A fera interior escrita por Aline Vataha
O lobo estava sentado ao lado de uma árvore, observando as pessoas irem e virem. Seu pelo negro absorvia toda a luz que o tocava, tornando-o tão escuro e profundo quanto o vazio. O seu tamanho colossal fazia com que ele quase batesse a cabeça num dos troncos mais altos, mas ele tinha conseguido de alguma forma arranjar uma posição confortável ali. Um tigre estava deitado ao seu lado, tão branco quanto o inverno. Seu corpo era repleto de listras negras de várias formas e tamanhos, como se fossem traços de aquarela. Seus olhos eram de um profundo lápis-lazúli, mas estavam repletos de tédio e desinteresse.
Ninguém os via ali. Os estudantes passavam, riam e conversavam ao redor deles, mas não podiam vê-los ou senti-los. Isso dava uma liberdade quase inconcebível aos animais, porém também os aprisionava no próprio mundo deles. Era uma dicotomia muitas vezes difícil de ser aceita.
- No que você está pensando, Helena?
O tigre ergueu os olhos para o lobo. Depois voltou a olhar para o chão, permanecendo em silêncio. Fazia horas que ela estava assim. Não importasse quanto tempo passasse, ela não conseguia verbalizar o que sentia, pensava ou esperava.
- Diga alguma coisa. Qualquer coisa.
O tigre balançou a cabeça devagar.
O lobo continuou aguardando.
Uma brisa abraçou a árvore, fazendo os galhos baterem e as folhas cantarem.
Um grupo de pessoas passou por eles. Conversavam animadamente, e no meio deles, havia um casal de mãos dadas. Conforme ela os assistia passarem, ela pareceu murchar mais ainda.
- Eles parecem felizes, não é? – Perguntou o lobo.
- Você parece bem intrometido – Debochou Helena.
- Durante muito tempo, eu os assisti assim também. Sempre sorridentes, sempre tão alegres, parecendo que nada de ruim podia atingi-los. E eu sempre quis matá-los por causa disso.
Algumas nuvens encobriram o sol, fazendo com que escurecesse. A temperatura também caiu.
- Eu também sempre me perguntei o que era isso – Continuou o lobo. - Ter esse Outro. Era uma visão estranha, quase inconcebível, alienígena. E então, eu conheci alguém, da mesma forma que você também conheceu. E isso mudou muitas coisas.
- Você diz como se soubesse o que eu estou passando. Você não sabe.
- Não. Não sei – Admitiu. – Mas eu também já amei alguém que nunca olhou para mim, Helena. E nunca passei por nada tão angustiante, e nunca sofri tanto. Acordar com um rosto na cabeça, dormir com um nome nos lábios, sonhar com coisas que nunca vão acontecer...
A voz dele foi morrendo até desaparecer. O tigre olhou para o lobo. Era a vez dele de olhar para o chão.
- É difícil – Continuou ele. – Ter que passar por isso é muito difícil. Mas você não tem que fazer isso sozinha.
O silêncio retornou. O vento veio mais algumas vezes, derrubando algumas folhas sobre eles. Helena continuou observando as pessoas que circulavam por lá.
E então as palavras vieram.
- Eu amo ele – Disse surpresa. – Eu amo muito ele. Eu queria... Eu queria ter ele junto de mim. Queria abraça-lo, queria beijá-lo, eu... Queria ele.
O tigre piscou várias vezes, fazendo as lágrimas saírem e desembaçarem sua visão.
- Por que ele não me quer? Eu não consigo entender... Só... Eu só queria uma chance...
- Ninguém tem a obrigação de nos amar, Helena – Disse ele gentilmente. - E mesmo que tenhamos a chance, não quer dizer que vamos conseguir alguma coisa.
- Isso não é justo.
- Não. Não é.
O tigre suspirou. As listras em seu corpo se reconfiguraram, como se um artista invisível tivesse dado novas pinceladas sobre o seu corpo.
- Eu não sei o que eu vou fazer.
- Dificilmente alguém sabe.
- O que você fez? Quando passou por isso.
O lobo fitou-a por um momento, parecendo sorrir.
- Eu? Bem... Eu nasci.
- Não ser correspondido fez com que você fosse criado?
- Não. Ter que lidar com tudo aquilo sozinho o fez. O isolamento criou grande parte do que você vê agora. Foi só uma maneira de suportar o que eu passava. Não precisa acontecer o mesmo com você.
As nuvens saíram da frente do sol, e o dia voltou a se clarear. As listras nas costas do tigre mudaram de novo, formando imagens mais trabalhadas e alegres. O animal se levantou. Sua cabeça batia na metade da pata dianteira do lobo.
- Eu ainda não perguntei... Qual é o seu nome?
- Nigos.
- E então, Nigos... O que eu faço agora?
- Eu não sei. Mas não estará sozinha. Não mais.
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