Sono de Amianto escrita por Salomão


Capítulo 2
Secondo passo: Diadema de Rose


Notas iniciais do capítulo

Segundo capítulo saiu rápido! Uhul. Espero que gostem.



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II

Rayo arriscou uma última olhadela para trás, e viu sua amada afastar-se do seu campo de visão. Insistia para que seu corpo parasse e implorasse perdão a Liliana, entretanto, estava impotente demais. Sua tristeza e decepção eram incabíveis. Voltou seu foco para o caminho tortuoso à sua frente, pisando profundamente na areia branca e fofa. Seus passos estavam carregados de raiva.

Sentia que seus desejos mais íntimos tornaram-se desconexos e infantis. Arriscara toda uma vida para o bem de um amor unilateral. Liliana o amara tão verdadeiramente quanto as palavras caluniosas de um pescador de ilusões. Ela enganara Rayo para satisfazer sua arrogância e desejo. Martirizar-se era o último plano de Liliana, pois o que realmente amava era brincar com os fios que teciam a alma de Grizzi.

O homem de alma pútrida redirecionou seus passos em direção ao centro de Nápoles, fugindo da paz litorânea. Décadas atrás, tal comuna italiana possuíra ruas completas de imundícies e lixo gosmento, tal como um lixão a céu aberto. Os paralelepípedos deixavam escorrer lágrimas de chorume tóxico e centenas de sacolas plásticas enfeitavam gravetos de árvores e recobriam todo o chão.

Dos céus, chuvas torrenciais, ao longo de anos, lavaram a cidade e seus espólios azedos, entretanto, a principal sujeira continuava a infestar a casa dos napolitanos: o caráter humano. Doença tão mortífera e incurável, que sempre permaneceria grudada nas almas daqueles que sobreviveram, como um cheiro grudento e vertiginoso que persegue a sanidade.

Rayou adentrou uma cafeteria e sentou-se numa cadeira próxima a uma janela. Retirou seus óculos e analisou o cardápio. Uma jovem mulher com os cabelos castanhos espetados num coque surgiu. Suas faces estavam rosadas graças ao mínimo esforço e seu corpo roliço necessitava que ela pendesse seu corpo de um pé para o outro, encenando uma situação cômica.

– O que deseja, senhor? – a garçonete perguntou. – Que tal um cappucino e um pedaço de bolo de laranja?

– Por favor, traga o melhor desestressante que tiver. Eu ficaria muitíssimo feliz – Rayo respondeu com arrogância.

– Tudo bem, lhe trarei um cappuccino – ela respondeu, enquanto dançava seus dedos ao redor de uma de suas orelhas, como se dissesse “completamente louco”.

Rayo encarou as pessoas que caminhavam felizes e distraídas nas calçadas ladeadas de pedras e mármore. Sentia inveja delas, pois tais indivíduos possuíam um arbítrio simples e inocente para suas decisões: escolhas vitais para o futuro pareciam simplórias para tais pessoas. Uma satisfação advinda de alternativas banais para suas vidas medíocres. Para eles, andar nas passarelas milanesas da vida e da tragédia era o suficiente e primordial. Apenas viver... e viver. Sonhar e desacreditar. Permitirem que suas vidas culminassem na morte e aceitarem seus passados cinza era algo dentro da normalidade e condizia com o pragmatismo.

O homem brincava com os guardanapos, os rasgando em inúmeros pedaços, tornando o papel em algo grotesco e deformado. Segundos após tornar-se impossível continuar a mutilar os restos brancos, ele tentou reconstruir, juntando pedaço por pedaço e recriando uma nova forma. Um coração rasgado pode ser reformado, mas nunca voltará a seu estado original. Papel que amassa, desdobra e redobra, mas nunca deixa de ter marcas e cicatrizes de índole tão humanas.

A garçonete trouxe-lhe o cappuccino e ele sorveu o conteúdo num único gole. Levantou-se e foi ao caixa do estabelecimento. Lançou algumas moedas sobre o balcão, que tintilaram ao tocarem o mogno da bancada. Abriu a porta do estabelecimento e estancou após atravessar para as ruas.

Um som infantil e doce trespassou seus pensamentos. A nota aguda assemelhava-se a voz de uma criança, mais precisamente, a risada de tal. Novamente, o barulho insistiu em seu raciocínio e ele encarou ambas as direções, esquerda e direita. Observou os rostos imutáveis de pessoas alheias e concluiu que fora o único a perceber aquele som: uma risada carregada de um sentimento nostálgico.

Caminhou e averiguou todos os mínimos detalhes das vielas napolitanas. Em meio ao mar de pessoas, logo à frente, ele tinha certeza de que uma garota caminhava com seus passos leves e saltitantes. ADORMECIDA. Ouviu a risada navegar na sua libido e acreditou avistar, de relance, um corpanzil vestido de branco virar à esquerda. Seguiu seu instinto e avançou naquela direção.

Começou a correr, perseguindo alguém existente apenas em sua consciência e no seu sofrimento. Lançou-se entre as pessoas, enquanto ouvia o sorriso descontraído e aveludado que ribombava em seus pensamentos. Ele estava próximo de entregar-se à loucura e desabar sobre os seus joelhos, implorando misericórdia para com a sua existência. Ó, demone, não basta gritar para a bruxa arrasá-lo, pois até tal recusa você.

A risada cessou e ele observou as redondezas. A menina que perturbava seus anseios parecia ter desaparecido. Nada de cachos dourados na sua espreita, ao menos, ele não os via. Do velho e ancestral mundo, a bela adormecida maquinava estratagemas tão vis e recheados de amor.

Ele recobrou a razão e tornou a averiguar os objetos e as pessoas que o cercavam. Avistou uma loja e adentrou-a. SÚBITO. O pequeno comércio estava repleto de espelhos. Estava cercado por uma multidão de gêmeos idênticos tanto na aparência quanto na alma.

Caminhou até um espelho curvilíneo e alongado e encarou-se. Divagou sobre o que tornara e qual seria a melhor maneira de acabar com toda aquela peça. TRÁGICA E ROMANA! Inexistia escapatória simples. “Viver... por quê?”, ele pensou tristonho.

Estava tão entretido com suas faces e seu olhar, que não notara os dois braços branquíssimos e finos que lhe abraçavam a cintura. Sentiu frio e assustou-se. Ao ver os dois pares de olhos vítreos e constantes atrás de seu reflexo no espelho, pensou que ia morrer. Duas pérolas tão azuis cravadas num rosto que teimava esconder-se atrás de seu ombro direito.

Ele esmurrou o espelho, quebrando-o em estilhaços que voaram pelo ambiente, rasgando os nós de seus dedos e abrindo uma ferida profunda em sua face direita. Virou-se bruscamente e notou que estava sozinho no ambiente. MEDO. Novamente, um sorriso delicioso dançou em seus ouvidos.

Correu em direção à saída e seguiu rumo ao primeiro lugar que relembrou. RESIDÊNCIA DE BEATRIZ. Ó, a garota Zarravelas estava aprendendo a brincar com seu amado. Traçando o medo mais obscuro e odioso no coração natimorto de Rayo Grizzi.

Grizzi estava a uns bons metros de distância e não notou a mulher ardilosa que encarava sua silhueta desvanecer em meio ao horizonte do pôr do sol. Liliana observava meticulosamente, atrás de uma árvore ressecada e infeliz, os últimos atos daquele homem medíocre, enquanto um sorriso feroz riscava seu rosto.

Ela adentrou a loja de espelhos. SEU COMÉRCIO. Recolheu os pequenos cacos com suas mãos, as quais destemiam ferimentos e que não vacilavam em causar retalhos em seus inimigos. Pincelou um de seus dedos num dos cacos pintados de sangue rubro e ficou impressionada, enquanto examinava o sangue escorrer.

– Ora, Rayo. Isso é apenas o início do seu fim – ela disse, enquanto lançava o caco longe de si. – O mundo não terá piedade do seu ego!

Liliana sentou-se solitária na única cadeira existente naquele ambiente. Reposou as mãos em seu colo e brincou com seus anéis de brilhantes. Aguardava o momento do ato final. Seu maior prazer estava próximo e, para isso, bastava Rayo ser tão vingativo quanto à garota de porcelana.

– O mundo não será piedoso, pobre homem. Sua morte fora decidida, quando você concordara em ser maligno. No meu mundo, não haverá redenção.

A bruxa afagou seus cabelos e levantou-se. Abriu a porta e seguiu os passos de Rayo. A orquestra rufava os tambores para as parcas, como se agradecessem o destino cruel que haviam costurado. Tecido com amianto, Rayo! Fuja para Beatriz! FUJA! A plateia está ansiosa para assistir as escolhas cruéis dessa peça lançarem-se sobre o verdadeiro bruxo.

O badalar dos sinos ribombou nas ruas napolitanas. A hora havia chegado.

. . .

Rayo chegou rapidamente em frente à casa de Triz. Observava o portão fechado e, logo, caçou a chave no bolso do seu jeans e destrancou a pesada estrutura de ferro. Deu passos largos em direção à entrada principal, percorrendo o caminho delineado por pedras brancas em questão de segundos. Escolheu outra chave, uma pequena e singela, e invadiu o saguão.

Uma sensação estranha dominou seus anseios. PRESSÁGIO. Com toda a certeza, a atmosfera estava deslocada, entretanto, impregnada de significado. Não havia dúvidas, algo de errado aconteceria. ACONTECERA. Subiu a escadas e estancou próxima a porta do quarto de Beatriz Zarravelas. Ela estava entreaberta e num processo lento de abrir e fechar, como se algum objeto a impedisse de lacrar-se completamente. “Um pêndulo!” foi a primeira coisa a brotar na mente de Rayo. Sim, ó, pobre homem, era o pêndulo do relógio que começara a contar cada segundo do pós-morte. TIC TAC. TIC TAC.

Um pé após o outro e, logo, ele descobriu um corpo inválido jazendo no vão da porta. BEATRIZ! Ele agarrou-a em seus braços e examinou seu rosto. Lágrimas de sangue escorriam dos olhos da boneca e pintavam suas faces com um rubro tão intenso! Lembrando-o do crepúsculo da última noite o qual observaram apaixonados.

O corpo frio da garota encaixava-se perfeitamente entre os braços ágeis de Rayo. A garota finalmente... estava morta. E, nesse estado, parecia tão pequena! Tão frágil! Ele lançou seus dedos sobre as pálpebras de Beatriz e notou que, novamente, aqueles olhos vítreos observavam e denegriam sua alma. MEDO! Ele largou o corpo de Triz no chão e levantou-se rapidamente. Ele não poderia ter ficado ali, é claro! Teria sido incriminado. Entretanto, a sorte do desafortunado prevaleceu.

Antes de escapar, ele analisara rapidamente os itens de valor no quarto da garota e encontrara um bilhete no cômodo ao lado da cama. “Ela realmente acordara. Que bizarro”, ele pensou. Entretanto, o corpo de Triz não suportara, pois revivera fraquíssimo. Subitamente, entregara-se a um destino tracejado éons atrás. Ele leu o recado deixado.

– Até outra vida, querido – ao ler as palavras grafadas com uma letra que salientava desespero e uma morte súbita, ele sentiu um calafrio... daqueles que ferem a alma e revivem o medo do mais primitivo.

Ele nada mais fizera no pequeno aposento, pois, naquele momento, correra para bem longe daquela residência. Entretanto, principalmente, de si mesmo. Em meio ao medo que o dominava, ele sentia-se feliz. MORTA. Uma alegria abissal de um homem que estava cada vez mais próximo de seu destino. COMPLETAMENTE MORTA! Compreenda, Rayo, Liliana nunca será sua.

Ele ignorou a certeza do fato e continuou a correr. Seu corpo refletia a felicidade de um homem que percorria insanamente as ruas de Nápoles, dando vazão a sua falsa modéstia. Porém, sua alma era apenas tristeza e morbidez. O jogo estava acabando! Ele sabia!

Distante dali, no alto de uma montanha e próximo ao farol da cidade, Liliana avistara um homem correr imerso em sua falsa redoma de alegria. Ela brincava com os fios do seu cabelo e sorria. Estava divertindo-se imensamente e, junto a ela, as parcas que desestabilizaram Rayo e o deixaram em xeque-mate.

Ela virou seu corpo e deu de ombros para o ato que acontecia lá embaixo. No fundo de seu coração não tão melhor quanto o de Grizzi, ela sabia o futuro. Relembrou de uma velha sábia que dissera a frase épica do destino: no universo, não há pontas soltas, pois todos os fios estão interligados e permeados no mais profundo significado.

Liliana estava descalça e sentia a grama e o limo sob seus pés. Abaixou-se e recolheu uma flor. Retirou suas pétalas e lançou-as contra o vento que arrebatava o pico onde ela situava-se.

– É inevitável, Rayo – ela disse, enquanto sorria, lançando seu olhar para o céu. – Você é pequeno demais para entender o mundo. Sua alma está marcada devido à morte que causara.

Liliana desconhecia, entretanto, que mesmo sendo uma importante peça do xadrez, nunca transcenderia o fato de também ser uma. Até a rainha e o rei morrem. No mundo dos joguetes inexiste a piedade. Não há fortuna na desgraça, bruxa. O badalar também conta seus últimos segundos.


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo é o último. Hahahaha. E aí? O que vai acontecer?



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