Americana Exotica escrita por Shiro


Capítulo 3
Primeiro dia na Middleton




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O final de semana transcorreu normalmente. Eu, mamãe e Jo continuamos a ajeitar ao apartamento pois ainda tinha muita coisa guardada nas malas e caixas. Foi cansativo até dizer chega.

Nesse meio tempo não conversei direito com Ian novamente, mas havia uma boa razão para isso. No sábado de manhã, enquanto eu levava o lixo pra fora, vi Ian e outro garoto saindo do seu apartamento, ambos carregando um baixo, baquetas e um amplificador que tinha um adesivo colado que estava escrito “pegue esse acorde”.

─ Oh, bom dia Jem ─ cumprimentou Ian, parando assim como o seu amigo.

─ Esse é o Orlaith? ─ perguntei, apontando com o queixo para o menino ao seu lado. Ele era alto, tinha o cabelo castanho claro e olhos claros. Era lindo do tipo que fazia as pessoas pararem para dar uma olhada.

─ Não, esse é o Peter Dummont ─ ele respondeu. ─ Pete, essa é a minha nova vizinha, Jemima Vektor.

Eu e o tal Peter trocamos rápidos sorrisos e acenos de cabeça. Apesar de ser amigo de Ian, Dummont fazia o tipo popular que costumava me ignorar.

─ Bem, e o que vão fazer com esses instrumentos? ─ indaguei, tentando ao máximo não parecer eu mesma: uma lajota na matéria de conversa fiada.

─ Estamos indo ensaiar na casa do Nathan ─ dessa vez foi Peter quem me respondeu ─ Temos uma banda.

Ian já havia me falado desse Nathan... Sim! Era o cara que havia escrito "Clodagh" no limpador de piscina em forma de pato do Goma.

─ Uma banda sem nome e sem fãs ─ acrescentou Ian, sorrindo. ─ Mas o que importa é que temos uma banda.

Por final, desci com eles até o térreo e enquanto jogava o lixo fora, observei os dois garotos atravessarem a rua e entrarem em um carro azul, que só podia ser de Peter. O carro seguiu, não sem antes terem dado uma buzinada para mim, e então eu estava ali, sozinha novamente.

Fora esse episódio, eu fiquei todo o final de semana dentro do apartamento, ajudando a colocar as coisas no lugar. Toda a arrumação foi só finalizada no domingo a noite, quando percebi que no dia seguinte seria meu primeiro dia na escola nova.

─ Onde fica a escola? ─ perguntei, durante o jantar. Era lasanha de microondas porque não tivemos muito tempo para cozinhar.

─ Fica há alguns minutos daqui, dá para ir a pé tranquilamente ─ respondeu mamãe. ─ Mas levarei vocês amanhã de carro, afinal, Lucas arranjou um trabalho pra mim.

Suspirei de alívio só de saber que não precisaria pegar nenhum ônibus ou metrô todo dia.

─ Que trabalho? ─ indagou Jo, sem parar de comer.

─ Decoradora na Army’s, uma loja que também é agencia de decoradores ─ disse ela, sorrindo feito uma garota boba.

Passou-me uma ideia rápida pela cabeça de que talvez um dia mamãe e esse tal Lucas pudessem ter um relacionamento. Ele fazia coisas tão legais para ela, como arranjar um apartamento e emprego, que talvez depois de papai aquela fosse uma recompensa para ela.

À noite eu não consegui dormir direito. Só de pensar que tudo podia dar errado, como sei lá, eu vomitando na porta da sala de aula, tropeçando no portão de entrada, constrangendo eu mesma ou, pior, constrangendo outra pessoa... era tão difícil.

Nunca tive amigos em Decatur, e quando digo nenhum era nenhum mesmo. Bem... tinha a Jude Bradshaw, minha prima, mas ela tinha ido pra Hollywood quando eu tinha doze anos e ela contava mais como parente do que amiga propriamente dita.

Jo estava bem mais garantida do que eu. Na antiga escola ela vivia cercada por pessoas, todos seus fãs e admiradores e lanchava na maior mesa do refeitório, que sempre viva lotada. Enquanto eu tinha um circulo de amizade limitado a professores e passava o intervalo na sala do zelador.

─ Coloque uma roupa legal e se alimente bem ─ aconselhou mamãe, assim que acordei no dia seguinte. ─ Você vai se sentir menos nervosa, prometo.

Eu tinha quase certeza que nada poderia me deixar menos nervosa naquele momento, mas decidi tentar, afinal, era melhor eu tentar do que não fazer nada. E além disso mamãe era meio profetisa, qualquer coisa que ela costumava dizer virava realidade, tipo, quando ela dizia pra eu levar o guarda-chuva porque ia chover. E eu não levei. Porque estava um dia bonito. E choveu depois. Pois é.

Comi torradas e tomei um copo de leite mas algo me disse que se eu ingerisse mais alguma coisa ia vomitar meu estômago, então parei por ali. Na hora de me vestir, coloquei um vestido branco com pequenos desenhos em preto, jaqueta jeans, botas pretas e deixei meu cabelo louro solto, completamente sem graça.

Bem, eu não estava glamourosa, mas aquilo era o máximo que eu consegui fazer, então pra mim estava bom.

Enquanto eu entrava no carro de mamãe, observei Jo se sentar ao meu lado e a invejei um pouco. Ela estava usando aquele vestido azul de vitrine e estava tão confiante consigo mesma. Estava deslumbrante. Aquilo me colocou mais pra baixo ainda.

E, para piorar toda a situação, durante o curto trajeto até a escola, Jo colocou seus fones de ouvido e ficou cantarolando uma música irritante.

─ Aí vem o sol, aí vem chuva, continue olhando o furacão... furacão! ─ ela repetiu e repetiu, e sua voz não era exatamente afinada.

A sensação de que uma bomba relógio ia explodir na minha cabeça só aumentava. E então o carro parou em frente a escola e eu sabia que aquele seria meu fim.

─ Até mais ─ resmungou Jo, saindo do carro sem olhar pra trás. Ela fazia parecer tão fácil.

Eu nem ao menos me movi. Tentei piscar pelo menos, mas o mínimo movimento parecia algo dificílimo para eu fazer.

─ Jem, você está com algum problema? ─ mamãe perguntou, se virando pra mim.

─ E-Eu acho que esqueci meu caderno em casa ─ menti, me esforçando ao máximo ao falar. ─ Acho que vou voltar para buscar.

─ Jemima, eu vi você colocar seu caderno na mochila ─ revelou mamãe e ela parecia preocupada. ─ Você está nervosa, meu bem?

─ Estou bem.

Mamãe soltou um suspiro cansado, o que deixou bem claro que ela não tinha acreditado em mim. Cara, eu deveria aprender a mentir melhor ou parecer controlada pelo menos.

* * *

O nome da escola era Middleton Hight School (só Middleton para os íntimos), e ela era basicamente um prédio enorme azul acinzentado, duas quadras de esporte, um pátio e um jardim interno. Era uma escola normal como qualquer outra.

Adentrei o prédio, um pouco receosa, andando com cuidado para não tropeçar em nada, algo que eu fazia com muita frequência porque eu não costumava ser muito atenta.

O ano letivo já havia começado há três meses, por tanto eu começaria com um certo atraso, mas eu era uma boa aluna em alguns aspectos, então achei que não seria tão difícil.

Fui até a secretaria pegar meu “kit aluna nova” que era basicamente um mapa da escola, número e senha do armário, horário das aulas e números das salas, livros escolares e um certificado de aluno novo para entregar a todos os professores. A secretária me entregou tudo enquanto sorria pra mim de um modo esquisito, ou seja, com o que deveria ser o seu melhor sorriso de boas vindas.

Enquanto eu ia a caminho da sala de aula de História ─ no terceiro andar, sala trezentos e quatro ─ agradeci mentalmente por não ter nada de especial e/ou estranho comigo, porque eu realmente não estava afim de chamar atenção. O lado bom é que ninguém me olhava por mais de cinco segundos, por tanto eu não me senti envergonhada.

Antes de entrar na sala, segui o velho esquema do aluno novo medroso: fechei os olhos, contei até dez, respirei fundo e entrei junto com um grupinho de alunos para não chamar atenção.

Realmente havia dado certo, porque quase ninguém olhou pra mim. A sala não estava muito cheia, havia umas boas carteiras vazias, então eu escolhi uma aleatoriamente e me sentei. Dei uma olhada no relógio em cima do quadro negro e vi que faltava dez minutos para bater o sinal.

─ Ei, garota da frente ─ resmungou uma voz atrás de mim. ─ Você não pode se sentar aí.

Era só o que me faltava, pensei desanimada enquanto eu me virava para trás pra ver quem era.

Era um garoto, um garoto me olhando com tanto desprezo como se eu fosse uma mancha nojenta na parede. Seu rosto ostentava um sorriso sarcástico que de outra perspectiva me parecia intimidador somado ao piercing em seu lábio inferior. Ele tinha um sotaque estranho e era até bonito se você deixasse de lado a expressão de desgosto dele (depois de um tempo percebi que o fato dele ser desagradável não era só restrito à mim, aparentemente ele era assim com qualquer coisa).

─ Desculpa, eu sou aluna nova ─ esclareci, um pouco intimidada, metade pelo olhar furioso dele, metade pela sua beleza. ─ Já tem alguém sentado aqui?

─ Não e se eu fosse você não tentaria ser a primeira ─ avisou ele usando um tom ameaçador e um sorriso frio.

Veja bem, eu não estava irritada com aquele cara, já tinha lidado com muitos outros iguais a ele antes. Além disso Josephine era minha irmã e eu não acreditava que podia existir um ser humano pior que ela.

─ Por que não? Você vai colar chiclete no meu cabelo quando eu não estiver olhando? Muito perigoso, estou até tremendo ─ debochei, achando aquela situação um tanto cômica.

Cara, como eu estava errada. O sorriso no rosto do garoto sumiu e ele parecia furioso pela minha atitude. Tudo bem que havia um toque surpreso em seu olhar, mas ainda sim ele parecia bem irritado.

─ Você acha que é engraçadinha? ─ ele questionou, se erguendo sobre a carteira e me fazendo recuar na hora. Eu tinha quase certeza de que ele iria bater em mim. ─ Você vai ver como é engraçado se você não sair daí. Agora.

Olhei desconcertada ao redor e vi que algumas pessoas olhavam em minha direção com a expressão neutra, como se eu e o garoto loiro estivéssemos apenas tendo uma conversa calorosa.

─ Olha, é s-s-só um lugar ─ gaguejei. Droga, eu não tinha que ter gaguejado! ─ Não precisamos brigar por causa disso. Apenas, sei lá, ignore que tem alguém aqui sentado e…

Mas ele não me deu tempo de terminar minha enrolação, porque ele empurrou a carteira com tudo e eu automaticamente gritei, fechei os olhos e protegi meu rosto. O sinal bateu e eu sabia que estava bem ferrada.

Esperei pelo soco ou que quer que o garoto fosse fazer, mas não veio nada. Em vez disso…

─ Sr. Harris, se essa mão erguida quer dizer que você vai bater nessa aluna é melhor o senhor parar por aí ─ alertou uma voz masculina ao longe. ─ O diretor Cables não aguenta mais suas idas até a sala dele e o seu privilégio… bem, pode ser repensado.

Ao poucos abaixei minhas mãos e abri os olhos. O tal Harris estava mesmo com a mão erguida, mas quando ele captou meu olhar abaixou-a rapidamente e a levou casualmente ate seu cabelo louro arrepiado.

─ Eu não ia bater nela, Sr. London ─ o rapaz disse, se sentando mas logo em seguida sussurrando para que só eu pudesse ouvir. ─ Não ainda.

Era um recorde, só podia ser. Em menos de uma hora naquela maldita escola e eu já tinha um inimigo e uma promessa de retaliação.

─ Melhor assim… Hm, e você senhorita? ─ questionou a voz.

Virei-me e vi que quem estava falando era um homem sentado na mesa do professor. Ele devia ter a idade do… bem, meu pai, mas com toda certeza parecia mais “conservado”. Ele fez um aceno com a mão eu fui até ele.

─ Aluna nova, eh? ─ perguntou ele, enquanto colocava seus óculos de grau. ─ Qual o seu nome?

─ Jemima Vektor ─ respondi, colocando sobre a mesa meu certificado de aluna nova.

Sr. London teve um sobressalto e deixou seu óculos caírem na mesa, quicarem e baterem no chão. Por sorte, quando me abaixei para pegá-los, eles não estavam quebrados.

─ Está tudo bem, senhor? ─ indaguei, enquanto colocava os óculos no lugar.

─ Não é nada ─ ele disse rápido demais

Sr. London parou de anotar e olhou para mim, me avaliando, e logo em seguida assentiu.

Depois que ele me entregou o certificado, voltei ao meu lugar. Harris me olhou malignamente e eu cometi o erro de olha-lo diretamente em seus olhos verdes que pareciam tentar me amedrontar mas que na verdade não conseguiram causar o efeito esperado. Harris poderia parecer assustador pra qualquer um, mas pra mim ele não causava esse tipo de efeito.

Sentei em meu lugar e não falei nada, nem ele tão pouco. Talvez ele tenha se dado conta de que não iria conseguir me assustar ou tenha me achado muito chata para ser alvo principal. A segunda opção me pareceu mais real.

Ou o Sr. London levava jeito com magistério ou o conteúdo era muito fácil. A aula de história passou voando, e só houveram explicações e exercícios no livro para fazer em casa. Se aquela matéria continuasse daquele jeito, então não seria problema pra mim.

Quarenta minutos depois e a aula chegou ao fim. Harris não falou comigo novamente o que foi um alívio e saiu da sala como um furacão, e talvez esse fosse o adjetivo que o descrevesse melhor: um furacão.

Minha próxima aula era no andar debaixo. Ao que parecia eu tinha que mudar de sala dependendo que disciplina fosse e minha turma não era fixa, ou seja, eu estudava com todos os alunos do terceiro ano em horários diferentes.

Era aula de inglês. A professora, Srta. Mommy, era jovem e bonita, o que atraía a maioria dos olhares. Quando eu levei para ela meu certificado, ela tinha sido simpática comigo.

O tal garoto loiro, não-sei-o-nome-Harris, não estava nessa aula e nem na próxima que tinha sido geografia, horrorosamente tediosa.

E aí chegou o intervalo, o meu terror. Pensei em ir até o refeitório, mas não estava com fome e não estava nem um pouco afim de ir até lá só pra observar os outros comerem.

Em vez disso, fui até a biblioteca e peguei um livro qualquer, apenas para matar o tempo. Fiquei um pouco surpresa com a quantidade de pessoas ali durante o intervalo, porque eram muitas.

─ Você vai pegar esse livro? ─ perguntou uma garota, sentada na mesa ao lado da onde eu tinha acabado de sentar.

A garota me olhou com seus olhos castanhos brilhantes e carregava um pequeno sorriso. Dei uma boa olhada no livro, que tinha um cara loiro sem camisa na capa que brilhava, e entreguei o livro pra ela.

─ Obrigado ─ ela agradeceu enquanto se afastava ─ Estou louca pra ver o filme!

E saiu. Eu mesma não esperei que ela ficasse para conversar e então viraríamos amigas. Bem… talvez, mas eu acho que isso era efeito dos muitos filmes de bobinhos que eu era obrigada a assistir com Jo.

O recreio acabou sem mais alguma surpresa. Minha próxima aula seria química, no laboratório, mas eu acabei rodando a escola toda sem saber para onde ir.

─ Que legal, me perdi no primeiro dia ─ murmurei para mim mesma. ─ Só falta eu abrir um portal para um mundo paralelo.

Depois de um certo tempo desisti de procurar a droga do laboratório, porque há uma certa altura eu me toquei que não tinha jeito, eu não conseguiria encontrar. Em vez disso, fui até o meu armário, pegar alguns livros para a próxima aula.

Sentei-me no banco que ficava do lado de fora da sala de aula de espanhol e aguardei.

O corredor estava vazio, exceto por mim. Por um momento me senti um pouco solitária. Mas antes que eu pudesse pensar em me sentir triste, a porta da sala de inglês (ficava ao lado da de espanhol) foi aberta e alguém saiu por ela.

Era o Sr. London. Ele estava arrumando sua gravata e murmurando algo como “maldita mesa, devia ser ortopédica…”, mas parou automaticamente quando me viu.

─ Ah… Srta. Vektor ─ disse ele em uma voz gutural. ─ Você não devia estar em aula agora?

─ Eu não sei onde fica o laboratório de química ─ expliquei, dando de ombros ─ Vou esperar bater o sinal para a próxima.

O Sr. London franziu o cenho e olhou para o relógio prateado em seu pulso.

─ Mas ainda falta meia hora para a próxima ─ disse ele.

─ Eu sei, mas eu não tenho muitas opções ─ murmurei, um pouco envergonhada. Era como se eu tivesse dito “então, não sei se você percebeu, mas eu sou uma idiota”, pois eu me senti como se tivesse dito isso.

Sr. London olhou novamente para o seu relógio, ajeitou a gravata e voltou seus olhos cinzas para mim. Havia algo neles que me deixava confortável em sua presença, como se eles estivessem dizendo “seja você mesma, mesmo que não seja legal”, mas acho que isso era coisa de professor.

─ Bem, eu tenho uma garrafa de chá na minha sala ─ ele revelou, sorrindo. ─ Se quiser tomar um pouco, pode me acompanhar.

Nem pensei a respeito e aceitei. Eu queria conversar com alguém e o Sr. London parecia ser um cara legal. Eu já tinha tido alguns professores como amigos anteriormente, e agora eu estava em uma nova escola, precisava de umas amizades do corpo docente da Middleton.

A sala dele era a sala que eu tinha tido minha primeira aula, então cheguei a conclusão de que os professores davam as aulas em suas salas e era por isso que os alunos não tinham uma turma fixa.

Sr. London sentou-se em sua mesa e eu sentei-me de frente pra ele. Observei-o enquanto pegava uma garrafa térmica verde e despejava chá em canecas.

─ Então, Srta. Vektor… ─ ele começou, mas eu o interrompi.

─ Pode me chamar só de Jemima ─ falei, porque odiava que as pessoas me chamassem pelo meu sobrenome. Eu não gostava dele.

─ Ah, como preferir. Então, Jemima ─ ele recomeçou e sorriu quando disse meu nome. ─ Você se mudou para Fresno, hm? Está gostando?

Eu não sabia como ele sabia que eu tinha mudado de cidade e não só de escola, mas não quis perguntar o porque. Acho que estava escrito na minha ficha de aluna nova.

─ É uma boa cidade ─ respondi, pegando minha caneca. ─ É melhor que Decatur, a cidade onde eu morava. É mais movimentado.

─ E por que você veio pra cá? ─ ele indagou. ─ Decatur é um pouco longe daqui.

─ Meus pais se separaram ─ revelei, apertando meus dedos contra a palma da mão. Minha unhas estavam arranhando mas eu tentei ignorar aquilo. ─ Então… eu vim morar pra cá com a minha irmã e a minha mãe.

Sr. London empurrou uma caneca cheia de chá em minha direção e eu a peguei, sentindo meus dedos ficarem aquecidos com a temperatura quente.

─ E porque você não ficou com o seu pai? ─ o tom da sua pergunta foi delicado. ─ Você não gostava dele?

Meu cérebro deu pane e eu quase deixei o chá cair na mesa mas recuperei o controle da minha mão a tempo e coloquei a caneca na mesa. A palavra “pai” causava esse tipo de reação em mim, como se alguém tivesse me acertado com uma arma de eletrochoque.

Eu não podia responder aquela pergunta. Simplesmente não conseguiria e eu não era muito boa mentindo.

─ Então, Sr. London, há quanto tempo o senhor dá aula aqui? ─ desconversei, tentando controlar o tom da minha voz.

Ele percebeu que eu não queria falar do meu pai e seu olhar estava me confortando, disso eu sabia. O Sr. Vektor era um assunto que me travava e eu queria falar aquilo para o Sr. London, mas eu não conseguiria.

Isso estava muito além para mim.

─ Não há muito tempo ─ ele respondeu, bebericando seu chá. ─ Eu dava aula em Cannes, antes de vir pra cá.

─ Minha mãe nasceu em Cannes! ─ exclamei animada e me esquecendo de meu pai. Cannes é uma cidade ao sul da França, e embora eu nunca tenha ido até lá mamãe costumava dizer que era uma bela cidade,

O Sr. London sorriu carinhosamente para mim e assentiu.

─ Sim, e lá é uma boa cidade ─ murmurou, seu olhar perdido em nenhum ponto específico talvez em suas lembranças. ─ Mas eu precisei ir embora

─ Por que? ─ perguntei, logo em seguida desejando não ter o feito.

Era uma pergunta muito pessoal e embora estivéssemos em uma conversa descontraída eu preferia ter ficado quieta.

Mas ao contrário do que eu achava, o Sr. London achou que era uma boa pergunta. Ou pelo menos pareceu que sim.

─ Por causa de uma mulher ─ ele respondeu simplesmente. ─ Sempre há uma mulher.

Minha boca ficou seca e minha mão tateou pela mesa em busca do meu chá. Meus dedos agarraram a caneca quente e a apertaram.

─ Desculpe, eu não queria ter feito uma pergunta tão pessoal ─ expliquei, sentindo meu rosto esquentar. ─ Desculpe.

─ Não, tudo bem ─ ele disse enquanto sorria. ─ Na verdade você me lembra ela. Exceto pelos olhos.

Assenti e dei um sorriso enquanto bebericava meu chá. Se eu não queria falar dos meus assuntos pessoais eu não forçaria o Sr. London a falar sobre os dele. Esperei em silêncio para que ele falasse alguma coisa.

─ Então, está gostando da Middleton? ─ ele perguntou gentilmente.

─ Parece ser um lugar legal ─ respondi, mais relaxada com a direção para onde a conversa estava indo. ─ Mas acho que nenhum dos alunos quer ser meu amigo. Mas por mim tudo bem.

─ Por que tudo bem? ─ Sr. London parecia curioso. ─ Vocês, adolescentes de hoje, parecem que tem necessidade de andar pra lá e pra cá cercados de pessoas.

Suspirei audivelmente. Ele estava meio certo, eu gostaria de andar com algumas pessoas, criar algumas amizades, mas eu não tinha necessidade daquilo. Se eu tivesse eu mesma já seria o suficiente porque na maioria dos aspectos eu funcionava melhor sozinha.

─ Eu não sei, eu nunca tive amigos para comparar ─ admiti dando de ombros.

Silêncio. Sr. London não sabia o que dizer, e quando olhei para ele, ele estava me olhando com um ar de pena mas eu sorri e murmurei um “tudo bem”, porque estava tudo bem realmente.

─ Eu não entendo isso ─ ele admitiu. ─ Você é uma garota legal Jemima. Nunca deixe as pessoas lhe dizerem que não, as pessoas geralmente não sabem de nada.

Ele sorriu para mim e assentiu, e eu fiz o mesmo, sorrindo também.

* * *

A aula de Sociologia era a próxima. Quando entrei a sala, algumas pessoas já estavam ali, entre elas a última que eu queria ver naquele dia.

─ Olá, Vektor ─ saudou Harris, de pé e encostado em uma das carteiras. ─ Você não vai querer arriscar de se sentar perto de mim novamente, ou vai?

Ignorei-o e me sentei o mais longe possível. Eu até queria tentar fazer amigos na Middleton, mas aquele garoto seria de longe a minha última opção.

─ Boa ideia ─ ele aprovou, dando uma risadinha de deboche.

Joguei minha mochila na carteira, que escorregou para a cadeira e caiu no chão, mas eu não liguei para aquilo.

─ Cale a boca! ─ gritei, virando-me para Harris e o encarando seriamente. ─ Pare de tentar me intimidar.

Os olhos dele faiscaram e eu engoli em seco. Por um momento sua expressão ficou tensa, mas em menos de um segundo depois o mesmo sorriso sarcástico estampou em seu rosto.

─ Eu não estou tentando te intimidar ─ ele murmurou, andando até onde eu estava. Levantei-me e fiquei de pé, em frente a ele, olhando-o direto nos olhos. Eu era um pouco baixinha mas Harris não era tão mais alto que eu, então aproveitei aquilo para encara-lo. ─ Eu te intimido. E não só a você, se quer saber.

Nenhum de nós dois disse nada, apenas continuamos naquele silêncio que não era desconfortável, e sim mais como um terceiro elemento na cena, uma parede de vidro. E com tanta proximidade entre nós eu senti uma vontade inédita: uma vontade imensa de fechar o punho e acertar a cara dele, um bom gancho de direita em baixo daquele queixo que estava erguido como se ele fosse… não, como se ele pudesse ser superior a mim.

E ele, com certeza, não era.

─ Desculpe interromper o casal ─ disse uma voz feminina severa. ─ Mas eu gostaria que a senhorita não beijasse meu filho em minha aula.

Senti como se tivessem me dado um choque na nuca e dei um pulo pra trás, batendo com as minhas costas contra uma carteira. Olhei para a senhora parada na porta, consciente de que todos na sala olhavam pra mim e eu senti meu rosto esquentar.

─ Eu não ia… Não ia… Eu quero dizer, eu não… ─ eu não conseguia falar porque eu senti uma boa quantidade de saliva querendo escapar entre meus lábios. Toda vez que eu estava nervosa eu começava a babar loucamente, era incrível.

─ Eu não ia beijar ela, Sra. Harris ─ Harris respondeu, fazendo uma careta.

─ Sra. Harris, sério? ─ a mulher indagou, adentrando a sala de aula.

─ Tudo bem, Nancy, ou eu deveria dizer Sra. Harris mesmo depois de você ter traído seu marido... ─ Harris gritou, erguendo os braços. ─ Mamãe?

Nancy/Sra. Harris/Professora de Sociologia, deixou a boca se entreabrir de espanto mas logo se recompôs e foi para a sua mesa, embora eu ainda pudesse ver um leve rubor em seu rosto.

Eu e Harris assentimos e fomos para os nossos lugares, mas eu parei um pouco antes para que ele me ultrapassasse.

─ Você é um insensível ─ murmurei, quando ele passou por mim.

─ E você uma boa observadora ─ ele acrescentou por mim, mas sem me olhar.

Observei ele se sentar em seu lugar e então fui para o meu.

A aula de Sociologia passou rápido, sem mais problemas com Harris ou com a mão dele, ou com qualquer outra pessoa. Várias vezes peguei os outros alunos lançando olhares de soslaio pra mim, entre eles uma menina sentada na fileira ao lado, duas carteiras atrás de mim. Ela tinha o cabelo castanho claro e olhos da mesma cor só que em em um tom mais escuro, e me encarava na cara dura, não parando mesmo depois de eu tê-la flagrado várias vezes.

Um pouco antes de terminar a aula, fui até a mesa da professora levar meu certificado. Esperei que ela fosse me dar boas vindas como todos os outros professores, mas ao que parecia ela era igual ao seu filho: ia direto ao ponto.

─ Não ligue para o meu filho ─ ela murmurou, enquanto anotava meu nome no seu diário escolar. ─ Na verdade, ignore ele ao máximo. Ele precisa saber o quanto as pessoas são incapazes de suporta-lo para ver se aprende algo.

Arregalei os olhos ao ouvir aquilo, mas logo em seguida disfarcei e não falei nada. Eu provavelmente não deveria sentir pena do Harris, mas como a mãe dele podia dizer aquilo sobre ele? Não é o tipo de coisa que você pensa ouvir de uma mãe falando sobre seu filho.

Mas, afinal, não falei nada. Apenas peguei meu certificado e voltei para o meu lugar.

* * *

Quando bateu o sinal as três da tarde, vi o carro de mamãe parado ao lado da calçada da escola. Respirei fundo e caminhei até ele.

─ E aí, como foi? ─ ela perguntou animada, enquanto eu me sentava ao lado dela.

─ Ah, foi ótimo ─ menti, dando um dos meus melhores sorrisos para convence-la. ─ Bem… Como foi o trabalho na Army’s?

Mamãe sorriu, como se alguém tivesse colocado o sol no rosto dela. Ela era assim, se você perguntasse para ela sobre seu trabalho, suas filhas, Breaking Bad ou sobre sua juventude em Cannes.

─ Foi tão bom, quero dizer, é um lugar legal e as pessoas são ótimas, é dinâmico e eu tenho a minha própria sala. Então… onde está Jo?

Olhei pela janela ao meu lado e dei uma batidinha com o dedo no vidro para minha mãe ver.

É claro que aquela garota risonha caminhando entre as líderes de torcida e os garotos do time de futebol era Jo, minha irmã.

Senti uma coisa fria dentro do meu peito, algo que reconheci como sendo inveja. Não era o tipo de sentimento que eu sentia com frequência, mas foi automático. Inveja e um pouco de humilhação, mas não fiquei tão impressionada com aquilo. Na antiga escola nós já éramos assim, então porque deveria mudar só porque nós mudamos de escola? Isso não é um filme de adolescente brega dos anos noventa, e muito menos eu sou a principal.

─ Essa escola é maravilhosa! ─ Jo anunciou, se jogando no banco do passageiro. ─ Marciele, Natalie e Samantha me convidaram para fazer a audição para entrar no time das líderes de torcida. Elas disseram que eu tenho potencial.

E durante todo o percurso até em casa Jo comentou sobre o quanto seu dia fora maravilhoso, enquanto eu, em silêncio desejava que as coisas fossem mais fáceis para mim também.


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Notas finais do capítulo

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