Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 33
Escolhas 7:4




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Talvez tivesse dado impulso demais, ou talvez a distância fosse aquela mesmo. Geralmente só se arrependia de alguma ideia depois de ver o quanto ela era absurda, desta vez havia sido uma exceção. Pensara isso no momento em que Hector deixou de contar o “três”. Os cacos de vidro ainda brilhavam com o clarão dos disparos, os milhares de fragmentos que não podiam refletir seu rosto pareciam estagnados no ar, mas Adam sabia que não estavam. A adrenalina sempre fazia aquilo com ele, ao menos na Rede era assim, um filme em câmera lenta. Se fosse no mundo real, sentiria suas pernas fraquejarem um segundo depois do grande “BUM”, acompanhado de alguma expressão como “Que merda eu acabei de fazer?”.

Depois de enfrentar um Devorador sozinho, aquela havia sido a coisa mais estúpida de toda uma vida, maior até do que enfiar o garfo na tomada — retirando todo o propósito cientifico que aquilo significava para o pequeno Adam de 5 anos. Saltar do “qualquer que fosse o andar” rumo a uma queda incerta foi estúpido, imensamente estúpido, mas não deixava de ser excitante, de fazer o sangue ser bombeado a pauladas nas veias e isso era bom, o fazia sentir-se tão vivo. Era o tipo de coisa que ele jamais teria no mundo real.

Na cena congelada, Hector acertava um soco no rosto da criatura, esfacelando-o, os tentáculos dela estavam enroscados nele, mas não parecia que fariam grande coisa, havia sido pega desprevenida, assim como ele disse que seria. Enquanto isso, Adam disparava nos Devoradores que saltaram atrás dele, repelindo um ataque que com certeza o mataria, não que a queda talvez não o fizesse, mas preferia morrer por uma decisão não pensada do que por aquelas aberrações sorridentes. Uma das balas pegara na cabeça de um Devorador, uma rajada decepara a perna do que estava prestes a pular e a última — sempre a última — acertara em cheio o núcleo do que estava mais atrás, fazendo com que seu corpo trincasse como o espelho que foi quebrado por alguma adolescente rebelde. Acertar o núcleo com apenas um tiro era uma chance em um milhão. Pelo menos se ele morresse, poderiam contar histórias a seu respeito, “O Usuário que matou um Devorador com um único tiro e caiu para sua morte logo em seguida. Adam, corajoso e inconsequente”. A pior parte é que não havia ninguém além de Hector, para testemunhar seu feito.

Os sons que pareciam abafados, de repente voltaram como se alguém tivesse aumentado o volume do mundo e mais uma vez eles estavam caindo, não havia câmera lenta, estavam altos demais, rápidos demais, uma combinação fatal. Mesmo assim, Hector ainda acertou um último soco na criatura antes dela se espatifar numa das passarelas. Os dois passaram raspando — literalmente — destroçando as janelas para tentar reduzir a velocidade. Inútil. Rápido demais, alto demais. Não era preciso ser nenhum gênio da física para entender aquilo.

Os corpos revolveram no ar e alertas em vermelho brotaram por toda a parte na interface visual. Adam tentou se posicionar de forma que suas pernas acertassem o vidro da passarela, numa fútil tentativa de reduzir o impacto. Foi como saltar de um trampolim e bater no fundo da piscina, afundou dolorosamente em meio aos cacos de vidro e metal retorcido. Naquele momento, pouca coisa lhe veio à mente e ele não soube ao certo o que tinha feito até bater com força no corrimão de uma escadaria e voar pelo salão, escorregando no chão entre os restos do teto e batendo com força num pilar.

— Aviso: danos ao usuário detectados. Você deseja ouvir o relatório detalhado? — perguntou AIDA, e como não obteve resposta continuou — Entenderei seu silêncio como não. Liberando endorfina.

Adam percebeu alguém o erguer e os belos olhos de Beatriz o receberam sorrindo. Era engraçado como olhos eram capazes de fazer aquilo, pelo menos os dela sempre o recebiam daquela forma. Se o corpo não doesse tanto e não tivesse certeza que alguma coisa fora quebrada de maneira irrecuperável, talvez até tivesse dito isso à ela. Talvez.

— Olá menina dos olhos acusadores. — Em meio a dor, aquilo foi a única coisa que conseguiu balbuciar.

— Vocês são pirados — ela respondeu sorrindo, dessa vez com os lábios.

— Acho que finalmente provei o porquê estou nesse grupo, não?

— Eu nunca duvidei disso.

Olhou ao redor, estavam num grande salão amarelado, esculpido num estilo rustico e antigo, as paredes eram entalhadas com arabescos que se enroscavam em formas tortuosas e complexas, haviam retratos com pessoas de rostos borrados, em molduras que reluziam como ouro. No centro, duas escadarias se contorciam, esparramando-se pelas laterais e rodeando o imenso salão. Os vestígios de uma batalha estavam visíveis por toda a parte, das cápsulas vazias pelo chão, às paredes estraçalhadas por buracos de balas e marcas de garras. O teto arredondado possuía um buraco notável, por onde se podia ver o céu da noite com suas nuvens agitadas.

— Ei! Adam! — Era Hector. Ainda estava no chão, visivelmente ferido, ao seu lado estava Valéria, exibia um rosto cheio de preocupação, mas com um sutil toque de irritação. Imprudência. Era exatamente isso que aqueles lábios encrespados diziam silenciosamente.

Adam ergueu o punho com força, sentindo uma dor latejar por cada músculo do braço. O ombro doía bastante, algo que com certeza ainda lhe traria problemas naquela noite. Mas o sorriso do amigo era o bastante para que ele ignorasse a dor por um momento.

— Hector! Isso foi a coisa mais estúpida de toda a minha vida! — ele gritou, se segurando para não cair na gargalhada, pois tinha certeza que doeria ainda mais.

— Eu sei cara! Foi insano! E a melhor parte é que ainda estamos vivos! Por um momento eu duvidei que o plano fosse dar certo e pensei que fossemos morrer!

Com essa, ele não aguentou e a risada veio como uma enxurrada, dolorosa mas reconfortante. Talvez aquele fosse o mesmo sentimento que os soldados tinham pelos companheiros durante a guerra, alguém que vai se arriscar por e com você, lutando ao seu lado, morrendo ao seu lado. Pela primeira vez sentiu que realmente poderia confiar naquele rapaz enorme, sorrindo como uma criança feliz.

Nota para o quadro de cortiça: “Hector, você pode confiar nele.”

— Qual o problema com vocês dois? Onde porra vocês estavam quando a gente tava aqui lutando com aquele Devorador de merda? — Carla perguntou, sentada na escada. Uma marca vermelha se esticava em seu braço esquerdo, o USV estava ligeiramente retorcido em volta. Ao ver Carla ferida é que Adam se deu conta dos cortes e marcas em Valéria e Beatriz. Não estava sendo uma noite fácil para ninguém.

— Limpando as janelas pelo lado de fora — respondeu Adam, se levantando de uma vez — Alguém precisa fazer o trabalho sujo de vez em quando.

Ela mostrou o dedo do meio e voltou sua atenção para o braço ferido, onde o uniforme começava a estender fios de um lado a outro do corte.

— Pelo menos a abertura que vocês fizeram no teto liberou a comunicação — informou Valéria, sem nenhuma emoção na voz, ajudando Hector a se reerguer — Dá para reparar algumas coisas, inclusive vocês, não que eu devesse, claro. — e lançou um olhar de reprovação para Hector.

Adam olhou para o buraco a mais de 4 metros de altura e voltou sua atenção para Hector, sem motivo algum os dois recomeçaram a rir.

O contador indicava que ainda tinham alguns minutos antes da próxima reorganização, tempo o bastante para recarregar as armas e se recuperar dos ferimentos. As habilidades médicas de Valéria eram de fazer inveja para qualquer profissional da medicina. Acessando diretamente o login do Usuário, ela poderia incluir códigos de reparo ou simplesmente trocar dados defeituosos, recuperando em segundos ferimentos que no mundo real levariam meses ou anos. De todas as escoriações, fraturas e contusões que sofrera em sua incursão pelo exterior do prédio, o ombro de Adam havia sido o único que Valéria não conseguira consertar completamente. Perto de todas as proezas que tinha feito, aquele seria o menor de seus problemas. Se fosse no mundo real estaria se contorcendo de dor numa cama hospitalar, implorando por mais uma dose de morfina enquanto médicos mascarados balançariam a cabeça negativamente sobre seu corpo destruído. Pela primeira vez ficou feliz em não estar no mundo real, realmente feliz.

— Depois que vocês saíram as coisas ficaram feias — contou Beatriz a Adam e Hector, sentados nos degraus da escadaria enquanto Valéria trabalhava, os fios luminescentes que saíam deles e corriam para a tela flutuante que Valéria observava com olhar clínico, alternavam de vermelho para azul, para laranja e roxo — Aquele nível dois ficou bem grandinho, quando a reorganização terminou, ele chamou uns amiguinhos para a festa e depois deu no pé. Acho que temos um possível candidato a nível 3 em breve.

— Que droga, hein? — disse Hector.

— Pois é. O pior é que o desgraçado deve ter aprendido bastante com a gente. Assim que terminarmos essa missão vou pedir para o Gabriel traçar o login dele, então ele vai receber uma visita íntima da HeLa.

— Sempre amável — disse Adam, se contorcendo de leve com a pontada que sentira no ombro — Me lembre de nunca pisar no seu pé.

— Eu sou a justiça, lembra? E caramba, não posso deixar você sozinho um minuto que já se quebra todo! Que Link mais inconsequente que eu fui arranjar!

— Somos duas Bia. — reclamou Valéria, sem desviar os olhos da tela flutuante.

— É agora que eu devo vomitar? — disse Carla, observando os quatro com sua tradicional expressão de irritação — Não vou ficar segurando vela de casalzinho! Que porra! ­— E se levantou logo em seguida.

— Você me deixou sozinho com o Hector — explicou Adam, ignorando a observação de Carla. Já havia aprendido que por pior que fosse, as vezes era melhor ignorá-la — Não imaginava que ele fosse tão imprudente!

— Olha lá como fala novato! Eu aprendi a me atirar em cima de um Devorador com você! — defendeu-se Hector, apontando para Adam.

— Agora entendi o motivo do maldito ferimento no ombro dos dois... — resmungou Valéria, baixinho.

Devido a terrível experiência com a última reorganização, assim que a IA anunciou a proximidade do evento, eles resolveram ficar de mãos dadas para evitar que se perdessem. A contagem regressiva transformou o coração de Adam num tambor de guerra, cada batida ressoava por todo seu corpo. Ao seu lado, Beatriz segurava sua mão com firmeza e apesar das luvas, a sensação era calorosa e suave, ao mesmo tempo que a solidez com que os dedos dela se apertavam nos dele fazia com que se sentisse seguro. Como uma voz distante, um pensamento surgiu no escuro de sua mente, um sussurro dizendo que ela se sentia da mesma forma.

— Adam — ela o chamou de súbito — Compartilhamos muito mais do que apenas um Link, sabia? — e encostou o indicador na testa. Agora ele sabia.

E num piscar de olhos o salão se desmanchou e como se um vento forte soprasse um castelo de areia, uma nuvem de formas e cores veio tão rápida quanto se foi, levando com ela todas aquelas tonalidades. Para o espanto de todos, estavam novamente no mesmo corredor, as mesas de mogno, os quadros meticulosamente alinhados, as estantes e prateleiras, estava tudo lá. A única diferença dessa vez, era a cor da porta, um tom de amarelo berrante de muito mal gosto. Adam pensou que depois daquele dia, nunca mais olharia para um corredor da mesma forma, se pudesse, ele nunca mais olharia para nenhum. Como aconteceu antes, o indicador das crianças perdidas piscou logo após a porta, aproximadamente 100 metros de distância os separavam delas. Não havia nenhum sinal dos Devoradores.

— Reorganização concluída. 50 segundos até a próxima reorganização — Anunciou AIDA.

Claro que alguma coisa tinha que dar errado. Provavelmente o nível 3 estava causando aquelas anomalias para brincar com eles, um tipo de jogo sádico, feito para sentir o gosto da vitória ser arrancado das mãos. Adam não ia se dar ao trabalho de correr e antes que pudesse dizer algo, seus companheiros já se dirigiam velozes rumo ao marcador. A ele restou apenas acompanha-los, sem tirar os olhos daquela porta ridícula, com uma cor ainda pior. Quem quer que cuidasse do sistema de decoração da Rede era um incompetente. Sem dúvida.

— Dez segundos, nove segundos, oito segundos...

Nada havia acontecido. Valéria era a mais rápida deles, já estava posicionada para derrubar a porta, mesmo assim Adam ainda esperava pelo grande momento que algo fosse irromper pela entrada e pular sobre ele. Ele. Sim, sempre ele.

— Três segundos, dois segundos...

Ouviu-se um rachar de vidro quando Adam acertou uma parede transparente em sua frente, a rachadura no vidro fosco se espalhou feito uma teia de aranha e uma dor constante na testa o deixou tonto. Algo quente escorria por seu rosto. Sim, sempre ele. Não deveria ter tentado correr até aquela maldita porta.

— Reorganização concluída. Dez minutos até a próxima reorganização.

Formas escuras se remexiam do outro lado do vidro fumacento. O corredor agora era azul marinho, a tinta parecia úmida, pegajosa. Entre a dor da pancada e um zumbido constante no ouvido direito ele ouviu Carla e Hector, talvez Beatriz. Tiros, a teia de aranha aumentou, mais e mais e tudo girava, se distanciando, o corredor parecia maior, o chão era uma borracha maleável.

— Reorganizando.

Não havia se passado nem um minuto desde a última reorganização quando tudo se apagou e num momento, Adam já estava caindo no vazio. A mão involuntariamente agarrou na borda de alguma coisa, os dedos penetraram na rocha e ele deslizou o corpo pela parede, firmando o pé em alguma coisa. Peças mecânicas, engrenagens e pistões estavam dispostos sem nenhuma lógica, fios pendiam como espaguete, soltando fagulhas que brilhavam como estrelas na penumbra. Era possível ouvir algo gotejar, um eco continuo e infinito que se espalhava como água. Para todos os lados havia apenas o escuro e o silêncio.

— Reorganizando.

Adam fechou os olhos, a pontada na testa aumentou. A parede que estava segurando sumiu entre seus dedos, por um momento a sensação era a mesma de mergulhar no vazio da Rede, ele quase podia ver aquele outro Adam sorridente, se despedindo numa borda invisível e longínqua, inalcançável.

Seu corpo pousou delicadamente no chão e ele continuou deitado, apenas olhando para o teto escuro. Como havia conseguido a façanha de ficar sozinho no seu segundo dia na Rede? De novo? Por um momento, sua cabeça traçou todo tipo de teoria conspiratória sobre como a Rede estava tentando matá-lo, de que ele ter se tornado um Usuário Final havia sido proposital e que havia um motivo ainda maior para que tudo acontecesse com ele. A pior parte de pensar aquele tipo de coisa é que tudo se encaixava perfeitamente bem, se tornando tão plausível que chegava a assustar.

— Reorganização concluída. 40 minutos até a próxima reorganização.

De que adiantava aquele maldito aviso? Nada ali parecia funcionar direito, desde a ridícula mensagem de “SISTEMA INDISPONÍVEL” que não parava de piscar até o aviso que deveria ajudá-los a ficarem prontos para o pior. Maldito sistema! Como odiava computadores! Era tão irônico ter parado num mundo “virtual”! Mais uma piada de mau gosto e logo seria possível escrever um livro com todas elas! Levantou-se com uma certa dificuldade, o ombro reclamava com insistência, dizendo que o esforço estava sendo demais, que ele deveria parar. Mas a frase “você é um Helldiver” ficava martelando em sua cabeça, fazendo-o seguir adiante mesmo que a maior parte dele gritasse que perambular sozinho pela Rede, talvez não fosse uma boa ideia.

— AIDA, você consegue traçar um mapa de onde eu estou? Qual a distância até a minha equipe? — perguntou, imaginando que não teria uma resposta com setas indicativas e marcadores visuais dessa vez.

— Não há um mapa disponível para a sua localização atual. Os Helldivers se encontram a 35,8 km de distância de sua posição. — A IA respondeu, confirmando as expectativas otimistas de Adam.

— Que merda... e as crianças perdidas? Não vejo o indicador...

— Ainda não houve a transmissão de um novo sinal.

— Então acho que somos só nós dois de novo, não é? Já estou começando a me acostumar com isso...

— Você deseja algo para a dor?

— Eu odeio sentir dor! Não precisa me perguntar esse tipo de coisa. — respondeu com irritação. A cabeça entrava numa disputa com o ombro para ver qual dos dois poderia doer mais.

Adam respirou fundo e começou a analisar as redondezas, se não tinha um mapa, os filmes o ensinaram a mentalmente criar um. Estava numa espécie de shopping center desativado, mais especificamente no que poderia ser chamado de praça de alimentação fantasma. As mesas estavam dispostas desajeitadamente, até mesmo empilhadas, quiosques que vendiam lanches esperavam vazios por clientes que nunca chegariam, as vitrines das lojas eram apenas a sombra do que poderiam ser. As semelhanças com o mundo real eram enormes, as fachadas com nomes ilegíveis, o piso, a decoração simples mas atraente, um ar agradável que faria com que clientes consumistas quisessem entrar mas não sair. E mesmo preferindo ficar sozinho, o vazio que a falta de pessoas causava naquele lugar era imensurável, despertando um sentimento de solidão, uma tristeza sem motivo algum.

Olhou para um banco e viu a si mesmo anos antes, Eriza havia lhe comprado um sorvete enquanto esperava alguma namorada atrasada. Adam estava entediado, olhando para todas aquelas pessoas indo e vindo sem rumo. Em certo ponto, alguma coisa havia se perdido, algo importante que deixara no lugar um buraco que parecia querer rasga-lo por dentro. O garoto aproveitando o sorvete e o jovem que segurava uma arma eram pessoas completamente diferentes. O que havia acontecido a eles?

Ouviu um ruído, algo havia caído e rolado pelo chão, latinhas ou moedas, o som de metal tilintava, ecoando por todo aquele vazio. Adam apertou uma das pistolas na mão e correu escada acima, seguindo na direção do barulho. Parou em frente a uma loja de brinquedos, onde uma máquina de surpresas, daquelas que se colocava uma moeda e rezava para sair o prêmio mais legal — o que nunca acontecia —, estava espatifada no chão, o conteúdo de bolinhas plásticas esparramado por todo o pátio, junto com centenas de moedas zeradas. Adam não pode deixar de rir, até o dinheiro da Rede era uma piada. As portas da loja estavam abertas, não havia marcas de garras ou qualquer outra coisa que denunciasse que havia sido um Devorador, afinal, AIDA o avisaria com antecedência se fosse... certo? Com esse pensamento entrou com cautela redobrada, se esgueirando pelas gôndolas de brinquedos empoeirados e caixas de papelão velhas. A iluminação fraca tornava a visibilidade ruim, fazendo a simples tarefa de diferenciar uma Barbie de um Action Man virar um verdadeiro teste cognitivo.

Outro barulho. Passos. Um daqueles bichos de pelúcia que soltam um assobio quando são apertados, quicou sorridente pelo chão. A porta dos fundos da loja estava aberta, lançando uma débil luz amarelada sobre uma prateleira, uma trilha de brinquedos indicava que o causador do barulho havia derrubado uma caixa ao sair. Adam caminhou lentamente rumo a saída, quando de repente ouviu um “clique” muito familiar vindo da sua direita. Mal ouviu o estampido quando esquivou rapidamente para o lado, desviando do tiro por centímetros. O boneco de um desenho infantil infelizmente não teve a mesma sorte. O atacante misterioso estava escondido atrás de uma das prateleiras, a porta aberta fora apenas uma distração. Adam avançou sobre ele quando outro tiro foi disparado, dessa vez era a bola de futebol que jamais seria chutada. Agarrou a mão que portava a arma, os disparos subiram num arco e Adam conseguiu desarmá-lo, uma cotovelada doeu em seu estomago e ele quase vomitou, conseguiu segurar um soco, mas foi empurrado sobre uma das gôndolas, fazendo uma enchente de brinquedos correrem pela loja, junto com sua própria 93-R. A luz que entrava pela porta revelou os traços escuros do USV, era um Usuário Final. O Usuário inadvertidamente abaixou para recuperar sua arma e Adam saltou sobre ele, jogando-o porta a fora. Os dois rolaram pelo chão, lutando pela arma sem dono e antes que o Usuário a recuperasse, Adam se jogou sobre seu corpo, sacando a Beretta reserva e apontando-a para a cabeça da garota de cabelos lisos e castanhos claros que o encarava assustada. Os olhos dela eram tão azuis que pareciam translúcidos, o rosto rosado estava sujo, um hematoma tingia a bochecha direita e um risco avermelhado cruzava seu nariz de um lado a outro.

— Você é um Usuário Final? — ela perguntou, sua voz era ligeiramente infantil, porém transparecia um ar de responsabilidade e dureza.

— O que você acha? — indagou com sarcasmo — Você atirou em mim! Por que raios todo mundo aqui quer me matar?

— Quando eu vi o sorriso, achei que você fosse um Devorador! Que mau gosto para um capacete!

— Nem vou falar o que é de mau gosto! — E saiu de cima dela, porém não baixou a arma — quem é você?

— Me chamo Emily... — ela disse, sentando-se no chão. Emily olhou para a arma largada junto de um carrinho azul e na ausência de uma reação agressiva de Adam, a pegou de volta.

Adam ficou olhando-a por um instante, tentando decidir o que fazer. Da última vez que encontrara outro Usuário Final, quase morreu. Não que dessa vez não tivesse sido diferente, mas pelo menos não queria que o encontro terminasse da mesma forma. Mentalmente pediu a AIDA que checasse quem aquela garota era, a pasta crianças perdidas se abriu e uma dezena de rostos passaram rapidamente, até que um deles parou.

Emily Nobody — Sem equipe — ativa há três meses.

— É educado falar seu nome para uma pessoa que acaba de se apresentar, sabia?

— Até as que atiram em você?

— Principalmente essas.

— Eu me chamo Adam. — disse e logo voltou à loja para procurar sua arma. Emily o seguiu — Nobody... mas que tipo de sobrenome é esse? — ele continuou.

— É um apelido, não um sobrenome. Como no filme, sabe?

— Filme? — perguntou, sem demonstrar o menor interesse.

— Ok, não estamos falando a mesma língua. Com quem você estava? Era com a equipe daquele vovô? Eu nem lembro o nome do cara, ele morreu não foi?

— Não faço ideia. Estou com os Helldivers. Digamos que eu seja a equipe de resgate. Só sobrou você?

— Caramba! — ela exclamou. Seus olhos estranhamente pareciam maiores. Talvez fosse apenas a forma como ela o olhava, mesmo assim era estranho — Cara você é um Helldiver! Um Helldiver! Não imaginava que viria gente de peso para o resgate! Que foda!

— Na verdade parece que fomos os únicos a aceitar. Ninguém foi pirado o bastante para se meter num buraco desses e eu começo a me arrepender levemente da escolha. Então, você é a única? Tem mais alguém com você? E o que você está fazendo por aqui?

— Ah, tem sim ­­— ela respondeu, retirando uma poeira invisível do corpo — Mas não espere grande coisa. Eu ouvi um barulho estranho e nossos sistemas ficaram estranhos, daí como eu sou a única pessoa com coragem por aqui, resolvi dar uma olhada. Daí encontrei você. Bom, de qualquer forma vou te levar até os outros.

Após recuperar a pistola, Adam a seguiu por caminhos sinuosos e estreitos. O Shopping parecia dar lugar a uma espécie de fábrica, cheia de tubos e encanamentos que vez ou outra soltavam baforadas de um vapor quente. Intercalando com as lojas vazias, os dutos subiam até sumirem de vista no emaranhado dos andares.

— Como você sabe o caminho? Esse lugar não reorganiza?

— Não, só os andares superiores reorganizam. Estamos no subsolo. O problema é que toda vez que tentamos sair ocorre uma reorganização de emergência e bagunça tudo. Acredito que seja para que não escapemos daqui.

Adam apenas concordou com um aceno de cabeça. Agora ele entendia o que havia dado errado enquanto ainda estava com seus amigos.

— Então senhor Helldiver — ela começou, a ansiedade parecia vazar pelos cantos da boca —, como é ser um caçador? Você é um caçador né? Para entrar aqui sozinho...

— Sim, eu acho que sou — respondeu meio sem jeito.

— Eu pretendo ser uma caçadora também, sabe? Mas a aprovação tá foda! Eu queria fazer parte das Madames, aquele grupo de meninas, mas eu preciso ter experiência de campo, elas disseram. Essa missão teria sido perfeita se não fosse aquele bando de idiotas.

— Já ouvi falar — mentiu — O que foi que eles fizeram?

— Acharam que poderiam dar conta sozinhos. Deveríamos ter chamado uma equipe de caçadores, mas não dá pra esperar suporte numa missão desse nível, se é que me entende.

— Não, eu não entendo. Por que não esperar suporte? Vocês entraram na maior roubada, achei que fosse...

— Adam — ela o interrompeu — Isso aqui é uma operação ilegal. Não estamos em nenhuma dessas missões oficiais que vocês famosinhos encaram toda noite. Nem todo mundo tem a mesma sorte de ser aceito nos Helldivers. As pessoas têm que se virar como podem. Você está ativo há quanto tempo?

— Dois dias. — respondeu sem se importar com o que isso causaria. — E já sei, eles não aceitam novatos, cansei de ouvir isso.

Emily parou. Seus olhos pareceram ainda maiores, deixando-a com uma expressão infantil e muito delicada. Para Adam era difícil imaginar uma garota como ela tendo que se arriscar na Rede todas as noites, os traços suaves de seu rosto exerciam nele um estranho senso de proteção, como se ela fosse uma criança em perigo.

— Minha nossa... — ela suspirou passando a mão pelo rosto ­— Me diz que você é algum tipo de prodígio e que você não está sozinho.

— Eu não sou um prodígio e nem estou sozinho. Fui escolhido por um motivo, entende? Tenho minhas habilidades, já conquistei meu lugar como um caçador e sozinho ou não, eu sou a melhor chance que vocês têm de cair fora daqui com vida.

— Certo, não vamos tocar nesse assunto de novo. — E recomeçou a andar — Sabia que fui eu que fiz aquela coisa com os emoticons? Vocês vieram por isso, não foi?

— Muito esperto da sua parte. Porque você não mandou um novo sinal? Desde a última reorganização não veio nada, vai ficar difícil para meus amigos chegarem até aqui sem um sinal.

— Já que você está aqui poderemos resolver isso. O Usuário que estava com o telefone sumiu, mas ninguém teve coragem de sair para procurar. E obviamente que eu não sou idiota de sair sozinha. Ei, será que você pode fazer algum tipo de recomendação pra mim? Sabe como é, você é um Helldiver, trabalha com a HeLa, tem contato com todo tipo de gente legal. Não que um novato tenha muita credibilidade, eu sei mas... Não! Espera, não estou desmerecendo você, é só que...

— Emily.

— Sim?

— Vamos cuidar de tirar você daqui primeiro, ok? Depois resolvemos isso.

— Isso é um sim?

— É um talvez.

Emily deu um soco em alguma coisa invisível e por um momento Adam se lembrou de Eriza. Sorriu discretamente, mesmo assim ela percebeu, deixando escapar um riso tímido.

— Algo me diz que vamos virar amigos, Senhor Helldiver. — Emily disse, virando-se para ele, com as mãos nas costas — Eu tenho uma intuição muito boa. Será que eu tenho um dos códigos de acesso? Fiquei sabendo que tem uma garota numa equipe de caçadores que pode prever o futuro, isso não é incrível?

Emily parecia o perfeito retrato de como um adolescente levava aquela vida, assim como ele mesmo tentava encarar a situação. Por mais desesperador que fosse, por mais terrível, tudo ainda parecia uma grande aventura, um jogo de vídeo game com uma única vida, sem “continues” ou “save games”. Ele se incomodava ao pensar nisso, mas se começasse a levar aquilo tudo para o lado real, se ficasse com a ideia de que poderia morrer a qualquer instante, enlouqueceria. Lembrou-se dos Helldivers no chat e de como eles lidavam bem com a morte iminente e o perigo constante que tinham que suportar. Emily era um claro exemplo e isso era algo bom, algo realmente bom. A confiança que ela pareceu depositar nele amenizava o medo que estava sentindo por dentro. Aquelas pessoas dependeriam dele para sair dali, agora, mais do que nunca, estava na hora de parar de choramingar e crescer de uma vez por todas.


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