Relógio de Bolso escrita por Ma Ellena


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que aproveitem.



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O vento uivava por entre as árvores intensificando o frio cortante que se estabelecia naquela noite densa, na imensa escuridão do crepúsculo a luz da lua dançava no terno do Homem, como se brincasse de pique esconde com as sombras que ela mesma provocava, as feições eram sutis e apresentavam frustração em não ter chegado em sua casa deviduo ao atraso do trem. A estação ferroviária jazia vazia e fantasmagórica e já se passava das onze horas onde a única alma presente encontrava-se sentado no frio e pesado banco de ferro, curvava-se levemente para frente de modo que fizesse com que seu chapéu continuasse imóvel, sua maleta de trabalho encontrava-se ao seu lado e seus dedos finos e pálidos acariciavam o relógio de bolso que ganhara através da herança de seu avô. Um círculo formado por lírios rodeavam um rosto que aparentava seus quarenta anos e em meio aquela paisagem prateada destacava-se uma coroa de louros folhada a ouro posta em cima das orelhas e letras douradas na parte superior denominava-o como " Imperator Julius Caesar " e na parte inferior encontrava-se as letras " SPQR " que aprendera o significado em latim " Imperador Júlio César " e " Senatus Populusque Romanus ", traduzindo em sua língua era algo como " O senado e o povo romano ".

O Homem abriu a tampa e verificou o horário novamente, os ponteiros marcavam precisamente onze horas e quarenta e três minutos e o mesmo teria que esperar mais sete minutos, portanto começou a pensar em meio a escuridão da noite que tocava suavemente seu rosto, as sombras pareciam dançar misturando-se com seu terno tão negro quanto o crepúsculo. Era um advogado muito bem sucedido, herdou a empresa de advocacia de seu pai, que por sua vez herdou de seu avô, tinha uma ótima reputação, uma casa grande, dois filhos que entrariam na faculdade sem problemas e uma esposa. Mesmo com esta vida aparentemente perfeita, o Homem escondia muitos segredos, sentia-se mal pensando agora em seus atos, mas os fazia sem questionar.
Relembrou de quantas vezes foi ao bar com seus amigos e enchido a cara, sem questionar o que estava fazendo, amigos estes que só o tratava bem pela sua reputação, e o Homem sabia disso, nem se questionava sobre essas falsas amizades. O barulho agudo da parada do trem tirou-o abruptamente de seus devaneios, entrou no veículo quase vazio e sentou-se em seu lugar, ereto, mesmo com suas vestes sentia o couro macio e desgastado raspando em suas costas, o movimento do trem o fez alavancar para frente e ao concentrar - se apenas no barulho constante da aceleração fez sua mente o obrigar a continuar pensando enquanto a paisagem árida e seca do deserto corria ao seu lado.
Relembrou as muitas vezes em que foi pago - ás vezes com dinheiro, ás vezes com drogas - para deixar um criminoso solto, fingindo não ter provas o suficiente e perdendo. Muitas vezes combinava com seu cliente e subornavam o juiz para que ganhassem o caso e colocassem um inocente atrás das grades. Nunca havia se importado com a família de tal inocente e conseguiu ouvir novamente o choro de várias crianças ao verem seus pais sendo presos, acusados injustamente de coisas que não fizeram, mas o que o Homem poderia fazer com pessoas que sabiam demais? Às vezes a ignorância e a dúvida trazem benefícios muito importantes para serem arriscado por um bem maior, pelo bem da maioria.

Imaginou o que vivera várias vezes, de ter chegado a sua casa mais tarde por ter parado no apartamento de sua amante, pego a melhor champanhe e levá-la a cama. Nunca pensou em parar de visitá-la, sabia as más consequências de que este ato traria, mas apenas não parava para pensar, não tinha tempo para essas coisas, apenas pensava no perfume doce da amante e no toque quente de seus corpos perfeitamente encaixados.

Lembrava - se também da cara de preocupação da Mulher quando chegava tarde em casa após algumas horas com a outra. Sentiu uma pontada de arrependimento e pena, a Mulher o amava, estava sempre ao seu lado e aceitara viver uma vida em que ficava em casa, sem o Homem e, em breve, sem os filhos. O trem parara e o homem checou o relógio, o ponteiro menor apontava em direção ao número doze e o menor na direção quase oposta, indicava o número cinco, como se os ponteiros estivessem em uma briga para decidir quem era o culpado de algo.

Ao sair da estação, o Homem decidiu ir em direção ao norte, onde a Mulher o estava esperando. Enquanto caminhava com a mala de couro marrom em suas mãos, encontrou uma mulher enrugada, cabelos desgrenhados e roupas esfarrapadas, sendo acompanhada de dois garotos que encontravam-se no mesmo estado. A feição sempre indiferente da máscara que portava permitiu um resquício de repugnação passar por sua face, logo o homem seguiu em frente, fazendo as três figuras recuarem espantadas. Conforme andava com seu caminhar estrondoso, as figuras tomavam - se parte do breu que àquela noite proporcionava.

O Homem encontrou - se novamente em seus devaneios, começando a comparar a vida daqueles pequenos efeitos colaterais do capitalismo com sua esplendosa e honrada vida. Uma faísca de raiva passou por sua mente: toda noite reclamava à Mulher sobre o trabalho, a demora do trem, sobre a comida que não agradava seu paladar e nunca sequer teve tempo de pensar em quão egoísta era.

Chegou na rua de sua moradia e chacoalhou sua cabeça, como se deste jeito espantasse seus pensamentos e o arrependimento que agora o queimava por dentro. Retirou seu relógio do bolso e verificou novamente a hora, o dia havia passado, assim como sua vontade repentina de desculpar - se com a vida. A ardência de seu arrependimento fora embora no momento em que retirou seu celular do bolso e enviou uma mensagem á Mulher. "As viagens de trem para casa foram canceladas, dormirei em um hotel próximo ao trabalho, nos encontramos amanhã à noite", imediatamente recebeu uma mensagem de resposta. "Ok, se precisar de algo me liga, sempre estarei pronta a te atender em qualquer lugar e circunstância. Eu te amo muito, beijos". O Homem revirou os olhos e mandou outra mensagem à outra pessoa. "Ainda está acordada? Que tal se adiantarmos a sessão de vinho para hoje à noite?", também desta vez recebeu uma resposta imediata. "Sempre estou pronta para adiantar nossas sessões e repití-las. Estou te esperando do melhor jeito possível, só lembre - se de não deixar a Mulher saber". O Homem recomeçou a caminhar, na direção leste, esquecendo-se rapidamente da Mulher e pensando somente no calor de sua pele.

Enquanto seus passos ecoavam pela rua silenciosa, seu arrependimento e a vontade de mudar iam se afastando no mesmo ritmo e conforme se afastava a sua culpa se esvaia do mesmo jeito em que se cai no sono, repentinamente e aos poucos. Quanto mais pensava no contraste do frio cortante em que encontrava seu corpo com o suor quente que escorreria em sua testa mais ansioso ficava e apressava seu passo, tornando o eco ensurdecedor.
O Homem tornou a checar as horas no relógio de bolso e uma fagulha de agonia brilhou em seu rosto, lembrou-se de quando seu avô ainda vivia e o visitava em seu sítio quase todos os finais de semana e o quão bem o mesmo tratava sua avó. Chacoalhou novamente a cabeça, despistando as lembranças que outrora o alegravam e traziam saudade, sentiu uma enorme cicatriz sendo aberta novamente, algo que o trazia a vida e o fazia pensar o que estava errado, desde pequeno sonhava ser um bom advogado como o avô e acima de tudo uma pessoa com o caráter integro que lhe admirava.

Consultou às horas tentando afastar as lembranças e pensamentos que o atormentaram aquele dia e percebeu que o que mais precisava naquele momento era conversar, sentiu saudades da Mulher que sempre ouvira seus desaforos com a maior atenção possível e o aconselhava e dava carinho. Chegou ao apartamento e ouviu uma música suave e provocante, colocou sua maleta ao lado da porta como fizera várias vezes antes e repetiu o mesmo caminho até a sala de estar, checando o relógio com uma culpa que nunca sentira antes, conseguia ver o rosto de reprovação de seu avô como se soubesse que o que estava fazendo era um ato de mau caráter e o rosto de Júlio César parecia mais duro e rígido que o normal. Na mesa de centro jazia uma garrafa de vinho e uma taça vazia e a amante encontrava-se sentada no sofá com roupas curtas e provocantes com um sorriso que exalava malicia no cômodo e a mesma bebericava o vinho da taça que encostava seus doces lábios.

O Homem sentiu raiva de si mesmo, raiva por estar traindo a Mulher e raiva de estar pensando isso agora. A fim de jogar seus pensamentos para longe de sua mente ignorou o vinho sob a mesa e seguiu em direção à boca da amante, sentiu aqueles lábios suaves e a textura cremosa do batom vermelho espalhar por toda a região de seu queixo.
Em um movimento brusco levantou o corpo da parceira, apertando firme a coxa da mesma e forçando-a a entrelaçar suas pernas ao redor do corpo do Homem. Ele sentiu raiva de si mesmo por estar fazendo isso e apertou sua mão em volta da perna que lá se encontrava enquanto seguia em direção à suíte do apartamento, lembrou-se de seu avô, o quão digno e honesto aquele homem outrora fora, o quão bem ele tratava sua avó e o quão feliz eles eram.
Tudo isso agora parecia tão errado para ele que parou de andar, parou de sentir raiva e percebeu o quão triste sua vida era. Percebeu entre os beijos que a Mulher merecia algo melhor do que ele prensou a amante na parede e permitiu-se dar um suspiro em meio a sua respiração ofegante. Por outro lado já havia começado a errar aquela noite e não podia mais parar, seu corpo não permitia assim como a amante, que voltará a lhe dar beijos quentes e úmidos. A companheira comecara a tirar o paletó dele e não conseguiu resistir, já havia feito aquilo mais de uma vez e sabia o quão prazeroso para ele seria o que viria a seguir.
Ele começou a distribuir beijos no pescoço da amante enquanto tirava a gravata, desabotoou a sua camiseta e retirou bruscamente a da amante e lançou - se na cama. Um barulho de metal batendo em metal trouxe-lhe de volta a consciência e o Homem enfiou a mão no bolso de sua calça social, Júlio César olhava-o com decepção e não deu tempo de sentia-se culpado por estar traindo os princípios mais valiosos que seu avô lhe ensinara, pois já estava tirando o sutiã da amante. E naquela noite o Homem não sentiu prazer nenhum, apenas remorso do que estava fazendo e a última coisa de que se lembrara antes de dormir naquela mesma cama foi a imagem da Mulher, de seus filhos se formando e de seus avós, felizes e juntos até o final da vida deles.


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Notas finais do capítulo

Sim, a história acaba aí. É uma representação do cotidiano do Homem e a vida dele continua normalmente, a vida nem sempre é como se vê nos livros, ele pode ter sentido remorso e raiva mas ele continuou vivendo do mesmo jeito. Nada mais acontece depois do ponto final, ok? Espero que tenham gostado.