Antes do Anoitecer escrita por karolzinha13


Capítulo 1
Chapter One: O Último Adeus de Judith




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Chapter One.

O Ultimo Adeus de Judith.

“Dê valor ao que se tem, enquanto se tem.”

 

“Judith!” Meu pai me chamou. Na verdade, ele berrou com todas as suas forças, mas eu, como toda criança de doze anos não ouviria nem se ele falasse em um alto falante, que é claro que ainda não existia naquela época.

Eu estava me divertindo muito com os meninos, não importava para o que o meu pai dizia. Ao contrário da maioria das meninas, eu sempre desafiava os meus pais. Eu não era certa, nem um pouco.

“Judith, eu não quero ter de lhe chamar novamente!”

Eu não quero ter de lhe chamar novamente, era uma frase perigosa. Significava que se eu não fosse imediatamente, sofreria as conseqüências, então me despedi dos meninos e voltei correndo para a grande mansão branca “esculpida pelos deuses”.

Minha mãe estava me esperando em frente à porta com uma feição preocupada e ainda sim extremamente linda. Ela estava usando um de seus vestidos favoritos. Um branco, com uma fita dourada que realçava sua cintura.

“Não pode ficar desafiando o seu pai. Você sabe como ele é.” Ela disse baixinho e ainda sim, doce como sempre. Enquanto dizia, me abraçou de uma forma que nem meus 1100 anos conseguiram apagar.

Aquela foi a ultima vez que a vi, digo, viva.

“Judith, quantas vezes terei que falar para não andar com esses meninos? Não sabe dessa doença maldita que vem degradando toda a cidade?” Ele cuspia as palavras. Grosso como sempre, ignorante, machista.

Minha mãe, assim como eu, não poderia contrariá-lo. Mulheres deveriam ser submissas acima de tudo. Então ela assistiu a cena, somente implorando mentalmente para que o meu pai não se excedesse e acabasse comigo ali.

Ele estava muito estressado, tinha medo de doenças, medo da morte. Ele não estava preocupado comigo, mas estava preocupado com a mansão dele e principalmente com sua saúde.

“Se não me obedecer, pode sair dessa casa. Os vizinhos já falam de você, você já está na boca do povo!” Eu podia ver a ira o dominar. Conseguia ver seus olhos mudando. O branco delicado e indiferente, agora estava vermelho de raiva.

Senti sua mão pesada em meu rosto, e o grito da minha mãe quando eu caí como uma boneca de pano no chão. Meu rosto ardia, queimava, estava dolorido. E eu tinha quase certeza de que estava inchado também. Ele já tinha me batido outras vezes, muitas vezes, mas não como essa.

Eu fiquei no chão imóvel, sem força alguma para levantar. Gemendo de dor. Mas na verdade eu estava feliz, tão feliz aponto de ainda forçar um sorriso admirado em meu rosto.

Ele tinha olhado pra mim! Ele tinha me visto. Pela primeira vez na minha vida, ele se importou, mesmo que involuntariamente.

 

Ouvi minha mãe gritando, e chorando no fundo. Mas agora eu realmente estava cansada e fraca de mais para olhar a sua cena. A última coisa que vi, foi o borrão de seu rosto, novamente preocupada e ainda sim delicada.

Então, desmaiei.

Acordei no dia seguinte ao som da voz de uma de nossas criadas. Ela conversava com outra criada sobre minha mãe também estar de cama. Provavelmente, eu não fui a única a sofrer com a ira do meu pai.

“Ela não está passando bem. Acho que ela está com aquela doença que está acabando com a cidade” A loira baixinha cochichou com a outra criada. “E depois de ter apanhado do marido também...” Ela ainda cochichava só que agora era possível perceber o deboche em sua voz.

As duas riram, e tentaram abafar as risadas para que eu não fosse acordada, imaginei. É claro que eu já estava acordada, e não evitei em demonstrar insatisfação sobre seus comentários. Elas rapidamente me deixaram sozinha, para que eu me arrumasse.

Fui até a minha penteadeira, me sentei olhando para o espelho, procurando pela marca do “afeto” do meu pai. Não a encontrei. Então deduzi que alguns dias haviam passado desde o acontecido.

Agora eu estava infeliz. A marca era a única prova que eu tinha, de que meu pai não era um total ausente, e que me dava umas lições, mesmo que não merecidas.

Peguei meu pente e passei em meu cabelo com raiva. Tanta, que cheguei até a arrancar alguns fios. Meu cabelo loiro morango era lindo ao sol, me lembrei de como ele ficava quando minha mãe o penteava, então voltei a penteá-lo como de costume. 

Fui até a varanda, onde o café-da-manhã me esperava. Meu pai já estava sentado, e percebi que somente duas cadeiras estavam em volta da mesa.

“Onde está a mamãe?” Eu perguntei de cabeça baixa. Submissa.

“Tivemos um contratempo, ela está de cama. Venha me dê um beijo.” Eu sabia muito bem o que tinha acontecido, ele tinha acabado com ela. Mas na minha inocência de doze anos eu assenti, o beijei no rosto e senti meu estômago retorcer. Se eu fosse eu naquela época, sua garganta estaria retorcida e todo seu sangue já estaria em minhas veias.

“Quero vê-la. Me permite?” Eu só queria sair dali, ir para um lugar confortável. Vê-lo me deixara sem fome alguma.

“Não. Não pode. Temo que ela esteja com aquela doença. Ela está isolada” E deu uma garfada no que parecia ser um dos mexidos especiais de nossa cozinheira, e logo enfiou o garfo mais do que cheio em sua boca. “E será assim até eu dizer que pode vê-la.” Me olhou ainda mastigando a comida, - o que fez meu estomago embrulhar novamente - para ter certeza de que eu havia entendido o recado. Novamente assenti, e saí dali o mais rápido que pude.

Próxima parada, banheiro.

 

À tarde, enquanto eu brincava com os meninos da minha rua, vi uma aglomeração em frente à porta da minha casa. Corri para saber o que era.

“O que aconteceu? O que houve?” Perguntei para estranhos aleatórios, cada pessoa que passava na minha frente. Pude ver as criadas que falavam mal de minha mãe chorando, desoladas. Foi quando vi um corpo sendo trazido por homens musculosos, sob uma tábua. Apesar de ter apenas doze anos, eu era bem alta, e o que vi foi como uma facada, como se tivesse puxado minha alma para fora do meu corpo, como se eu estivesse entrando em um mar congelante completamente nua.

Vi o rosto de minha mãe, pálida, seca e morta.

“Mamãe! Mamãe!” As minhas palavras nem podiam ser ouvidas, por causa dos meus soluços. Eu chorava. Eu não acreditava no que via. A minha mãe, a única que ficava comigo e que me amava não poderia mais passar as tardes comigo, muito menos as noites me cantando canções de ninar. Eu estava desesperada, sufocada. Só de pensar que nunca mais a veria, outra remeça de lagrimas fluíam para fora dos meus olhos.

Eu sabia quem era o culpado, e eu queria que ele pagasse. Eu queria que fosse ele no lugar da belíssima e amável loira em cima daquela tábua desgastada de tantos corpos que já tinha carregado.

“Você a matou! Você matou a minha mãe. Você é um monstro. Você a tirou de mim” Novamente lá estavam as lágrimas. Eu não conseguia parar. Eu agora estava batendo com toda a minha força em meu pai. Eu desejava sua morte, mas do que qualquer outra coisa.

“Não, eu não matei a sua mãe, Judith! Pare de falar isso, os vizinhos estão olhando” Ele pegou em meus braços, apertando, me machucando.

Ele só se importava no que os malditos vizinhos diriam. Não se importava que minha mãe estivesse sendo levada para a fogueira, descansar para toda a eternidade. Ele só se importava com os malditos vizinhos fofoqueiros!

“Eu odeio você. Eu quero que você morra!” Eu cuspi em seu rosto, demonstrando repúdio, ódio, nojo. “Deveria ser você ali, não a minha mãe. Maldito!”

Então ele me empurrou para dentro da casa e novamente, me bateu. Só que dessa vez, não só no rosto. Eu sentia todo o meu corpo queimar, doer.
                 “A culpa é sua, sua vadiazinha. Sua mãe está morta por sua causa. Você que anda com esses moleques. Você que trouxe a doença pra dentro dessa casa!” Mais uma vez sua mão pesada bateu em mim, dessa vez em minhas costelas. “Saia dessa casa! Não a quero mais aqui. Saia!” Ele me chutava com todo o cuidado para não se “infectar”, na intenção de que eu me afastasse dele.

                E então ele saiu, me deixando.

                Eu achei que fosse morrer ali. Tinha sido a pior surra que ele já tinha me dado. Dessa vez eu não estava feliz, ele tinha exagerado na demonstração de “afeto”.

                Uma das minhas criadas me pegou e me levou até o seu pequeno quarto. Era a mesma loira, que na manhã desse trágico dia, tinha falado da minha mãe com desrespeito e deboche. Ela cuidou de mim, talvez quisesse se redimir.

                “Você vai ficar aqui. Vai morar comigo. Mas seu pai não pode saber, Judith.” Sua voz era tão baixinha e áspera que mal dava para ouvir, e que quando se ouvia, doía os ouvidos.

                Uns dois dias depois, ainda no confinamento, recebi uma visita dos meus amigos. Na verdade, só três vieram. Creio que os pais dos outros não deixariam que eles viessem até uma casa onde já tinha tido um caso da doença que destruía minha cidade.

                Francis, Louis e Clovis.

                O que não entendi, foi Clovis ter vindo. Ele não gostava de mim, provavelmente pensava como meu pai: que as meninas deveriam ficar em casa e não na rua se divertindo. Ele era alto, tinha quinze anos, e seus olhos me davam medo, muito medo.

“Ei, Judy. Como você está?” Disse Louis. Ele era o meu melhor amigo, digo, o que não se importava em estar na presença de uma menina. “Você mal sabe das coisas que estão acontecendo. Toda a cidade está adoecendo.”

                Francis tossiu no fundo, tentando abafar para que ninguém percebesse. Francis era o menor da nossa turma, na verdade ele tinha a minha idade, mas eu fazia aniversário primeiro do que ele. Ele tinha os olhos escuros, e o cabelo preto, era bem baixinho, lembrava uma criança de sete anos.

                “Judy, toma seu presente. Foi o melhor que conseguimos.” Louis me deu uma maçã que não estava lá muito boa. Era um costume darmos maçãs um para o outro no aniversário. E era o meu aniversário. 13 anos, uau. Mas devido a todos os acontecimentos até eu tinha me esquecido.

                “Se importa em dividir, Judy?” Disse Francis com sua voz fininha, pequenina.

                “A maçã é dela. Pare de pedir as coisas, garoto” Clovis deu um tapa na cabeça do Francis, e ele logo se encolheu.

                “Não. Tudo bem. Pode pegar, Francis.” Entreguei a maçã para o menino que agora estava com um sorriso de orelha a orelha. Clovis é que não estava muito feliz por eu tê-lo contrariado. Sorri para ele tentando fazer com que sua cara fechada se desfizesse.

                Foi em vão.

                Ouvi gritos novamente. Será que eu não poderia ficar um dia sem ouvir pessoas gritando?

                “O Senhor morreu. Ele morreu. Deus nos salve!” Gritou uma voz.

                “Todos estão adoecendo. Todos vamos morrer!” Berrou outra voz.

                Já não tinha mais ninguém na minha casa, e ninguém para levar a tabua com o corpo do meu pai, porque todos estavam mortos.

                Em pouco tempo todos estavam doentes. Minhas criadas, minha família, meus amigos, todos estavam mortos.

                Novamente o desespero tomou conta de mim, pra onde eu iria? Eu não queria ficar sozinha vivendo só de lembranças.

                Clovis derrubou a porta, dando um susto que me fez tremer.

                “Vamos.” Ele disse

                “Pra onde? Como assim?”

                “Somos os únicos sadios da cidade. Você vem comigo.” Ele me pegou pelo braço e saiu me puxando. “Vamos sair da cidade. E você vai fazer o que eu mandar.”

                Aquele momento poderia ter sido o inicio de uma paixão platônica. Mas não foi paixão, muito menos platônica. Foi o início do meu calvário, do meu inferno pessoal. Mas foi também o meu primeiro passo como Sophie Anne. Má, insensível e corrompida.

                


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