A Última Harrison escrita por Caderno Azul


Capítulo 4
Overdose Burton


Notas iniciais do capítulo

Bem vindos de volta! Boa leitura :)



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Desde que recebera a carta do internato Wilshire, Kate sabia que a pessoa que a tinha apadrinhado seria responsável por toda a sua jornada acadêmica. Isso significava uma reunião mensal com o benfeitor e uma conselheira que acompanharia sua evolução psicológica. Além disso, ela deveria fazer um diário de bordo, onde narraria todas as transformações e como a filantropia mudara sua vida. O conteúdo das experiências dela e dos demais felizardos estaria no site da organização. Todos deviam se sentir muito satisfeitos consigo mesmo.

Terça-feira não era apenas o primeiro dia de aula, mas a primeira reunião de Kate com seu benfeitor, algo que Kate encarava com resignação. Ela se sentou junto dos demais estudantes transferidos do orfanato e logo percebeu que o plano deles de se passarem por desconhecidos não se aplicava ali.

–Fiquei sabendo que ontem você foi à Iniciação – comentou uma garota de tranças com quem Kate jamais falara na vida. – É verdade? – ela praticamente a interrogou. Os demais estudantes que também aguardavam apenas a encararam.

–E como você ficou sabendo disso? Aconteceu ontem – replicou Kate franzindo a testa.

–Eu sei, eu estava lá – a garota de tranças lhe lançou uma piscadela, sendo bem mais amigável que há segundos atrás.

–Ah. – fez Kate sem saber direito como prosseguir. A garota parecia querer algo dela. – Hm, a propósito, meu nome é Melissa.

–Eu também sei disso. Sou Tina. – ela respondeu a encarando fixamente.

–Prazer, Tina.

Kate suspirou, começando a achar a atitude de Tina um pouco invasiva. Se ela tinha ido ontem, então por que perguntara se Kate havia ido? Ela a teria visto. Das duas, uma; pensou Kate; ou Tina não tinha ido à Iniciação e queria saber como foi ou ela tinha ido e queria perguntar algo a Kate.

–Olha, eu vou direto ao assunto – Tina voltou a falar. – Eu não estava na Iniciação ontem, mas fiquei sabendo que você foi e ficou com um garoto. É verdade isso? – perguntou com as mãos na cintura.

Kate a encarou, atônita. Estava prestes a perguntar quem Tina pensava que era quando a conselheira a chamou.

–Eu tenho que ir – ela falou para a garota sem responder sua perguntar e entrou na sala antes que Tina a puxasse para fazer outra pergunta inconveniente.

–Bom dia, Srta. Smith. Como sabe, estamos aqui para que você e seu padrinho possam se conhecer. Este é o Sr. Wallace – a conselheira indicou com a mão um senhor de terno de expressão mais bondosa que Kate imaginara.

O senhor imediatamente apertou suas mãos com firmeza.

–É um enorme prazer finalmente conhecê-la, Melissa. Estive acompanhando todo o processo de seleção e apesar de não poder realmente falar isso, devo confidenciar a você que não havia menina melhor para que eu pudesse apadrinhar. Principalmente se isso significaria ter mais segurança em relação a quem dorme no quarto junto de minha Mary.

–Mary é sua filha? – Kate perguntou em alegre surpresa.

–É sim, você naturalmente já a viu hoje. Como ela está?

Da última vez que Kate vira Mary, a colega de quarto estava passando mal no banheiro por causa dos ponchos que tomara. Mas Kate jamais contaria isso ao seu mais novo padrinho.

–Está ótima, cheia de energia para o primeiro dia. – mentiu dando um sorriso.

Por um instante ela achou que o Sr. Wallace não acreditaria e a acusaria de embriagar sua filha, mas logo percebeu que devia estar ficando paranoica. Ele continuou sendo cortês, mais cortês que esperava. A reunião no geral foi melhor do que Kate havia se preparado em sua mente. Exceto a parte da Trina, mas então Kate não havia se preparado para o interrogatório.

Passada a reunião, ela correu para a segunda aula do dia, uma vez que já tinha perdido a primeira. Foi com grande prazer que constatou que nem Adam, nem Paul, nem Tina estavam naquela aula. Teve algum tempo para se concentrar como faria algo que estava pretendendo fazer desde que chegara ao colégio, contatar sua madrinha, a irmã de sua mãe, sem que deixasse algum vestígio óbvio. Como não sabia com quem estava lidando, não podia garantir que os assassinos não conseguiriam rastrear, mas pretendia mandar um email, algo pouco pessoal.

– Eu estive te procurando a manhã inteira.

Kate só voltou à realidade quando a voz de Mary se interpelou em seus pensamentos. Estava na hora do almoço e ela andava junto com a correnteza de estudantes apressados.

–Vejo que a ressaca passou – ela comentou ainda distraída com seus planos.

Mary sacudiu os ombros, como se aquilo não fosse nada a se preocupar.

–E vejo que você ainda não escutou a rádio-corredor.

–O que, vocês têm um rádio aqui? – Kate perguntou desligada.

–Não, Melissa. Eu quis dizer fofoca. Todos estão sabendo que você e o Adam brigaram.

Kate ergueu as sobrancelhas, impressionada. A velocidade com que as informações podiam se espalhar ali começava a assustar.

–Na verdade uma garota veio me perguntar se eu tinha ficado com alguém ontem...

–E você ficou? – perguntou Mary curiosa.

–Não. – respondeu Kate com veemência. – Eu só fiquei conversando com o Adam, não brigando, como sua fonte deve estar espalhando.

Elas entraram no refeitório e como Kate previra, era tão barulhento e fragmentado como todas as outras escolas por qual ela já havia passado. Lembrou com pesar que nas experiências anteriores, a primeira coisa que faria era procurar pela irmã.

–E o que respondeu?

–Por sorte, alguém nos interrompeu e não consegui falar, mas eu não seria educada. Quem essas pessoas pensam que são?

–Elas só estão curiosas – replicou Mary entrando na fila do refeitório ao lado de Kate. – E para ser sincera, também estou. Paul não parecia muito contente ontem falando com você e posso te afirmar com certeza que os irmãos brigaram, porque eu vi Adam saindo com aquela cara logo depois que você foi embora.

Kate olhou para a colega de quarto, se perguntando o quanto não teria de Mary no chamado rádio-corredor. Preferiu mudar de assunto, aprendera que quanto mais falasse da história, mais o assunto renderia.

–Eu acabei de descobrir que meu novo padrinho filantrópico é ninguém menos que seu pai e você só quer falar sobre Paul e Adam? Acho que precisamos conversar sobre suas prioridades. – retrucou em tom de brincadeira.

–É verdade, eu tinha esquecido completamente que ia se reunir com meu pai hoje O que achou dele? – perguntou Mary já se esquecendo do assunto anterior.

–Ele pareceu muito legal. Perguntou de você, eu disse que estava bem – contou Kate acabou de pegar o que queria e voltou-se para as mesas tentando escolher uma. -Onde você senta normalmente?

Mary a encarou com uma expressão culpada.

–Você só pode estar brincando...

–O que eu posso fazer? Somos amigos de infância – ela se defendeu, mas Kate percebeu que havia um toque de orgulho em sua voz, como se fosse uma qualidade especial ser amiga dos irmãos Burton. Dependendo da influência deles, até poderia ser, refletiu Kate.

–Eu estaria pedindo demais se dissesse que não quero sentar com eles hoje?

–Estaria, mas tudo bem – Mary brincou com ela, sorrindo. Ao passar pela mesa que normalmente sentava, no entanto, seu sorriso murchou. – Não teria lugar para nós mesmo. Você viu como está lotada?

Kate virou a cabeça para dar uma olhada, tentando ser discreta. No meio da mesa, Paul conversava com alguns amigos. Ao redor deles, havia um enxame de garotas, elas estavam rindo, falando alto demais, tentando chamar a atenção. Kate não as culpava. Talvez se tivesse outro destino, um não tão solitário, e estudasse ali, ela mesma tentasse chamar a atenção de alguém.

Por isso, aprendera a não condenar essas atitudes, só tinha na cabeça que não eram para ela. Não mais.

Mary, por outro lado estava possessa. Largou a bandeja com brutalidade numa mesa vazia e cruzou os braços com tanta força que Kate achou que demoraria horas para desenrolá-los.

–Parece cheia mesmo, deve ser o primeiro dia de aula – comentou tentando acalmá-la e sentou-se cautelosamente ao seu lado.

–Eu não sei por que isso sempre acontece no início de todo semestre – falou Mary pulando o sanduíche natural que tinha pegado para o pudim de chocolate. – Sabe, é que nem aquelas promessas estúpidas de fim de ano. Não é como se você fosse perder – ela deu uma pausa para engolir uma colherada do pudim. – vinte quilos de um dia para o outro só porque é ano novo. Isso é tão idiota! – ela continuou indignada em seu monólogo. – Não é por que um novo semestre começou que você pode pensar “ei, acho que vou namorar um dos Burtons hoje.” Não é assim que funciona! – mais uma pausa para o pudim. – Existe uma fila quilométrica, eu entendo do que estou falando. Acho que essas – outra pausa para o pudim. - vacas estão apenas perdendo o tempo delas, se quer saber minha opinião. Ei, o meu pudim acabou, você vai comer o seu?

Kate observava tudo admirando a sabedoria das palavras do Sr. Wallace mais cedo. Ainda bem que foi Kate quem caiu em seu quarto. Sabe lá o que aconteceria se alguém como Tina se tornasse colega de quarto de Mary. Ela tinha arrepios só de pensar.

–Não, pode comer.

–E o que me irrita mais em tudo isso – ela falou, já abrindo e colocando uma colherada do pudim de Kate na boca. – é que por causa dessas idiotas eu perco o meu lugar na mesa. Sendo que eu – mais uma pausa. – mereço muito mais que elas! Eu sei quando eles fazem aniversário, qual a cor favorita, quem é o mais – a pausa que Kate desejou que fosse a última. – velho. Não que hoje eu pretendesse me sentar lá, de qualquer forma, mas tudo isso é uma grande falta de – a última pausa. – consideração.

Mary finalmente engoliu o pudim e a raiva, suspirou pesadamente e bebeu um pouco da sua água.

–Se sente melhor? – Kate perguntou compreensiva.

–Um pouco. Preciso pegar mais pudim. – e se levantando bruscamente, foi até a fila do refeitório de novo.

Kate acompanhou seu trajeto, desde Mary fuzilando com os olhos as meninas que ousaram ocupar o seu lugar desde chegar até a fila. Arrependeu-se quando viu que Adam chegava agora ao refeitório e cumprimentava Mary. Ele lhe perguntou alguma coisa e Mary o respondeu. A partir desse momento, Adam olhou para a mesa onde Kate estava e andou em sua direção.

–Oi, posso falar com você?

–Já está falando – retrucou Kate. Ela sabia que não estava fazendo jus a educação que recebeu dos pais, mas se um pouco de grosseria era necessário para afastar Adam e seu irmão paranoico de si, era isso que usaria.

Se Adam percebeu ou se incomodou com a grosseria, não demonstrou. Apenas se sentou e lhe falou:

–Sei o que Paul fez com você e sei que não está interessada no meu dinheiro...

–Na verdade, eu não estou interessada em nada no momento – ela encerrou a conversa se levantando e procurando a saída.

–Melissa! – Adam voltou a chamou, um pouco mais alto do que o volume normal, o que já atraiu olhares e cochichos. Ela foi obrigada a parar e retroceder antes que tivesse o refeitório inteiro de plateia. – Você realmente vai me culpar pelo que Paul fez?

Kate encarou os curiosos que continuavam a prestar atenção nos dois e a maioria tentou pelo menos disfarçar. Em seguida, voltou a falar com Adam em voz baixa.

–Eu não estou culpando ninguém, mas sei que não quero ficar entre você e o seu irmão – psicopata, ela completou mentalmente.

–E se eu não me importar? – Adam a desafiou. De novo, o tom alto.

Kate começava a achar que era melhor conversarem em outro lugar a servir de espetáculo para os outros estudantes no almoço. Mas então se fizesse isso, os boatos voltariam a circular do que eles teriam ou não feito fora dos olhares de todos. E a imaginação seria muito mais nociva nas mãos do rádio-corredor que a verdade.

–Isso não muda nada, Adam. Eu me importo e é o suficiente. – Kate percebeu que ele deveria ter outro discurso na ponta da língua. – Por favor, não insista.

Por fim, conseguiu sair do refeitório – estranhamente silencioso - sem acabar interceptada por mais alguém. Talvez ela não tivesse percebido, mas havia dois pares quase idênticos de olhos cinza a seguindo para onde quer que fosse.

Já fazia dois dias desde que Kate deixara o refeitório e os irmãos Burton para trás. Nas quarenta e oito horas que se seguiram nenhum dos dois a procurou e a garota achou ter fechado aquela página. Qual não foi sua surpresa quando descobriu que não apenas um, mas os dois estavam na aula de Literatura Clássica.

– Vamos estudar Shakespeare e para isso, vamos precisar dividir a turma em grupos de três. Darei duas semanas para que me entreguem o seminário, lembre-se que essa nota corresponde a nada menos que cinquenta por cento da nota final, então tentem se esforçar.

E agora, o professor passava um trabalho. Embora, ela supôs que como se tratava de uma turma dos Irmãos Burton, ficaria sem grupo de forma que nem se preocupou quando todos começaram a combinar quem ficaria com quem. Mary não fazia aquela aula e ela não faria grupo com Tina que a encarava sorridente.

Quando o professor começou a anunciar os grupos, Kate baixou a cabeça e esperou para se juntar com os demais sem grupo no final.

–Adam Burton, Paul Burton e Melissa Smith. Vocês falam sobre A Megera Domada. Quero o esboço para a próxima aula.

Ao ouvir aquelas palavras, Kate olhou atônita para os lados. O que tinha acontecido ao mundo nos segundos que baixara a cabeça?

–Mas professor, eu não escolhi esse grupo – protestou achando tudo aquilo muito estranho.

–Não, eu que escolhi – retrucou Paul com um dos seus sorrisos de lado. Ao seu lado, Adam parecia tão confuso quanto ela.

Kate se controlou para não berrar com ele em plena aula.

–Bom, eu não quero – retrucou ela.

–Tudo bem, se conseguir outro grupo podemos reorganizar a turma – falou o professor, já sem muita paciência com aquela história. Tudo que queria era uma vez na vida dar trabalho em grupo em paz.

Kate se virou primeiro para Tina. O pensamento de que ela era sua melhor opção fez a garota refletir como deveria aprender a se comunicar melhor.

–Tina! – ela chamou.

Mas sua antiga companheira de orfanato olhou para Paul primeiro e o que quer que tenha acontecido, fez com que ela fechasse a cara e negasse com a cabeça. Sem escolha, Kate tentou com mais cinco pessoas e o mesmo acontecia.

–O que você está fazendo? – Kate se voltou para Paul, começando a se aborrecer.

–Mágica – foi a resposta irônica do garoto.

Kate bufou, contrariada. O professor se aproximou até a sua mesa e lhe disse:

–Srta. Smith, será que eu posso prosseguir com a minha aula ou não?

Engolindo o orgulho, ela disse:

– Pode, eu faço grupo com os Burtons.

–Ora, obrigada – respondeu o professor com um sorriso indigesto – Muito bem, podem se juntar e discutir como farão o trabalho. Vocês têm cinco minutos!

–Inacreditável – Kate comentou baixinho ao juntar sua cadeira para trabalhar com o garoto que começava a ganhar seu ódio e o garoto que não tinha nada a ver com isso.

–Junte-se ao time, novata! – chamou Paul descontraído. Kate não ficaria calada.

–Sabe, para alguém que tenta me convencer a manter distância do irmão, você está se esforçando um bocado para ficar perto de mim. Essa é sua maneira de dizer que quer ser meu amigo?

O deboche conquistou uma risada de Adam que foi pego desprevenido. Paul, no entanto, não parecia mais tão contente.

–Ora, esse apenas é meu jeito de me desculpar por ser tão rude no seu primeiro dia – retrucou com ironia.

–Eu não te pedi nada – Kate replicou, sua raiva voltando.

–Eu sei, você nunca pede nada. – insinuou Paul estreitando os olhos.

–O que quer dizer com...

Adam cortou Kate antes que a briga chegasse a outro nível.

–Não adianta discutir. Fato é que estamos presos nesse trabalho, então vamos concluir logo e todos ficam livres para seguir com as vidas. Certo?

Paul e Kate concordaram com cabeça

–Acho que podemos marcar amanhã às seis horas na biblioteca. Vocês estão livres nesse horário? – Adam sugeriu e mais uma vez os dois ficaram de acordo.

–Ótimo, está marcado – finalizou Adam se sentindo subitamente muito cansado com a ideia de trabalhar com os dois naquele projeto.

Por alguns segundos, Paul e Kate conseguiram coexistir em harmonia, até que o movimento repetitivo de Paul abrindo e fechando a caneta irritou a garota.

–Dá pra parar com esse barulho?

–Não, não dá. – Paul retrucou e voltou a abrir e fechar a caneta. Kate contou até três e como, ele não parou:

–Paul, está me incomodando.

–Muito comovente, mas não é problema meu. – ele continuou com o barulho irritante. Adam desconfiou que o irmão só começou em primeiro lugar para irritar Kate, ou como ele acreditava, Melissa.

–Tenho notícias bombásticas: o mundo não gira ao seu redor. Então dá pra respeitar os outros? – Kate reclamou, quase em ebulição de tanta raiva que sentia.

–Quanto ao mundo não sei, mas essa escola gira. Como achou que consegui impedir que você formasse outro grupo?

Antes que Kate pudesse entender do que ele estava falando, o sinal tocou e ela pôde agarrar a mochila e partir porta afora. Infelizmente, para variar, alguém se colocou em seu caminho. O professor.

–Melissa, eu espero que tenha resolvido tudo com o pessoal do seu grupo. Pessoalmente, acho os dois uma ótima influência.

–Certo, professor – respondeu Kate acrescentando mentalmente: “e pessoalmente, nunca te pedi opinião.”


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Notas finais do capítulo

Epero que tenham gostado *_*
Até a próxima!