Era um dia quente quando eu o conheci. Ele estava suado, aparentemente bastante cansado, fedido e sujo, todo mundo que passava ao seu lado mantinha uma boa distância, querendo evitá-lo ao máximo. Veio até mim com um sorriso gentil e me levou embora para algum lugar. Eu não tinha ideia de onde aquele senhor estava me levando, mas seu olhar me passou muita confiança. E então cheguei num barraco de caixas de papelão montado na calçada de uma avenida movimentada, meus olhos brilharam, finalmente teria um lar.

Eu nunca soube seu nome, aparentemente ele não tinha nenhum, mas deu um a mim: Kiko, algumas pessoas me chamavam também de “neguinho”, outras de “preto”, outras somente de “vira-lata”. Sempre eu e ele mudávamos de calçada para morar, umas mais movimentadas, umas mais paradas, algumas foram perigosíssimas também. Lembro-me de quando roubaram um cobertor dele e eu corri para tentar pegar de volta, mas não sei o que aconteceu depois, porque tudo ficou muito escuro, eu tinha desmaiado por algum motivo, talvez tivesse recebido um chute... Quando acordei, ele estava deitado ao meu lado, em cima de um papelão, abraçado ao meu corpo e tremendo de frio. Eu sempre quis saber falar a língua dele para poder agradecê-lo por tudo que já tinha feito, mas como nunca soube, agradecia com o olhar e sempre estando ao seu lado.

Uma vez ganhou um banquinho de madeira de um homem, de dia ele sentava no meio de uma praça, com uma placa na frente, que fazia algumas pessoas pararem para conversar e eu sempre ficava sentado ao lado dele. A maioria das que paravam lá eram muito gentis e educadas, gostavam de conversar e perguntar sobre sua vida. Mas também vinham pessoas ruins falar sobre o quão fedido, feio e pobre ele era. Lembro-me que ele sorria e depois soltava uma enorme gargalhada com as palavras dessas pessoas más, logo falava algo seguido de meu nome, com um grande sorriso no rosto, o que me fazia ficar muito feliz e sempre afirmar num latido.

Também tentaram me separar dele. Era fim de tarde de verão e eu estava morrendo de sede, um tio estranho veio oferecendo água e quando me aproximei, pegou-me pelas patas e me pôs no colo, pra logo sair correndo embora. Eu chamei o meu melhor amigo por várias vezes, estava desesperado. E ele apareceu para me pegar de volta. Depois disso, na volta pra nossa casa, ganhamos um saco de pão de uma moça muito gentil e tivemos a melhor janta de todas. Apesar de tudo, aquele foi uma noite muito gostosa depois do susto!

Aquele senhor era como um anjo para mim. Eu nunca passei fome, porque ele sempre dividia a comida dele comigo, isso quando tinha, senão nós íamos juntos procurar de lixo em lixo ou pedir de pessoa em pessoa. E era assim sempre. Ele só tinha a mim. Eu só tinha a ele. Lembro-me também de uma vez que ele me olhou nos olhos e começou a chorar, eu não sabia exatamente o porquê, mas tentei o acolher com uma lambida no rosto. Ele riu. Acho que tinha funcionado, né?

Pouco tempo depois disso, quando já estava bem calor, eu comecei a me sentir bem fraquinho, vez ou outra eu não conseguia me segurar em pé e também emagreci... Acho que era por causa disso que tinha chorado aquele dia, deve ter achado que eu não estava sendo bem cuidado. Minha saúde foi piorando cada vez mais, eu me sentia mal o dia inteiro e ele pedia esmola para as pessoas que passavam por perto. Um dia, então, aquela mesma moça que nos deu pão, nos levou a uma veterinária, que viu minhas gengivas, encontrou carrapatos e pulgas por todo meu corpo. Descobrimos que eu estava com doença do carrapato. Não sei o que eles conversaram, mas vi que ele entregou tudo o que estava dentro do chapéu onde guardava o que recebia das pessoas. E ele pegou em troca três remédios diferentes, que me deu por vários dias seguidos e então eu finalmente melhorei!

Eu nunca soube muito sobre os humanos, nem sobre o que pensam, o que os levam a agir como agem, mas com certeza existem exceções. Antes de ser encontrado na rua, eu vivia numa casa bem grandona com um casal e três crianças super agitadas, mas eles me abandonaram, não sei exatamente o porquê, só lembro que eu tinha ficado muito triste por dias até que fui levado para aquela barraquinha à beira da rua. Eu nunca tinha recebido tanto amor e carinho, só mimos e mais mimos, nunca tinha sido tão feliz como fui com o homem que morava sempre em calçadas diferentes. Vivi por anos com ele, até ficar bem velhinho e aprendi que simplicidade não define o coração de um homem. Ele era sujo, fedido, pobre, nem nome tinha, mas deu tudo o que pôde a mim, inclusive a melhor vida que um cachorro poderia ter.