Flores, Vodka e Cigarros - One Shot escrita por Miss Pepper


Capítulo 1
A Simples Ideia de Estar Viva


Notas iniciais do capítulo

Oie :)


Essa é a história da Calina, uma garota que, como a maioria de nós, tem muitas dúvidas sobre sua vida e sobre a felicidade. Espero que gostem de acompanhar a sua jornada.

Enjoy it ;)

Bjo bjo



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“Pelo reflexo do grande espelho do banheiro feminino, eu a via retocando o batom cor de cereja. Ela era toda perfeita, com os longos cabelos repicados, loiros com a ponta azul. Cantarolava a música que tocava alto na pista de dança. A fila para usar o banheiro andou um pouco, e então ela me flagrou através do espelho. Me olhou com seus enormes olhos jabuticaba, lambeu seu lábio inferior e sorriu. Um sorriso de lado, como se soubesse o que passava pela minha cabeça. Minhas bochechas começaram a arder. Ruborizei. Ajeitei meu cabelo e meu vestido. Ela falou algo para suas amigas e riu. Usava uma saia preta de pregas que deixava suas coxas grossas quase todas à vista. Guardou sua maquiagem na bolsa e veio até mim. Naquele momento, tudo à nossa volta desapareceu, a música parecia ter parado de tocar e as pessoas não existiam mais. Sua carne era quente e sua boca tinha gosto doce de qualquer veneno viciante e bala de menta. Por um momento minhas pernas ameaçaram não funcionar, minha voz sumiu. Ela apenas inclinou a cabeça e sorriu docemente, retribui o sorriso apertando sua cintura num abraço. Só conseguia me concentrar em seu olhar brilhante. Entregou-me um papel com o nome Calina e seu número de telefone, e saiu com suas amigas de volta para a pista de dança, deixando unicamente seu perfume de flores, vodca e cigarros para preencher o lugar.”

Meu nome é Calina, e essa é minha história...

Para mamãe e papai sou Lili, para meu namorado sou Cali, Lina para os melhores amigos e parentes, alguns me chamam de Ca, e para a maioria da massa desconhecida sou apenas Calina. Me chame como quiser.

Fiz dezessete anos no mês passado, foi uma superfesta, com DJs e tintas glow e luz negra para todo mundo. As luzes dançantes da pista pareciam se divertir tanto quanto os convidados. A decoração era cara, e as comidas, as melhores. A bebida era clandestina já que, segundo meus pais, ainda não posso beber. De presente (como se não bastasse a festa), meus pais me deram uma viagem para o Caribe, com direito a levar três amigas comigo. Ficamos no melhor resort hotel, e fomos nas baladas mais caras, tudo por conta deles. Não me permitiram levar Chris, meu namorado, à viagem, o que acatei na hora para evitar todo o discurso sobre não ser apropriado e eu ser muito nova.

Chris é o tipo perfeito, que todas as garotas querem. Tão perfeito que me deixa entediada. Ele está na faculdade, uma das mais caras do país, faz medicina, e parece sempre se gabar disso. Minha mãe vive dizendo que meu namorado está sempre na moda, e que eu deveria aprender com ele. Atualmente anda parecendo um rapaz de Londres. Vive com os cabelos morenos bagunçados, e com uma flanela por cima da camiseta com estampas grafitadas.

O sorriso perfeito de Chris me revolta, e sua voz sempre calma me deixa nervosa e impaciente. Mas amo suas tatuagens no braço, que vivem escondidas por causa dos meus pais e da sua profissão. Nós somos muito diferentes, e algumas vezes já percebi pessoas se perguntando o que ele está fazendo comigo. Na verdade, eu também me pergunto isso às vezes. Afinal não temos as mesmas ideologias, ambições e nossos gostos são completamente divergentes. Talvez o dinheiro compre amigos.

Não sei dizer se meus pais são realmente amorosos, ou só gostam de esbanjar. Deve ser os dois. Meu pai nunca esteve muito presente, saía cedo de casa e voltava tarde. Várias vezes passava os fins de semana fora em reuniões de negócio, ou pelo menos é o que ele diz. Estava sempre irritado com alguma coisa, e quase nunca sorria. Minha mãe parece ter superado a ausência do meu pai comprando para si roupas caras, mas sempre tenta me convencer de que o modo como ela vê as coisas é melhor. Eles não costumam ser carinhosos entre si. Pensando bem, acho que nunca os vi trocarem mais que meia dúzia de palavras.

Tenho olhos negros e cabelos castanhos ondulados com muito mais volume do que qualquer garota gostaria. Vivo no cabelereiro caro de meus pais por causa disso. Não tenho um corpo de modelo, e odeio educação física. Na verdade, não tenho nada de mais na minha aparência. Sou estudiosa, tiro as melhores notas e sempre fico bem classificada nos concursos. Sou nerd. Mas, sou rica, o que faz de mim uma menina popular. As garotas costumam vir em casa para tomar sol na piscina, e pegar roupas emprestadas do enorme closet no meu quarto. Na verdade, não gosto de metade dele.

Minha mãe adora comprar vestidos caros, roupas da moda e sapatos de salto alto. Vive dizendo que preciso me vestir melhor. Mas prefiro meu jeans surrado, meu all star sujo e o moletom velho que roubei do meu namorado. Quanto menos corpo aparecer, melhor. Tento me encaixar no mundo deles. Mas cansei das lojas caras com roupas feias, cansei das dietas sem graça, cansei da dor no pé quando uso salto alto, da desconfiança, das noites sem dormir e da sensação de coma que sinto todo dia. Toda manhã, ao acordar e olhar minha cara amassada no espelho, minhas unhas roídas e meu corpo baixo e gorducho de 65 quilos, me pergunto por que eu que devo me adaptar, e não eles? O que será que diriam se eu mostrasse esse lado para eles?

Naquela noite já não me sentia mais Calina. Acho que nunca me senti. Nunca fiz o que realmente queria ou o que tivesse vontade. Sempre fui muito os outros, e menos eu. Era como se eu estivesse meramente sonhando acordada, sem poder controlar minha vida. Minha cabeça doía. Decidi mudar. De vez. Não me importar com as consequências. Entrei no closet escuro, iluminado apenas pela luz difusa de meu abajur do outro lado do quarto, e parei em frente ao espelho, analisando minha figura desengonçada.

Começar a mudança pela roupa era uma ótima ideia. Vesti o salto fino que minha mãe irritantemente insistiu que eu comprasse ano passado, mas eu nunca havia usado, uma saia preta curta e colada e minha jaqueta de couro favorita. Investiguei cada canto à procura da menor bolsa que eu tivesse, não iria levar muita coisa além da minha identidade falsa, as chaves do carro dos meus pais e o maço de cigarros que compraria no bar da primeira esquina que passasse. Lembrei-me então, de pegar meu cartão de crédito. pegar meu cartão de crédito.

Por um momento vacilei, olhei distraída para o porta-retratos ao lado da minha cama, com uma foto do meu namorado me abraçando, e minha vida passou lentamente diante meus olhos. Me irritei novamente, senti meu corpo congelar e deixei cair descuidadamente meu celular no chão. Decidi, então, que não o levaria comigo.

Eram 2 horas da manhã e, exceto eu e algum bêbado na rua, todo o resto do mundo parecia dormir. Pela grande janela, era possível ver as luzes solitárias iluminando o caminho para um ou outro errante que voltava para casa. Aquela noite, como em muitas outras, a internet consumiu todo meu tempo de sono. Acho que me sentia à vontade naquela terra de ninguém. Gostava de ser a secreta Calina que existia em mim. Passava o tempo encontrando bandas novas, conhecendo pessoas e jogando rpgs online. Ali o mundo parecia meu, não haviam julgamentos ou críticas. As pessoas usavam contas falsas para serem verdadeiras, e, apesar das máscaras, todos sorriam. Não era preciso saber se as risadas eram honestas, elas estavam ali, e me confortavam. Mas o melhor, é que não era preciso contato físico. A distância me deixava mais segura, demonstrava que nenhum relacionamento era real.

Só era possível ouvir o silêncio chato e azucrinante no bairro quieto e seguro em que eu morava, tirando, é claro, o animado monólogo em que o bêbado se encontrava a poucos metros da janela do meu quarto. Olhei depressiva para o ambiente escuro, a cama estava impecavelmente arrumada, as paredes eram pintadas de um dissonante tom de lilás, e o quadro de fotos, com rostos que sabia que não sentiria saudades. Não foi difícil sair de casa e pegar o carro. Não que tivesse sido algo premeditado, foi só uma ideia louca de fugir, talvez eu só não estivesse pensando claramente. poucos metros da janela do meu quarto. Olhei depressiva para o ambiente escuro, a cama estava impecavelmente arrumada, as paredes eram pintadas de um dissonante tom de lilás, e o quadro de fotos, com rostos que sabia que não sentiria saudades. Não foi difícil sair de casa e pegar o carro. Não que tivesse sido algo premeditado, foi só uma ideia louca de fugir, talvez eu só não estivesse pensando claramente.

Apertei com força o volante do carro. Talvez meus pais achassem que fui sequestrada, como eles poderiam adivinhar que o anjinho deles sabia dirigir? Um sorriso de desprezo surgiu no canto de minha boca com o último pensamento. "Anjinho". Pensei de novo, rindo alto dessa vez. Tanto fazia na verdade, queria fingir que não me importava com eles. Olhei mais uma vez para a recente cicatriz no meu braço, e me xinguei em silêncio por ter sido tão fútil quanto eles. Mordi o lábio para conter a torrente de dor que me apertava a garganta. Então liguei o carro impacientemente e sai, com a promessa de que esqueceria tudo aquilo.

O cigarro tinha um gosto amargo e latejante, bem menos interessante e sensual do que eu imaginava. Mas após o primeiro e um copo de cerveja, não foi difícil fumar mais um. Deixei-me ficar sentada na calçada do bar, observando os homens alegres jogando sinuca e as risadas altas e estridentes de suas mulheres. Fiquei pensando onde deveria ir primeiro, resolvi entrar no carro e ir para a rua mais badalada da cidade.

A calçada estava tomada de jovens. Foi a primeira vez que vi algo assim. Sentei perto de um grupo de pessoas e tirei o terceiro cigarro da bolsa, olhando para todos os pequenos bandos que se formavam em um muito maior. Todos ali, muito diferentes entre si, mas ao mesmo tempo, tão parecidos. Pareciam estar conectados por seus sonhos, juventudes e desejos. Fiquei me perguntando se era ali onde eu deveria estar. Meus pais sempre criticaram essas pessoas, para eles, esse era o fim do mundo.

Uma menina do grupo ao lado a olhou espontaneamente e perguntou se eu poderia emprestar o isqueiro. Me olhou nos olhos, sem demonstrar medo ou nojo. Manteve o olhar e sorriu amigavelmente. A menina era de beleza comum, mas os dreads em sua cabeça me chamavam bastante a atenção. Fiquei observando curiosa, não sabia se olhava mais para a beleza singular que os dreads traziam para os olhos amendoados e a boca carnuda da garota, ou pro pequeno cigarro, bolado ali na hora. Devo ter olhado por muito tempo ou muito fixamente, pois ela olhou pra mim e sorriu perguntando se queria uma tragada.

Apenas sorri de volta animada, sem saber que outra reação eu poderia ter. “Não precisa ficar com medo menina, aqui ninguém morde, nem o cigarro.” Disse um menino da roda rindo. O garoto levantou-se e entregou o pequeno cigarro na minha mão, levantou uma sobrancelha em sinal de desafio. Eu ri sem graça, mas peguei o cigarro. Nunca recebi tal simpatia espontânea e desinteressada de ninguém, então resolvi entrar de uma vez na onda. E que onda...

Tudo a minha volta parecia mais lento. Menos meu coração, esse parecia mais acelerado. Senti meu corpo todo esquentar. Por um momento achei que ia desmaiar, mas essa sensação logo passou. Comecei a fantasiar imagens na fumaça que flutuava dançante no ar, ela parecia tão mágica, tudo estava numa boa. Comecei a perceber que gostava dos venenos mais loucos, que me faziam delirar por mais tempo. Quis gritar, mas contive minha loucura momentânea. Não sei por quanto tempo fiquei naquilo.

Quando me dei conta já estávamos na porta da balada com uma garrafa de vodca barata pela metade na mão, e eu estava bêbada. Pela primeira vez me vi realmente livre de qualquer responsabilidade, pra ser sincera, acho que só não ligava mais para elas.

A música não era diferente das baladas caras que eu estava acostumada a ir. A maioria eu conhecia. As mulheres usavam roupas curtíssimas e maquiagens fortes, que meus pais diziam que era coisa de mulheres da vida. Ignorei esse último pensamento. Fechei os olhos e dancei por não sei quantas músicas, perdi a conta, ou nem comecei a contar. Levantei a mão conforme comandavam algumas músicas, cantei e gritei. E então me cutucaram. “Vamos ao banheiro, Ca?” Não me lembrava de quando falei meu nome para eles, mas segui o grupo de meninas obedientemente.

O banheiro era escuro, e nem um pouco limpo. Elas abriram a bolsa, e logo percebi que não iriam utilizar o banheiro. Entrei em pânico, não sabia o que fazer. De onde eu vinha aquilo era tão errado. Mas, ao mesmo tempo, a oportunidade era tão singular que decidi experimentar. O pó branco já estava arrumado no cartão de credito de uma delas, e a outra me passou uma nota. “Você sabe como fazer?” Eu sempre aprendi rápido. Saímos do banheiro, e eu via o mundo de outra forma. Aceleraram a cena, ou que estava acelerada? Já não me sentia mais bêbada. Agora eu estava totalmente ciente do que fazia, mas não conseguia parar quieta. Resolvi que continuar dançando seria a melhor solução.

A sobriedade não durou muito, alguém ali conhecia o dono da balada e era melhor amigo do atendente do bar. Em pouco tempo estava montada no balcão uma fileira de copinhos de doses com limões cortados do lado de cada um, e um saleiro foi dado na mão do primeiro da fila. “Ok, tem que ser na ordem pra ter graça: sal, tequila e depois você chupa o limão. Sem fazer careta.” Vi que não tinha mais escolha quando todo mundo começou a contagem regressiva. Aquele gosto... aquele gosto era muito bom, será que era este o gosto da liberdade? Tomei a segunda dose, a terceira... Parei por ali. Levantei do banquinho sem entender o porquê a gravidade daquele local era maior do que no resto do mundo. Cambaleei um pouco e retomei o equilíbrio.

Uma das meninas me pegou pela mão e me puxou para dançar. Ainda zonza por causa da bebida, deixei que ela me conduzisse. Seus olhos pareciam de um gato, e seu cabelo dela era bem preto e comprido, balançavam de forma divertida enquanto ela dançava. Ela me puxou para perto, lambeu o lábio inferior e quase instintivamente eu a beijei. Tinha gosto de limão, tequila e bala de melancia. Mas era mais macio e suave do que outras bocas que já provei. Talvez achasse isso por estar bêbada, ou por nunca ter experimentado outra boca feminina antes. Por um momento me senti estranha, e meu estômago dava voltas, tudo aquilo era muito diferente de todo o conservadorismo ao qual eu estava acostumada. As meninas nunca mais me visitariam se soubessem disso. Continuei dançando, para disfarçar minha vontade de rir.

Um dos garotos me puxou para um canto, ficamos conversando só eu e ele. Ele era divertido e amável. Deixei ele se aproximar, então pude sentir seu estonteante perfume almiscarado. Minha voz vacilou e minha boca secou. Passou a mão em minha nuca, e prendeu meu cabelo entre seus dedos. Meu corpo todo estremeceu ao seu toque, me senti fraca naquele momento. Seus olhos grandes e azuis me olhavam com apetite, mas seu toque era macio. Tudo aconteceu repentinamente, me beijou com rapidez, sem momento nem para respirar. Tinha um gosto doce misturado com cigarro. Foi um beijo desesperado, e áspero, bem diferente do anterior. Finalmente me sentia parte de alguma coisa.

Não me lembro de chegar até o carro dos meus pais, mas estávamos todos lá. Quase todos, a outra metade do grupo estava no carro do lado. A música estava tão alta que não podia ouvir meus pensamentos, e o som vibrava por todo meu corpo. Não sabia que aquela galera gostava de rock. Ouvi do banco de trás o motor acelerando, e senti seu ronco passar por todo meu corpo. Meus pais me matariam se algo acontecesse ao carro. Por que não era eu quem dirigia o carro? Entramos voando por um túnel.

A sensação era tão boa que coloquei a cabeça para fora e gritei instintivamente. Nada ali fazia muito sentido, parecia que eu tinha acordado de um coma. Mas continuei gritando e sentindo o vento em meu rosto, bagunçando meu cabelo. Surreal ver a cidade dormir, surreal fazer coisas que nunca faria antes. Gritei mais uma vez. Talvez quisesse que as estrelas ouvissem, elas eram as únicas testemunhas aquela noite. O carro freou com tudo. “Ganhei!” Gritou o motorista do carro do lado. “Sua vez agora, garota nova, afinal o carro é seu.” Gritou o motorista do meu carro. Nunca tinha apostado um racha. Talvez fosse a hora de aprender a ser algo que meus pais não eram. Acelerei o máximo que consegui, e passei de volta pelo túnel vazio, era melhor que gritar do banco de traz, agora eu estava completamente no comando do meu carro e da minha vida.

Acordei em um quarto de algum hotel barato. E o cara que estava comigo não era nenhum que estava com o grupo da noite passada. As garrafas espalhadas pelo chão indicavam que tivemos uma noite divertida. Uma fresta de luz brilhante entrava pela cortina entre aberta, iluminando o quarto todo. Como será que fui parar ali? E como conheci esse cara? Algumas pessoas teriam, no meu lugar, se arrependido ou se perguntariam se estavam fazendo o certo. Isso me passou pela cabeça, mas achei melhor ignorar.

Me sentia inebriada, o quarto girava. Não sabia se eu estava feliz ou se ainda estava bêbada. Não estava envergonhada pelo que estava fazendo, ao contrário, me sentia realizada. Apenas dei um sorriso de canto, para ninguém em especial, pois só tinha eu e um homem aparentemente desmaiado naquele local. Já eram 11 horas da manhã e eu queria comer alguma coisa. Tomei um banho e procurei, desnorteada, minhas roupas pelo chão. Tentei forçar minha mente a lembrar como cheguei ali, mas nada aconteceu. O homem continuava no mesmo estado mortificado que antes, então, somente peguei minha bolsa e saí sem falar nada.

Passavam poucos carros e não vi nenhum pedestre por ali, as casas exalavam um cheiro gostoso de almoço sendo preparado. Não consegui encontrar o carro dos meus pais em lugar nenhum. Estava perto da balada da noite passada, mas depois da corrida, não faço ideia de onde o larguei. Caminhei pelo bairro todo. Nada. Será que fui assaltada? Senti minha garganta apertar, e todas as dúvidas surgiram em minha mente. Será que estava fazendo a coisa certa? Meus pais me matariam. A vontade de chorar aumentou. Parei e tive um momento de clareza. Talvez fosse melhor daquela forma, os meus pais poderiam me localizar com aquele carro. Chorei, desamparada, mas estava deslumbrada de mais para desistir da minha ideia louca de fugir.

Parei em um banco de uma praça qualquer, e respirei fundo. A cidade fastidiosa parecia vazia naquela manhã nublada. Sequei as lágrimas borradas de maquiagem, encabulada por estar chorando em público. Segui em frente. Naquele momento sentia que não tinha mesmo outra direção para ir. Havia perdido a fome, e não estava nem um pouco segura do que estava fazendo, mas decidi comer mesmo assim.

Café da manhã de padaria é a melhor coisa que tem, principalmente se não tiver todas aquelas frescuras de padaria de gente rica. Retirei meu cartão de crédito, torcendo para que meus pais não o tenham cancelado por precaução. O cartão ainda estava ativo, agora deveria decidir o que comeria. Um pão na chapa e um suco de laranja, por favor. Nada melhor que isso. Meu pensamento continuava nos meus pais e no que eles fariam se me encontrassem. A comida me acalmou, e decidi me distrair lendo uma revista qualquer que vendia por ali.

O celular tocou na minha bolsa, deveria ser minha mãe tendo um surto. Lógico que depois de tudo, eu nunca mais sairia do castigo. Não, não podia ser. Deixei meu celular em casa. Abri minha bolsa e lá estava um smartphone rosa. Definitivamente não era o meu, nunca usaria um telefone daquela cor. Onde eu consegui isso, será que roubei ontem? Logo o aparelho parou de vibrar, e começou de novo impacientemente. Atendi. “Lina? Ah, que susto. Achei que tinha perdido esse maldito celular. Devo ter esquecido com você ontem à noite. Escuta, vou fazer hoje uma tatuagem e depois o pessoal vai se encontrar pra beber alguma coisa? Quer ir? Aproveita pra devolver meu celular. Me encontra na Galeria do Rock daqui duas horas, beijos.” A garota do outro lado da linha não esperou eu dar uma resposta e desligou. Não conseguia lembrar o nome dela, aliás, nem sabia quem era a menina.

A galeria estava relativamente vazia e silenciosa. Alguns jovens, vestidos a caráter passeavam analisando cada loja. Parei na vitrine do cabelereiro. Tinha umas perucas engraçadas e uma menina punk estava pintando seu moicano de verde lá dentro. “Seu cabelo está tão chato com esse seu corte certinho e sua cor natural. Que tal azul?” Perguntou um cabelereiro me empurrando de forma entusiasmada pra dentro da velha loja que cheirava a produto de cabelo. Fiquei avermelhada e tentei fugir, mas o jovem cabelereiro já estava procurando a tinta. Assenti para a cor azul, e falei que poderia fazer o que ele quisesse com meu cabelo.

O homem cortou meu cabelo totalmente curto e repicado, deixou apenas uma franja lateral comprida. Quando vi meu cabelo caindo no chão, entrei em pânico, mas não disse nada. E então ele descoloriu meu cabelo até ficar quase branco, e hidratou. Depois pegou a tinta azul e pintou só as pontas. Me mexi na cadeira, impacientemente. Todo o processo parecia ter levado horas, queria sair dali correndo, mas o deixei terminar. Secou e colocou todo o cabelo para cima, menos a franja. Meus músculos se retesaram quando olhei no espelho, ficou sensacional. Não parecia mais a mesma pessoa que eu via todo dia, mas acho que era isso que queria, eu não era mesmo mais aquela garota. Me sentia completamente diferente.

Diferente”

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Olhei no relógio do celular, meia hora atrasada.

Não fazia ideia de quem era o celular, e esperava que encontrasse algum rosto conhecido no meio daquelas milhares faces que estavam ao meu redor. A menina ruiva olhou para mim, como não podia lembrar dela? Era a mais falante do grupo. Com o cabelo ruivo pintado todo repicado, um jeans rasgado e uma regata preta. Simples, mas linda. Sorri e acenei, por um instante ela não me reconheceu. “O que você fez com seu cabelo?! Ficou perfeito!” Não lembrava que ela tinha tantos piercings, dois na boca, dois no nariz e um em cada bochecha.

Ficamos esperando até ela ser atendida na salinha escura e vazia, ela me contou da primeira tatuagem de borboleta na costela que fez no mesmo dia em que colocou um alargador na orelha. E depois disso já havia feito mais 2, e queria fazer a quarta: uma fênix que cobria as costas toda. “Faz uma!” ela insistiu. Sempre ouvi todos dizerem o quanto é ruim uma tatuagem, e que te marca para sempre sem chance de volta. Mas sempre fui secretamente apaixonada pelos desenhos nos braços do meu namorado.

Entrei na sala do tatuador, que mais parecia um consultório médico. As paredes eram brancas, diferente da sala de espera. Mas também eram cobertas de desenhos. Sentei na cadeira, aguardando a pessoa que iria me marcar. Ao meu lado tinha uma estante com todos os utensílios limpos e esterilizados. Fazia um mês desde aquela noite, e tudo já parecia completamente diferente. Fechei os olhos me lembrando de como foi rever minha amiga.

Amanda era a mais próxima de mim, então tive a esperança de que ela me entenderia. Fui até a casa dela uns dois dias após aquela noite. Ela tinha uma nova melhor amiga. Loira, com sapatos rosas de salto alto, e a unha pintada cuidadosamente de vermelho. Não conhecia a menina, mas me olhou com nojo. Quis rir, achei a cena um tanto patética. “Olha Lina, você sumiu... Fiquei preocupada. Mas o que podia fazer? Você sempre foi meio esquisita mesmo.” Ela disse com um ar de desculpas e me convidou para sair. Não me senti expulsa, triste ou com raiva. Na verdade, dei risada. Da cara dela. Na cara dela. Realmente eu não sei o que esperava quando fui para lá.

Uma mulher entrou na pequena sala. Ela deu um sorriso meigo, e perguntou se era minha primeira. Assenti tentando imaginar se era minha expressão ou meu jeito que me denunciava. Disse à ela como e onde queria, e ela assentiu vestindo a máscara. A maquininha fazia um zumbido relaxante na minha cabeça me deixando semiadormecida. Os furos da agulha não doíam, pareciam meramente arranhões. Deitada de lado na maca, estava completamente relaxada. Fiquei observando todos os desenhos que decoravam as paredes. Meus olhos passaram por um desenho de dragão, por um gato, e, por fim, peixes japoneses com cores dos quatro elementos.

Chris adoraria ver aquela cena. Acho que ele riria das minhas expressões de dor. Mas ele não foi tão receptivo em nosso último encontro. Contei para ele tudo o que fizera. Quase tudo. E ele riu comigo, e disse que gostaria de conhecer meus novos amigos. Mas quando disse que já estava procurando emprego e moraria sozinha, sua atitude mudou. “Mas e seus pais? Já falou com eles?” Eu ri, dizendo que não precisava da permissão deles, pois viveria por minha conta. Ele se desculpou e foi embora. No dia seguinte, fui visita-lo. Mas ele estava com outra garota. Não chegou a me ver ali escondida, observando os dois. Mas também nunca tentou me procurar depois que sumi.

Não chorei, não fiquei triste. Não me surpreendi. O dinheiro muda as pessoas.

A tatuadora limpou o excesso de tinta e sangue na minha perna e retirou a máscara higiênica. Me olhou e sorriu indicando que havia terminado. Olhei no espelho, um guarda-chuva estava desenhado no lado exterior da minha coxa direita. Eu sabia que a chuva não caía mais em mim, e era isso que representava. Saí da salinha orgulhosa de mim mesma. Eu estava começando a me aceitar.

Meus pais me matariam. Na verdade, eles já me mataram em pensamentos. Fui visita-los assim que soube que consegui a vaga de atendente bilíngue em um hotel 5 estrelas. Toquei a campainha imaginando quanto orgulho sentiriam de mim. Mas estava redondamente enganada. O sorriso de minha mãe se tornou uma linha reta e dura ao me ver parada na porta, depois de três semanas desaparecida. Ela me ignorou enquanto eu fazia uma pequena mala com algumas roupas minhas. Peguei só o necessário.

Olhei para meu quadro de fotos. Ri de algumas poses e caretas que eu e minhas amigas costumávamos fazer. Peguei uma foto que tiraram de mim e meus pais. Estávamos todos em um pic-nic, e eu era bem pequena. Minha mãe me segurava rindo, e eu estava com a boca toda suja do sorvete que meu pai estava me dando de colher. Uma tia tirou a foto. Guardei-a na bolsa, e desci as escadas.

Meu pai já estava em casa, e parecia mais feliz em me ver do que mamãe. Ela me pediu para que sentasse com eles no sofá, como em um interrogatório. Não disseram nada esperando que eu começasse a conversa. Fui direto ao assunto, e contei que arranjei um emprego e moraria sozinha. Minha mãe tomou uma expressão furiosa, e começou a gritar comigo jogando na minha cara que ela pagava uma escola muito cara para mim, que eu era ingrata, e que meu cabelo fazia eu parecer “uma lésbica nojenta”. Meu pai não disse uma palavra. “Nojenta é a atitude de vocês” pensei levantando do sofá. Apenas disse calmamente que eles não estavam preparados para sentir orgulho de mim, e sai de casa. Ninguém disse nada. Ninguém veio atrás de mim.

Eu estava feliz, sabia exatamente o que queria. Nada faria com que eu voltasse para aquele mundo novamente. Nem meus pais. Estava deixando que o tempo ajeitasse as coisas para mim. Entendi, pela primeira vez, que as ideias mais fortes, vinham dos sentimentos mais doidos. Naquela hora me deu vontade de ligar para meus pais, e contar como as coisas estavam bem. Mas, após minha primeira tentativa de um contato civilizado, comecei a achar que eles realmente desistiram de mim. Mandei uma mensagem de texto para minha mãe: “saudades”. Não tive resposta.

Percebi em meu primeiro dia de trabalho que não eram exclusivamente meus pais e as pessoas com quem convivia, em todo lugar havia esse preconceito besta. Essa necessidade de ser igual para se encaixar na sociedade. Eu tinha que trabalhar de peruca, já que o hotel tinha aquele falso moralismo e toda a burocracia da sociedade. Cabelos coloridos nem pensar. Eu era a figura marginal dali. Tudo o que os falso-moralistas mais criticam e desprezam. E aquilo era a minha felicidade. Não viver em um mundo tão regrado, onde a personalidade das pessoas se tornam iguais para que todos possam ser felizes e civilizados.

As pessoas tinham que esconder a cada minuto o que eram e o que desejavam ser. Descobri, finalmente, o que me irritava: tudo era muito igual naquele mundo. Eu decidi seguir a contramão. Compreendi que não havia fórmula certa para a vida. Eu havia mudado, ainda era eu mesma, mas já não era mais a mesma. Decidi não ser o que esperam de mim. Não poderia ser igual a todos, tão diferente como sou. Não poderia existir sem viver, ou amar sem sentir. Aprendi a ser feliz à minha maneira.


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Notas finais do capítulo

Que bom que conseguiram chegar até aqui hsausuah

Espero, de coração, que tenham gostado.

Qualquer dúvida, sugestão, reclamações e/ou angústias serão muito bem aceitas shuahs

Bjo bjo :)



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