Um jeito de ser bom de novo escrita por Sassenach


Capítulo 10
Capítulo 7




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ACORDEI COM UM FEIXE DE LUZ que entrava pela janela do avião. Me espreguicei gostosamente e senti uma tremenda dor nas costas. Eu dormira bem, mas com certeza numa posição nada agradável. Olhei para os lados e vi que os outros passageiros também estavam acordando, alguns já tomavam café da manhã. Soraya estava acordada, sentada em sua poltrona e lendo um livro. Entrenós dois, Sohrab dormia profundamente m sua poltrona. Estranhei que seu sono fosse tão pesado assim. Soraya leu meus pensamentos e disse baixinho, para não acordá-lo:

— No meio da noite, enquanto você dormia, ele se revirou milhares de vezes e por fim me cutucou. Disse que não conseguia dormir de jeito nenhum. Então chamei uma comissária que deu para ele alguns calmantes, já que ele não pode tomar remédio para dormir. Então eu perguntei se ele queria que eu lhe contasse uma história, para ver se lhe ajudava a dormir. Ele disse que sim, então contei um velho conto, que minha mãe lia para mim quando eu tinha a idade dele. Quando cheguei ao fim, olhei para o lado e ele dormia tranquilamente.

Ter que acordá-lo de um sono tão bom parecia crueldade então deixei que ele dormisse por mais algum tempo. Levantei do meu assento e ajudei Soraya a pegar as bagagens que estavam sobre nossas poltronas. Acordei Sohrab gentilmente e pedi que ajudasse com as malas. Pegamos o carrinho e saímos do avião. Estávamos a uma cidade de Cabul.

SOHRAB ERA A PESSOA MAIS INQUIETA naquele carro. Estávamos dentro de um táxi que nos levaria até um hotel, em que nos hospedaríamos por um dia, que seria o tempo preciso para apresentar todos os documentos, provando que aquela era minha a casa e que podia entrar nela. Postos comunitários instalados pela cidade estavam procurando arquivos e documentos das casas da região. Se fosse comprovado que a casa pertencia a tal pessoa, essa podia entrar e sair quando quisesse. Se não encontrassem o dono ou se esse houvesse morrido, ou sido morto o que era mais comum, a casa se tornava um abrigo para moradores de rua. Com muita sorte, as escrituras da casa de baba chegaram as minhas mãos antes da viajem, e era só apresenta-las num dos postos, para que eu pudesse ocupar a casa.

Na verdade, meus planos não eram exatamente ocupar a casa. Parte de mim queria entrar ali, limpar tudo, lavar os pisos, portas, janelas; limpar os quartos, trocar as roupas de cama, arrumar cada objeto em seu devido lugar; enfim, parte de mim queria que aquela voltasse a ser a minha casa. Essa parte tinha o desejo de entrar lá para nunca mais sair. Ao mesmo tempo, outra parte, imersa em arrependimento, tinha vontade de passar reto pelo portão, ou se limitar a espiar por uma fenda na porta. O que importava é que nesse momento eu estava indo por Sohrab. Soraya descansava do lado direito com a cabeça na porta. Eu estava na outra ponta e Sohrab entre nós novamente. Eu estava olhando pela janela apreciando a vista da terra em que nascia.

Tenho que admitir que o cenário não havia mudado muito desde a última vez em que estivera lá, quatro anos antes. A terra era árida, suas frondosas árvores foram arrancadas, prédios e casas estavam reduzidos a ruínas, pessoas morrendo de fome se encontravam nos cantos mais pobres. Mas mesmo assim, eu me sentia bem ali. Eu poderia morar em vários continentes e viver em vários países, mas nascera ali e tinha uma certeza: era ali que eu gostaria de viver meus últimos dias e morrer. Não havia lugar mais próprio para chamar de lar do que a terra do Afeganistão. Os sinais da devastação se espalhavam em todas as partes, mas em compensação, sinais de esperança também estavam por ai: os postos de ajuda comunitária, pessoas que passavam pela rua e davam algum alimento a quem tinha mais necessidade. Eu sabia que o garoto ao meu lado pensava do mesmo jeito, ou pelo menos, pensava que ali era sua terra. O vento frio batendo no meu rosto, entrando pela janela, me fazia fechar os olhos e lembrar os dias que passei ali.

Perguntei ao motorista se estávamos próximos do hotel, e ele disse que sim, mas que precisaríamos fazer uma parada para abastecer. Quando ele encostou o carro perto das bombas de gasolina pediu para que descêssemos do carro e fossemos até a loja de conveniência, para comermos alguma coisa. Soraya despertou e saiu do carro. Fomos até a loja e pedimos alguns salgados e café. O cheiro de tabaco que vinha de dois homens fumando ao lado me fez lembrar de baba. Nos sentamos em um mesinha e o motorista veio até nós:

— Vocês se incomodam em esperar mais um pouco agha? Tenho que calibrar os pneus, mas prometo que será rápido. — eu disse que tudo bem e ele foi até o carro. Levou o veículo até o local para calibrar os pneus. Antes que ele pudesse pegar a bomba, três homens com turbantes na cabeça e barbas cumpridas o interromperam. Eles apontavam para ele, para o carro e para... Nós! Olhei para Soraya e ela apertou a minha mão em cima da mesa. Ficamos alternando olhares entre os três homens e entre nós. Eles conversavam e o homem se virou e apontou para nós também. Os três ficaram nervosos e aumentaram o tom de voz. Eles falavam com forte sotaque urdu, e eu não conseguia entender o que diziam. Depois de uns cinco minutos eles foram embora, e o homem veio até nós com o rosto branco. Ele apoiou uma mão na mesa e apontou o dedo indicador da outra para mim:

— Não me disse que eram fugitivos do Talibã! Se eu soubesse que você é o americano que aquele talib branco está procurando eu jamais teria ajudado vocês! — senti meu rosto esquentar e minha barriga doer. Eu estava tremendo e soltei a mão de Soraya para que ela não percebesse. Ergui os olhos para o homem:

— Você... Você disse a eles que somos nós?

— Não! Eu tenho honra agha! Não querer ajudar fugitivos é uma coisa, mas entrega-los é outra. Eu prometi leva-los até o hotel e é o que vou fazer. Mas vocês não vão poder ficar circulando pela cidade. Vão para o hotel e amanhã pedem para outro carro leva-los até a casa.

Concordei balançando lentamente a cabeça. Coloquei o rosto entre as mãos. “A chance de encontrar com ele é quase zero.”, disse Farid. Mas eu devia saber que comigo, as chances zero se transformam em 99,9%. E era o que estava acontecendo: estavam me procurando. O homem não nos entregou, mas a chance que qualquer outro fizesse isso era grande. Me arrependi pelo meu pensei, de que seria bom morrer ali, e resolvi tomar cuidado com meus próprios pensamentos. Voltamos para o carro e fomos para o hotel. Pegamos a chave com a recepcionista e nosso taxista nem se deu ao trabalho de se despedir e nos esperar entra no prédio. Abri a porta do nosso quarto e me joguei na cama de casal. Estava muito nervoso. Soraya meu abraçou e ficou balbuciando coisas como: “Calma, eles não vão nos encontrar.”, “Vai ficar tudo bem”, “Você vai curtir essa viagem.”. Sohrab foi direto para a cama de solteiro e se deitou virado de costas para nós. Dois minutos depois ele pegou no sono. Fui tomar um banho e depois me deitei ao lado de Soraya para cochilarmos.


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