Hysteria escrita por diginyan


Capítulo 1
Dawn




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Este diário se desenvolve em busca da minha história. História esta que nem mesmo eu, a protagonista etérea, conheço. Mas, por ventura, busco saber de minhas origens, de meus sentimentos e das situações que levam-me ao mundo afora. No caso, o que deu-me por vontade de começar a relatar minhas desventuras, foi estar prevendo a necessidade de deixar meu país, minha amada Irlanda.
Conquanto ame meu país, e tenho de deixá-lo, não nasci nesta terra. Minha existência remonta à maior catástrofe de Londres, onde labaredas consumiram tantas construções e pessoas que nem mesmo tenho certeza para afirmar. De nada me recordo, pois, tendo nascido no início da primavera, não havia idade para lembrar dos acontecimentos do outono. Sei apenas o que minha mãe, agora falecida, havia me dito. Sobre as ruelas estreitas que impediam as passagens apressadas dos transeuntes; dos telhados quebrando-se e caindo por chão, a atear fogo em tudo que atingissem. Dos quatro dias de desgraça e de mortes sequenciais, mas que não eram relatadas nos registros. E por este motivo, levou-a deixar nossa antiga cidade, para abrigarmo-nos em Cork, uma grande cidade ao sul da ilha. Tínhamos, ao que parece, um distante tio na cidade, mas que pereceu devido à febre.
Em Cork, uma cidade portuária, tínhamos uma vida digníssima. Nossa casa, embora um pouco afastada do centro, permitia-me observar o movimento da população através do dia. Eu gostava de correr ao mercado, e de passar horas nos bosques; ajudava minha mãe com seus afazeres de cozinheira, bem como a acompanhava em suas cerimônias aos deuses. Eu nunca entendi porque não podia falar sobre sua Arte, embora fosse tão bonita e diferente das religiões. Não gostava das Igrejas, pois nunca me pareceram um local onde eu realmente podia sentir os deuses. Também nunca compactuei com a ideia de ser regida apenas por um Deus, o qual saberia de tudo, faria tudo, sendo ele tão volátil como parecia ser. Mas até minha pré-adolescência, onde comecei a ter aulas particulares - quando minha mãe casou-se com um nobre barão -, nada soube sobre esse tal dito Deus. Era um aborrecimento enorme, pois meu tutor era um daqueles puritanos impertinentes. Eu não gostava de puritanos, mas também não suportava católicos. Quando, por descuido, falei sobre a Deusa em um resmungo, sofri por precisar ler Malleus Maleficarum. Este maldito livro! E minha mãe, embora piedosa, nada pode fazer, apenas segredar-me sua condolência, já que seu marido era religioso e nada poderia lhe contrariar. Entretanto, enquanto eu pudesse ter minha liberdade de visitar aqueles bosques abastados, não me importava com estas futilidades. Letrei-me nas artes que podia aprender, e antes que pudesse continuar, tive minha mãe levada de mim.
Eu me recordo pouco daquela noite, talvez por vontade própria, talvez por meu inconsciente ser tão sensível a estas lembranças. Lembro-me dos gostos, das cores, dos reflexos. Lembro-me das portas se abrindo, com violência, e de meu acordar de sobressalto ao ouvir os ruídos estrondosos. Lembro-me da sensação de preocupação lacinante, e de vê-la, sob os braços de dois homens, a ser arrastada pelo salão. Lembro-me de obervar sobre o corredor do segundo andar, por entre os vãos do parapeito que antecedia a escada, e de ter minha ama a puxar-me para o quarto. Ela ditava-me recomendações dadas pelo marido de minha mãe, para que eu juntasse minhas coisas e fosse a um convento na mesma manhã. Eu não queria ir a um convento, então pouco me restou a fazer. Conhecia uma das sacerdotisas que minha mãe costumava se encontrar, e rumei até ela, na madrugada daquela noite. Em minha mente, ainda ecoavam muito reais as memórias de pouco tempo atrás. Trouxe comigo as roupas costuradas a fios de prata e ouro de minha mãe, pois não daria a uma futura mulher do barão o prazer de usar as mesmas coisas que ela havia tido em seu corpo. Trouxe seu diário, bem como surrupiei suas joias e alguma quantia em ouro que ela possuía. Meus pertences eram irrelevantes, bem como minhas anotações de estudo e meus vestidos surrados.
Recordo-me, então, da minha chegada à casa da sacerdotisa. Eu estava arrasada, e ela ajudou-me a me recompor depois da perda da única pessoa com quem eu mantia quaisquer tipos de relação. Não apenas por ser minha mãe, o que já é suficiente para que eu chorasse durante noites sua despedida; e sim pois era minha amiga e comapnheira, e acompanhava-me durante os dias e noites, em conversas e aprendizagens. Ensinava-me a tecer, fiar, mas também gostava de cantar e cozinhar comigo. Quem, então, tomou os lados como mãe, após muito tempo, acabou sendo a sacerdotisa. Seu nome era Ursula, e ela morava em um pequeno feudo na área rural de Cork. Não sei se posso chamar de feudo, pois possuía apenas um pequeno curral com um cavalo e uma vaca, bem como um espaço para plantar umas poucas qualidades de verduras. Tinha uma ama, uma negra que estava na família como criada por muitas e muitas primaveras. Eu gostava de Ursula, e talvez não conheceria tão bem a Arte se não fosse por virtude de seus conhecimentos. Ela acabara por ser como uma mãe, tal qual a Deusa; era sábia, mas também muito extrovertida. No que eu não podia ser letrada por ela, como filosofia e matemática, ela podia letrar-me na palavra dos deuses. Pus-me como sua aprendiz, como ajudante, mas ela adotou-me como filha, a que não podia ter.
Há algumas primaveras, Ursula pereceu, devido a sua idade muito avançada. Eu sofri bastante com sua deixa, pois ela havia sido minha mãe tanto quanto podia; e com isso, eu estava sozinha novamente, sem uma guia, além da Deusa. E como ela já arranjava para mim, foi necessário que se consumasse um casamento para mim. Eu tinha, então, alguns 20 anos na época de sua morte. Meu casamento com Liam, um duque que possuía seus 27 anos, se deu no Beltane de 1690. Ele era uma pessoa agradável, de aparência vaidosa e asseado como tal. Gostava de debater comigo, embora sentia-se por vezes chateado ao ter minhas respostas. Um homem deveras sentimental, devo dizer, e que, graças à Deusa, portava-se como um poeta, tão sensível e delicado que nunca faria-me mal algum.
Um ano após nosso casamento, seu instinto aventureiro fê-lo querer abandonar nossas posses em Cork e rumar ao novo mundo. Eu em nada contestei, mas creio não ter sido apenas por um desejo momentâneo. Embora não costumasse mais passar as tardes no mercado - o que me levava a ser uma pessoa bastante deslocada das novidades e dos burburinhos do povo -, desconfio que tenha sido movido por outros motivos mais fortes. Bom, como poeta, ele era deveras silencioso quando queria, e fechava-se ao seu mundo de ilusões. Vinha à mim durante as noites, quando acordávamos na volúpia da madrugada, iluminados por Aradia nos céus enluarados.
Embora tenha citado sobre Liam como num passado, pois o era, despeço-me para motivos que nem mesma sei. Convidou-me para me arrumar, sairemos esta noite, e farei-no agora.


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