Avatar: A Lenda de Yan escrita por Leonardo Pimentel


Capítulo 9
Três Anos Depois


Notas iniciais do capítulo

26 de outubro. Feliz aniversário Yan! 18.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/546296/chapter/9

─ Avatar, você está crente de que a dobra de sangue vai mudar tudo? ─ pergunta um repórter, apontando uma caneta questionadora para mim. ─ A comunidade está curiosa, como os estudos serão feitos?

Após a pergunta, diversos flashs explodem na minha cara. Estou ao lado de Meelo, o presidente. Eu ainda preciso me apoiar em alguém, se não acabo caindo, devido ao excesso de tempo em pé. Minha perna esquerda ainda dói e incomoda. Mas fico quieto e ignoro a sensação constante de formigamento. Olho para o repórter que me direcionara a pergunta e suspiro, cansado de respondê-la. Afinal de contas, não era a primeira vez que eu fazia um daqueles comunicados aos jornalistas da cidade.

─ A dobra de sangue já foi usada no passado como modo de cura, em diversas pessoas! Mas a maioria tem medo, pois teme que a dobra seja usada para fins ruins. Mas eu, como Avatar digo: o estudo com a dobra de sangue e junto desses excelentes dobradores de ar. ─ aponto para um trio de monges ao meu lado esquerdo. Trajam as mesmas roupas amarelas claras, com ar de simplicidade. Eu gosto deles. ─ Será benéfico para todos nós. Os nosso dobradores de ar, aqueles que trabalham para o governo, desenvolveram a dobra do som e com ela eles auxiliam diversos dobradores de sangue a remover as doenças e trazer a saúde para nós. Quando os estudos forem dilapidados, as explicações mais complexas virão a público e sanarão todas as duvidas.

Quando termino de falar, os flashs explodem mais uma vez em ondas luminosas, enquanto as vozes tentam se sobrepor umas as outras. Kyle está mais a frente e aponta para uma outra repórter, que fica feliz em ser escolhida naquele mar de pessoas.

─ Avatar Yan, como está sua perna? ─ ela pergunta.

─ Estou fazendo minha recuperação aos poucos. Quando tudo ficar ok, estarei voltando ao meu treinamento físico, para aperfeiçoar a dobra de fogo. A princesa Azsa me ensinou tudo o que preciso. Logo me torno mestre na dobra de fogo e seguirei a risca o ciclo dos elementos. ─ falo. Isso me faz lembrar o que aconteceu, três anos atrás.

Desde aquele dia, nunca fui o mesmo. Sempre me reverencio quando vou estudar sobre a dobra de água ou o elemento em si. Atribuo meu ferimento na perna como um castigo dos espíritos pela minha falta de respeito. A estaca de gelo fora produzida pelo meu poder, isso é óbvio, mas foi um aviso. Eu sou o Avatar e necessito me portar como um. E fui castigado pela minha falta de respeito, claro. E depois do acidente, no qual Kyle me salvou, eu entendi também outra coisa: assim como as estações respeitam uma ordem, e o Ciclo Avatar também, eu precisaria respeitar a ordem dos elementos. Fogo viria depois da terra, não água. Por isso do meu bloqueio. Por isso da minha ineficácia.

A estaca de gelo atingiu um músculo importante da perna, o mesmo que me garante estabilidade para a dobra. Estou me curando, obviamente, mas é um processo lento, que ocorre com a cura da água e a dobra de sangue que acelara o processo. O uso contínuo da perna me dá exaustão, mas isso não me impediu de treinar a dobra de fogo. Hoje sou apto a dobrá-lo ao meu bel prazer. Estou feliz por isso. Faltam dois elementos. Água e Ar. Tenho um professor para água, isso eu sei. Mas agora, meu foco é político.

─ Graças a dobra de sangue, os médicos podem acelerar o processo de cura. Certamente que a água é um elemento versátil. Se hoje posso caminhar e dominar os elementos é graças à dobra de sangue. ─ falo, sorrindo. ─ Eu tenho o apoio do presidente Meelo, e de todo os conselheiros e ministros. Mas precisamos saber se a população está de acordo para os estudos. Faremos uma votação dentro de alguns dias, e será quando daremos início ao processo de cura das doenças venéreas.

Os repórteres escreviam freneticamente em seus blocos de notas e berravam ensandecidos, enquanto os guardas se moviam com impaciência mais abaixo, nos degraus inferiores da entrada da mansão presidencial. Os ministros e os conselheiros estavam parados atrás, junto dos nômades de ar e de alguns médicos responsáveis pelas pesquisas. A cidade parecia ter parado. Milhares de pessoas estavam nos assistindo. Haviam câmeras e máquinas fotográficas por todos os lados, num mar de flashs e vozes alteradas. Algumas pessoas, ainda, carregavam cartazes toscamente pintados. Uns enaltecendo minha imagem, outros falando sobre dobra de sangue.

─ ISSO É UMA ABOMINAÇÃO. ─ berrou um cidadão no meio dos outros, erguendo um punho no ar. ─ A dobra de sangue não é natural! É uma arma! O governo quer nos manipular!

Fui pego de surpresa. Os guardas começam a ir para frente, prontos para calar o homem que gritou. Ergo uma mão.

─ Não! Deixem ele falar! ─ grito.

O homem abriu caminho entre as pessoas, empurrando repórteres e outros cidadãos. Não estava sozinho, estava com centenas de pessoas, armadas de cartazes, paus e pedras. O homem não era velho. Tampouco parecia humilde. O bigode grosso e preto e os braços musculosos pareciam intimidadores. Ele apontou o dedo para mim e mesmo de longe, eu sentia sua fúria.

─ Nós sabemos que no passado, o próprio Avatar sofreu nas mãos de uma das piores dobradoras de sangue dos tempos antigos! ─ a voz soa como trovões. ─ Perguntem à princesa da Nação do Fogo, como uma cidade inteira sofreu nas mãos de Hama, a Marioneteira! Vocês são idiotas o suficiente, para não se recordarem do problema que Yakone representou para essa mesma cidade? Como ele matou diversos cidadãos da Cidade da República?

O homem riu, incrédulo.

─ O nosso presidente! Ele quer acabar com os mais pobres, quer dizimar a população mais pobre, para elevar os padrões da cidade. É isso o que ele quer! ─ o homem ergue os punhos com voracidade.

Entre os seus aliados, as pedras e paus voam com velocidade contra mim e o presidente e o conselho, ministros e a polícia. Com um gesto rápido da mão, desvio as pedras com velocidade. Kyle usa a água para agarrar os paus, antes mesmo deles perderem altura. Há diversos gritos, enquanto a impressa corre e se abriga. Meelo ordena para que a polícia avance rápida e as dominações se acendem dos dois lados.

Alguém do lado dos rebeldes, dispara uma explosão acima de nossas cabeças, no palácio. As pedras se desprendem da construção e começam a despencar sobre nossas cabeças. Rolo para um lado, tentando afastar Meelo de algum possível ataque.

─ Kyle, cuida do presidente. ─ grito.

Salto por cima do púlpito, alguém tenta me segurar, mas consigo me soltar. Corro por entre as pessoas, que desesperadas, fogem para todas as direções. Procuro pelo líder dos rebeldes, mas não o encontro.

Esses rebeldes são um problema, desde quando o presidente Meelo mostrou-se a favor da dobra de sangue. E não é o primeiro ataque. E eu pensei que estaríamos seguros hoje. Tolice. Eles são espertos demais, precisam ser contidos. As autoridades acham que eles ainda são resquícios da até então dissolvida, Lótus Vermelha. Sendo ou não, eu iria capturar o líder deles, hoje.

Minha perna está dando fisgadas e a cada passo que dou, na minha corrida, sinto uma dor aguda que sobe pela perna e se aloja na minha cintura. Mas eu a ignoro. Pois vejo o líder dos rebeldes. Eles estão indo para os carros, estacionados a algumas quadras... Movo meu punho de baixo para cima e uma avalanche de terra cresce do solo e vira todos os carros. Os vidros quebram, a lataria amassa e o barulho ecoa pelas ruas. Os carros e o trânsito param, enquanto algumas pessoas descem dos próprios carros, para olhar o que está acontecendo.

─ Parado, Giatse! ─ berro. Dou alguns socos no ar e as labaredas de fogo se acendem, indo na direção dos rebeldes.

Giatse, o líder, toma a frente de seus companheiros e dobra a água de um cantil. A água se molda a sua vontade e minhas bolas de fogo se tornam vapor, que se dissipa e faz-me capaz de ver seu sorriso de triunfo. Giatse é um homem sempre sério, os olhos verdes parecem sempre como os de um “peixe-morto”e toda vez que ele sorri, sinto uma vontade doentia de bater a cabeça dele contra uma rocha. Sorrio de volta, enquanto ele sacode as vestes.

─ Ora, ora, Avatar. ─ diz ele. Sua voz nasal me dá raiva. ─ Veio apanhar mais uma vez? A perninha está... ok? ─ zomba ele, e o grupo ri.

Bufo e sorrio. Ele não vai me tirar de meu bom humor.

─ Entregue-se, vai ser melhor! ─ falo, sem nenhum tremor na voz.

─ Não.

Corro na direção de Giatse, pronto para dominar. Ele ergue as mãos e a água novamente sai de seu cantil, deslizando como uma serpente, pronta para ser usada. Soco o ar algumas vezes, depois completo a sequência com um poderoso chute. O fogo surge do nada, queimando o ar ao redor e indo na direção do homem. Ele ordena e alguns dobradores de fogo tomam a frente e o fogo se dissipa ao comando deles. Urro de raiva.

─ Não se sinta inútil Avatar. Até mais ver.

Os dobradores de fogo amigos de Giatse sorriem e criam o fogo com simples gestos. O fogo rodopia ao redor deles e cresce numa coluna do tamanho de uma árvore e quando volta a se dissipar, eles não estão mais lá. Apenas as buzinas altas soam. Estou sozinho na rua. Esbravejo alto um palavrão e dou as costas, minha trança batendo ritmada em mim. Meus passos ecoam, minha respiração cresce. A primeira fisgada de dor me acomete.

─ GIATSE COVARDE! ─ urro e solto um ganido de dor. Apoio-me na parede. ─ Grr...

A pedra que sempre carrego em meu bolso, desde que cheguei aqui, salta de dentro dele e para na minha mão, num simples gesto. Coloco-a sobre a cicatriz, por cima da calça e faço pressão. A dor some por alguns instantes, o que é necessário para que eu retorne. Preciso de uma sessão de cura. Meelo vai gritar comigo, ah, ele vai, sei que vai. Estou rindo, só de pensar na veia saltando na têmpora dele, enquanto ele aponta um dedo para mim e berra diversos nomes. Sempre me contenho para não rir. O presidente Meelo sempre diz que tentou ao máximo não puxar ao pai, mas sempre que fala alto, sua voz lembra um pouco a dele. Eu já ouvi as gravações do ex-presidente Tenzin. Sorrio com a possibilidade da bronca.

Viro na Rua Dente de Dragão. A fuga gerou alguns estragos pelo caminho; alguns hidrantes antigos jorram água dentro dos prédios, enquanto as sirenes soam altas ao redor. Piso firme no chão e deslizo o pé, para que da terra emerja, numa espécie de proteção para o hidrante, fazendo com que a água pare. Suspiro e olho ao redor. Continuo minha caminhada na direção do centro, onde se localiza o palácio presidencial. Mesmo de longe, já consigo ver a faixa amarela de isolamento, com letras garrafais escritas em preto, mandando todos se afastarem. Do segundo andar o palácio, que agora parece uma estrutura frágil, a fumaça cinza espirala na direção do céu. Não existe sinal de Kyle aos arredores. O presidente deve estar enclausurado no prédio. Olho para trás no instante preciso quando ela me abraça.

─ Ai! Minha perna! ─ gemo de dor e sorrio.

─ Desculpa, desculpa. Tá doendo? ─ pergunta Azsa, olhando com cuidado, como se o peso do olhar dela fosse piorar a dor.

─ Um pouco. Precisei correr atrás do Giatse e da gangue dele. ─ suspiro coçando a cabeça. Sempre tenho vergonha, quando estou perto dela, por mais que ela...

Azsa me dá um beijo demorado, nossos lábios se movendo uns contra os outros. Os dela são tão firmes e cálidos e quentes, que eu sempre quero mais. Agarro-a pela cintura e a trago para perto de mim. Estamos quase sem fôlego, quando ela se afasta, com as mãos em meu peito.

─ Que fôlego, dobrador de terra... Vai precisar disso nas nossas aulas finais de dobra de fogo. E no seu teste, é claro. ─ ela ri e me beija novamente. ─ Você precisa ir em mais uma sessão de cura, amor.

─ Antes... Minha princesa mexeu alguns pauzinhos para que eu passe com facilidade no teste? ─ pergunto, fazendo voz de quem vai aprontar.

─ Você não precisa disso, Avatar Yan!

Azsa me segura pela mão direita e me puxa. Minha pedra de proteção ainda faz pressão sobre a cicatriz da minha ferida. Não preciso mover meu corpo para mantê-la lá. Nos últimos dois anos, meu treinamento mental se elevou num grau poderoso. Não aprendi nenhuma dobra especial, ou seja: sem metal, sem lava. Mas, eu tenho treinado pesado no fogo e no próximo final de semana, meu teste final acontece. Se tudo der certo, é menos um elemento a me tornar mestre.

No caminho para o hospital, Azsa me conta o que fizeram enquanto eu sai correndo atrás da gangue de Giatse.

Mas você deve estar se perguntando: o que houve com Jaya, o Conquistador? Eu não sei. Para ser sincero, nem mesmo os líderes mundiais sabem. O último vislumbre de sua existência que temos na memória, foi quando há um ano, o presidente Meelo tentou uma investida contra a Cauda de Texugo, no oeste do continente da terra. A retaliação dos exércitos de Jaya foi gigantesca. O que me perturbar é a grande quantidade de vitória que o tirano vem conquistando, sem nem mesmo estar presente em campo de batalha.

Na mesma semana na qual perdemos essa batalha, Jaya conquistou outra ilha no leste da Nação do Fogo e desde então, de lá vem saindo armamento pesado. Alguns dizem que Jaya está deixando de lado a guerra das dobras e está investindo em algo “que vai além do que qualquer humano pensou”, como dizem os generais. Eu sinto medo. Desde minha chegada à esta cidade, eu estou criando laços. Azsa tornou-se minha namorada. Estamos juntos há alguns meses. Kyle se tornou meu mentor. Ainda temos nossas discussões, mas eu o considero demais. Existe o presidente Meelo, com toda sua sabedoria e modo doido de ser. E as pessoas, que me querem bem, que me dão suporte sempre. Jaya pode me atacar a qualquer instante. E ele sabe meus pontos fracos. As câmeras estão sempre mostrando. Não duvido de nada, que nesse instante, existam pessoas disfarçadas, fotografando a mim e a Azsa, nossas mãos dadas no foco das lentes. Temo isso mais do que nunca. As pessoas não têm limites. Uma foto dessas vale uma fortuna. O que é nossa segurança, quando se tem muitos yuans em jogo? Sorrio.

─ Que foi, texugo? ─ pergunta Azsa, mexendo no meu cabelo. Não ligo.

─ Estou pensando. ─ estamos passando na frente da bolsa de valores. O prédio é gigantesco, todo de vidro. Olho-me no reflexo. ─ Jaya está tão quieto.

Azsa riu, parou na frente dos espelhos e suspirou. Ela trajava um vestido cor de sangue, que ressaltava seus cabelos e pele branca. Seus olhos são brasas quentes e o sorriso é sincero e bonito. Abraço-a pro trás e olho nosso reflexo. Somos um casal bonito, na medida do possível. Mentira, realmente somos um casal lindo. Ela ri, quando aperto a lateral da barriga dela, onde ela mais sente cócegas.

─ Avisa pro Kyle, que estou com você, se não a galera lá, vai pensar que eu morri. ─ solto uma risada pelo nariz. Azsa me cutuca. ─ Que foi?

─ Não brinca com essas coisas!

Ela apalpa o pequeno bolso do vestido e retira seu telefone móvel. A tela é lisa, o aparelho cabe na palma da mão dela e tudo o que ela precisa fazer é deslizar os dedos, teclar e logo Kyle aparece na tela. O rosto dele exala preocupação.

Azsa! Diga-me que o cabeça dura está ai, ou eu quebro a outra perna dele! ─ sim, sim, Kyle ficou brincalhão e hoje em dia, minhas dores são o alimento de suas piadas.

─ Sim, ele está.

Azsa olhava diretamente para um ponto preto, na frente do aparelho. Era a câmera frontal. Ela tentava ficar séria.

Por favor, Azsa, meu anjo, concedo-lhe as honras... Sabe o que fazer. ─ olho curioso para Azsa e tento entrar na frente da câmera. Quando eu ia perguntar o que era, recebo o recado.

Azsa me dá um soco no braço. Nem dói, mas mesmo assim, eu protesto.

─ Ai! Tá maluco é, cabeça de lula-baleia! ─ tomo o aparelho das mãos de Azsa e olho para Kyle.

Seja menos imprudente, Yan! Passe no meu escritório na volta. Precisamos conversar. Azsa também.

E desligou a conexão, deixando para trás um chiado suave. Olho para Azsa e devolvo seu aparelho.

A minha relação com Kyle se estreitou nos últimos anos. Desde o dia em que eu me feri, ele se sente culpado. Culpou-se por não prestar atenção no ciclo dos elementos e permitir que eu pulasse o fogo. Mas essa culpa fez com que ele se tornasse muito além de um estranho e mestre. Ele se tornou meu amigo. Muitas vezes, ele me lembrava Saofu ─ que dizem, estar em campo de batalha agora mesmo.

Lembro do meu mestre.

Estou no hospital. As portas automáticas abrem e eu entro. Azsa se apóia na bancada de entrada, indicando meu nome. Analiso a pintura na parte de trás do balcão, onde existe uma pessoa em repouso e um curador, sua água sagrada brilhando ao redor do corpo, a luz emanando... Os tons azuis e perolados, casados e em pinceladas suaves chamam minha atenção. A recepcionista mexe em papéis, aparelhos, tecla num computador e por fim nos indica o corredor de sempre.

Do lado direito, cadeiras para se sentar e esperar. Mas todas estão vazias. Elas são verdes claras. As paredes tem tons claros entre o branco e o bege. Há bebedouros de água, uma cesta de lixo e um elevador no fim do corredor. Subo.

Azsa e eu nos beijamos com ímpeto no elevador. Coloco-a contra o espelho, não dando a mínima para a câmera que capta nossa imagem. Ela agarra meu pescoço com os braços e encaixa as pernas ao redor de minha cintura, enquanto eu a beijo. O cheiro dela me incita a querê-la mais e mais. Minha mão calejada toca a coxa dela. Nos afastamos de repente, quando o bipe do elevador soa e a porta se abre no andar pedido. Fico vermelho e saio primeiro, olhando para o chão. O piso branco reflete meu corpo de modo turvo. Dirijo-me à primeira sala à direita e bato. Uma voz de senhora nos pede para entrar. Sorrio ao adentrar.

Maha é minha doutora. Ela é uma senhora de cabelos grisalhos. Os fios brancos tingem os negros como fios de prata na luz parca de um luar. Quando sorri, seus olhos se curvam de modo dócil e sua pele morena é a moldura perfeita para as feições pequenas e frágeis. Sua pele é fina e sempre que ela dobra meu sangue, posso ver as veias de seus braços saltarem, tamanho o poder. Ela veste uma túnica verde clara, as mangas arregaçadas. O cabelo está preso num coque firme.

─ Yan, meu querido, venha. ─ ela estende os braços e eu a abraço. Há um sutil cheiro de alfazema. ─ Senti sua falta.

Aperto-a suavemente.

─ Azsa, minha doce menina, sente-se ali, enquanto cuido do seu menino. ─ a voz dela é musical. Ela parece genuinamente feliz em me ver.

Maha me auxiliou a deitar numa banheira. Nem mesmo precisei tirar a roupa. Olhei para o teto da sala dela. Era escuro como a noite e o lustre de cristal parecia imitar as estrelas. Numa das paredes, estendia-se um enorme tapete de pele de guepardo-raposa. Haviam diversos artesanatos pendurados, típicos do sul, da onde ela veio.

A minha pedra protetora voou da perna para a minha mão, liberando uma onda de dor, que novamente se alojou na minha cintura. A água morna amenizou por alguns instantes. Rodei a pedra entre os dedos.

─ Você tem ficado de repouso, Yan? ─ Maha andou até a lateral da banheira e alisou a borda.

─ Eu...

─ Não! Hoje mesmo, ele tentou mais uma vez pegar o Giatse, sozinho, Maha! Dê uma bronca nele! ─ fala Azsa, em disparada.

─ EI! Você ‘tá do lado de quem? ─ protesto, espirrando água nela.

─ Ela tem razão, menino! Teimoso! Cabeça dura! Cabeça de pedra! ─ Maha simula um cascudo na minha cabeça. ─ Não quero saber de você correndo por ai. Hoje vou tentar uma técnica que aprendi num congresso medicinal, lá no Instituto de Cura Matsuda. Mas você tem que prometer que fará o menos de esforço possível, meu menino. Pois se isso não der certo, estará fora de minhas mãos, a sua cura. Promete? ─ Maha pergunta de um modo tão doce e fofo, que eu cedo.

Ela estende o dedo mindinho. Cruzo com o meu e a promessa está selada.

─ Maha! Meu teste de graduação do fogo... É semana que vem...

─ Dois dias apenas, Yan. Dois dias. Consegue, menino?

Afirmo com a cabeça.

Maha movia o corpo com fluidez e num ritmo interessante. Os braços se moviam na frente, em movimentos para a esquerda e para a direita, um em conjunto com o outro, enquanto a água seguia o movimento. A água ganhou um brilho azulado, enquanto dentro dela, uma luz parecia percorrer meu corpo. Os movimentos das mãos parecia ser aquele quem empurrava a água na base do toque, mas ele apenas comandava a direção do líquido a percorrer. Enquanto a cura acontecia, um som baixo, porém constante, podia ser ouvido. Azsa se aproximou e segurou minha mão. Fechei meus olhos, a respiração suave.

Quando torno abrir meus olhos, deparo-me com Maha reverenciando a água da banheira. Ela terminou. Não sei por quanto tempo apaguei, mas sei que foi tempo o suficiente, para que Azsa cochilasse na borda. A bochecha dela está com uma suave marca vermelha. Ergo-me da água, a roupa encharcada. Maha faz um movimento de puxar e a água abandona os tecidos e minha pele e cabelo e cambaleia na frente da médica. Ela desliza a mão com facilidade e a água volta para a banheira sem emitir um único som. Suspiro.

Maha me conduz ainda, para uma maca metálica, no canto da sala. Eu não a tinha visto antes. Ela apoia minha perna machuca num suporte de madeira, aproxima um banquinho e senta-se bem próxima.

─ Vou dobrar o sangue de sua perna, Yan, menino. Não faça nenhum movimento em brusco. ─ Maha ergue a mão e a desce lentamente.

A técnica funciona, pois sinto como se minha perna houvesse sido desconectada de mim. O sangue fluí de modo diferente e isso é perceptível. Maha move os dedos de modo preciso, enquanto o sangue circula veloz pela perna, indo e vindo.

─ Azsa, arregaça a calça dele! ─ manda Maha, suando na testa.

Azsa obedece sem pestanejar. Minha perna, grande e cabeluda, está a mostra. Enquanto Maha domina meu sangue, seus braços ficam com as veias saltadas. As veias de minha perna saltam também, parecendo que estão prestes a explodir.

─ Quase...

Maha mexe os dedos, como uma condutora de marionetes. O sangue fluí e a perna adquire um brilho suave, avermelhado, como se chamas fossem brotar de dentro para fora. Sinto uma dormência veloz, que vem e some como dissipar do fogo. Aperto nas beiradas da maca de metal e quando me dou conta, Maha abaixa a mão, respirando profundamente. Azsa e ela me observam com aparente assombro, torcendo, talvez. Maha seca o suor na testa e sorri brevemente, dando palmadinhas no ombro de Azsa.

─ Levante-se garoto!

E tudo o que sinto é minha perna normal. Sem dores.


─ Maha curou sua perna? ─ pergunta Kyle, incrédulo, enquanto organiza alguns papéis. Está sentado atrás de sua mesa, no escritório. ─ Não creio...

─ Pois é. Novinha em folha. ─ apalpo onde possivelmente sei que está a cicatriz.

─ Poxa, Yan, você bem que podia pedir para ela consertar sua cara feia.

Azsa e Kyle riem; faço uma careta.

Olho através da janela do escritório de Kyle, para o lago, onde a estátua de Aang se ergue com imponência, como se ele assistisse sua criação. Minha vida, nem de longe, está sendo tão difícil quanto a dele. Aquela estátua é um lembrete constante. A voz de Aang, ou pelo menos, a voz que eu imagino ser a dele, constantemente diz na minha mente: cuide do que é meu. E será que eu estava fazendo o certo?

Kyle estava organizando a mesa, para que saíssemos juntos, para algum bar ou lanchonete que funcionasse a noite. Azsa está com vinte e um anos, depois de tudo. Eu completo dezoito anos amanhã. As coisas são bem. Bem demais, para meu gosto. Viro-me para dentro da sala, olho uma pele de onça do ártico pendurada na parede e depois olho para Azsa. Ela é tão linda, tão encantadora. Acabo sorrindo, e isso a motiva a vir até mim e me abraçar.

─ Pombinhos, se não se importam, eu não sou obrigado. ─ Kyle se ergue da cadeira e saímos pela porta.

A saída do palácio presidencial estava guardada por quatro jovens guardas. Eles nos cumprimentam com sorrisos nos rostos. A noite está fresca, mostrando que o inverno está se aproximando. O céu limpo e pintado com algumas estrelas visíveis me faz sorrir. Olho para a cidade e suas luzes, que parecem querer copiar o céu, sinto-me feliz. Abraço Azsa pela cintura e passo meu braço livre no pescoço de Kyle. Vamos dominar o mundo juntos.

Kyle escolhe uma pequena lanchonete, bem no centro da cidade. Pedimos nossas comidas e estamos em silêncio, olhando ao redor. Há muitos jovens aqui, o fluxo contínuo de pessoas e comida, o som insistente de risadas e uma música ambiente, que junto com a água da fonte que brota da parede, fazem com que o lugar seja gostoso. O interior é iluminado por uma parca luz, o que faz com que eu relaxe. São quase meia-noite, porém, o número de pessoas só aumenta.

─ Pensei que aqui ia ficar vazio. ─ comento, enquanto rolo um palito de dente dentre os dedos.

─ Hoje tem uma coisa especial. ─ é tudo o que Kyle diz, enquanto mexe entretido em seu celular.

Azsa olha para as próprias unhas. A expressão dela, faz com pareça que ela quer sorrir. Mas ela está séria. Muito séria.

A garçonete nos serve com tudo o que pedimos e eu sou o primeiro a comer. Como e fico fitando minha cicatriz, enquanto passo os dedos. A ausência de dor e qualquer sensação desconfortável, faz com que eu fique abobalhado. Maha fez uma cura formidável com a dobra de sangue, o que gerou resultados excelentes. Logo menos poderei me apresentar como mestre de fogo e iniciar minhas aulas de dobra de água. Sorrio.

─ O que foi, Yan? ─ pergunta Kyle, olhando por cima do aparelho. ─ Viu sua imagem refletida no saleiro?

─ Engraçadinho você, Kyle cara de bunda. ─ lanço um pedaço de comida contra ele. ─ Só estou feliz.

─ Mas já? ─ pergunta Azsa, risonha. ─ Imagina só depois...

O relógio da torre do palácio presidencial soa de longe, indicando meia-noite. As badaladas são fortes e ribombam por grande parte da cidade. Quando são doze badaladas, parece que a coisa toda é eterna. A pouca luz da lanchonete-bar diminui e as pessoas gritam ao mesmo tempo, não de susto, mas de excitação. De uma das portas da cozinha, surge uma montanha de comida, com velas explosivas, que cospem faíscas inocentes. Quando olho para Kyle e Azsa, eles estão de pé, movendo os braços, como se fossem manobristas de um aerovião. Não creio no que vejo.

O bolo de cor branca e com morangos vermelhos por ele todo, cada vez está mais perto de mim. O fogo continua a brilhar poderoso, exibindo o pouco clarão do ambiente. As pessoas gritam meu nome e batem palmas, enquanto um coral alto soa em meus ouvidos. Minha visão fica embaçada, quando colocam o bolo na mesa que estávamos ocupando. Kyle e Azsa estão sorrindo abertamente para mim. Só consigo voltar à realidade, quando Azsa diz “Assopre as velas, amor!”.

Olho para todos. Sinto uma felicidade grande, mas também sinto uma sensação esquisita, como se todo o meu corpo adormecesse. Inclino-me na direção do bolo e assopro as velas. As luzes voltam com um estalo, quando recebo um abraço de Kyle e um beijo de Azsa. As pessoas me ovacionam, enquanto todos voltam sua atenção para mim. Muitos ali, eu só vi de vista, durante esses três anos e consegui olhar para rostos que eu conhecia muito bem: o presidente Meelo estava entre as pessoas. Do lado de fora da lanchonete, diversos guardas, alguns, como Kuro, Shiton e Mawa, que praticamente passavam o dia comigo, sorriam de forma amigável. Cobri meus olhos com as mãos, não acreditando na cena.

Alguém gritou em tom alto “Olha a foto!”. Meelo, Azsa e Kyle se juntaram a mim, me amassando numa pose cômica. Azsa exibiu os dedos polegar e médio para o fotógrafo. Kyle sorriu no melhor estilo galã, enquanto Meelo fazia chifre em mim. Sorri sem exibir os dentes. Quando o flash explodiu luminoso, todos uniram as vozes, num coro poderoso, que pareceu fazer o lugar tremer.

─ PARABÉNS YAN!

Eu ainda tremo, quando Kyle me empurra para fora da lanchonete, com Azsa grudada no meu braço. Estamos rindo. As luzes oscilam perante meus olhos, enquanto a cidade está mais movimentada do que nunca. Kyle acena para alguém acima de um prédio alto. Não vejo ninguém. Ouvimos um zumbido alto, um rastro de luz rasga o céu e quando ele chega ao seu ápice, a explosão preenche meus ouvidos. A chuva de faíscas coloridas caí em cascatas de diversas nuances e o céu se ilumina. Olho para Kyle e para Azsa e posso ver as luzes refletidas em seus olhos brilhantes. Abraço Azsa e seguro o ombro do meu professor de dobra de água. Aperto firme os dois contra meu corpo.

─ Eu amo vocês. ─ minha voz soa embargada, posso ouvi-la mesmo com as explosões titânicas no céu.

As luzes continuam deixando rastros de fogo pelo céu, iluminando toda a noite. As pessoas já estavam na paradas pelas ruas, apontando o céu, usando daquele momento para fotografar, gravar aqueles momentos. Haviam casais por todo lugar, abraçados, amigos gritando, outros apontando para mim. Eu estava feliz e não estava sozinho. Carros pairavam pelas ruas, estacionados no meio das vias. Começamos a nos afastar da lanchonete, serpenteando pelas ruas e avenidas da cidade. A queima de fogos durou um bom tempo. Suspirei feliz.

─ Obrigado, Kyle.

Olho para meus pés. Uma sensação estranha invade meu peito.

─ Não há de que, cabeça de poeira.

Azsa me dá um beijo nos lábios e se afasta. Ela, com seus olhos quase dourados, olha meus olhos e dá um sincero sorriso. Eu a trago mais uma vez para perto de mim, o braço em volta da cintura dela. Beijo-a com vontade, como se fosse a última oportunidade. Ficamos sem fôlego. Deixo-a se afastar. Ela sorri, vermelha, e dá uns passos para trás. Fica na ponta dos pés, dá um beijo na bochecha de Kyle e sai andando pela calçada. O vestido vermelho de tecido leve ondula ao redor do corpo dele, dançando no mesmo ritmo dos cabelos negros. Ela olha para trás e acena. Sorrio.

Kyle me dá um abraço apertado. Olho para ele e toco-o no rosto, onde nasce a barba; posso sentir a aspereza da pele. Ele me fita intrigado, e sorri discretamente. Kyle caminha até a beirada da calçada e olha para o céu. A lua está parcialmente coberta por uma nuvem escura e fofa. A luz caí sobre o asfalto e se mistura com a luz dos postes.

─ Se eu fosse descrever você como a água, te descreveria como a água do mar. Uma hora, nós lhe encontramos em calmaria, equilíbrio completo. Mas basta a mais singela brisa, e você se revolta com ondas poderosas e destruidoras. ─ Kyle olha para mim por cima do ombro. Ele não precisa mais olhar para baixo, para conseguir me ver. Praticamente estamos da mesma altura. ─ Você é complicado, Avatar.

─ Talvez.

Kyle riu.

─ Feliz aniversário. ─ ele estendeu um retângulo de papel branco para mim.

Quando virei o papel, lá estava nossa foto. Eu, amassado entre Meelo e Azsa, os chifres no topo de minha cabeça, o sorriso de Kyle na sua melhor expressão. Ele era bonito como Korra. E a careca brilhante de Meelo, que roubava toda a atenção da foto. Segurar aquele papel entre meus dedos me fez temer. Quando voltei a erguer os olhos, Kyle caminhava pela calçada, as mãos juntas atrás do corpo. Olhei para o céu. A lua cheia estava imponente e brilhosa. Dobrei a foto e a coloquei dentro de meu casaco verde. Olhei para o lado o qual Kyle seguiu. Ele não podia ser visto. Tampouco Azsa.

Ali, sozinho, eu decidi.

─ Adeus.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Adeus, Yan! :'(