência dentro de uma floresta. Um lago profundo, cercado por árvores altíssimas, tendo acima o céu rosado do começo da manhã. A coisa que mais me encantava ali era uma pequena ilha no centro do lago, onde se encontravam arbustos e árvores idênticas às que ficavam ao seu redor. As árvores, muito juntas, não permitiam ver o outro lado da margem do lago, nem mostravam o que havia no centro da ilhota, que ficava sempre no breu.

Numa dessas minhas idas ao lago, percebi que não estava sozinho. A uma distância razoável havia outro homem, aparentemente mais novo que eu, minha vista não me dava muitos detalhes. Ele parecia não me ver, mas não posso dar certeza nisso também. Observei o indivíduo por alguns instantes, e logo perdi o interesse por ele. Era apenas mais uma pessoa que talvez tivesse percebido que aquele lugar tinha algo especial, e eu nunca tinha mesmo visto o lago como uma propriedade minha.

O que despertou minha atenção novamente foi eu perceber, de alguma forma, que o homem também possuía bastante interesse pela ilhota no centro do lago. Decidi me aproximar para trocar uma ideia com a pessoa que dividia os mesmo encantos que eu. Ele não percebeu que me aproximava e descobri o porquê.

O reflexo dos troncos das compridas árvores que havia na ilha vinha diretamente em sua direção. Enquanto eu caminhava, e sem que percebesse de início, o reflexo tomou propriedades sólidas, formando um estreito caminho até a ilha. O homem, tomando ciência do ocorrido, teve um leve sobressalto, o que me deixou curioso, fazendo com que então percebesse o ocorrido. Veja bem, nós, ali, no meio de uma grande floresta, estávamos acostumados à crendices e a causos estranhos. Vivíamos contando aos outros e a nossos filhos histórias com criaturas inumanas e protetoras da floresta. Qualquer acontecimento com o menor aspecto fora do nosso comum era porta para uma nova lenda, um novo ser, um novo temor ou uma nova bênção protetora, e isso fez com que eu não me assustasse tanto ao presenciar tal cena. O outro homem, que, mais próximo, percebi que não conhecia, também não teve muito temor sobre o acontecido. Começou a caminhar pela passagem magicamente formada, chegando à entrada da ilhota no meio do lago. Assim que pisou os pés sobre a primeira camada de grama do local, o estreito caminho sobre a água voltou a ser reflexo. O homem não olhou para trás, e adentrou no breu da pequena ilha. Passei horas esperando que voltasse, mas não voltou.

Com medo de ser visto como louco, retornei à minha casa e contei apenas para minha esposa, que já se encontrava preocupada com a minha demora. Preocupação essa que não diminuiu depois da minha história. Ela disse que não sabia com o que se preocupava mais: com a minha sanidade mental ou com os perigos da mata. Acabou por ficar apenas preocupada, mesmo. Tentando acalmá-la, pedi para que deixasse isso de lado, que caso o homem não voltasse à própria casa alguém daria por sua falta e logo a notícia se espalharia pela vizinhança.

Não deu outra.

No dia seguinte, toda a aldeia falava no desaparecimento do homem, e suposições já tinham sido criadas, mas nenhuma que se aproximasse do que vi. Minha esposa, que só ficou mais preocupada, me convenceu a contar à família do desaparecido o que tinha presenciado. A contragosto fui, e, é claro, os familiares não acreditaram na minha história, diminuindo, ainda por cima, a minha credibilidade na aldeia, com mexericos sobre minha saúde mental. Não me importei muito, e voltei a me recluir em minha casa, com minha esposa e meus afazeres, mas sem deixar de visitar o lago em nenhum dia. Não passei a temer o lugar, pelo contrário, adquiri nova paixão, somando o mistério da paisagem com a esperança pela volta do aldeão perdido.

Passei então a me sentar no lugar de onde o homem tinha partido, e percebi que, com o passar dos meses, o reflexo mudava de lugar, seguindo sempre para minha direita, como um ponteiro solitário de um relógio que girava ao contrário. Com os meses, também vi mais dois desaparecimentos: uma mulher que não conhecia e um homem que costumava ser meu amigo e estava à beira da morte da última vez que tinha ouvido falar dele. Sobre esses outros casos, não contei nem à minha esposa, evitando assim mais gracinhas direcionadas a mim. Percebi que as crianças passaram a me temer, emborasempre rissem de mim quando eu virava as costas.

Ao longo dos anos, vi muitas pessoas da aldeia andarem até a ilha, mas nunca consegui ir eu mesmo até lá. Acabei então aceitando minha sina de observador, e nunca deixei de chegar na beira do lago todo dia à alvorada.

Somente quando senti minhas forças me deixando, minha mente cada vez mais fraca, e quando minha esposa também desapareceu, que fui convidado pela ilha.

Estava em mais um dia de vigília matinal quando percebi que o reflexo chegava a meus pés. Ele se solidificou assim que o notei. Foi nesse momento que percebi que minha hora havia chegado. Estava no meu momento de encontrar os outros aldeões e minha esposa, num lugar diferente, talvez melhor, onde habitavam todas as criaturas das quais falávamos. Segui o caminho, sentindo o peito apertar; minha respiração ficou desigual e começou a falhar. Estava chorando ao pisar na ilha e adentrar o breu, mas sentia que, finalmente, depois de toda uma vida, estava chegando no meu lugar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Era Uma Vez Eu" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.