Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 24
Depois de acordar 5:2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/540156/chapter/24

— Você por um acaso prestou atenção em alguma coisa que eu disse?

— Não, nenhuma.

A sala de aula mergulhou num silêncio absoluto. Ele esperava por gargalhadas e um burburinho, mas por alguma razão seu comportamento parecia constranger os outros, os deixava... oprimidos. Desde quando as coisas começaram a funcionar daquela forma?

O professor de história o encarava por debaixo dos óculos arredondados, a boca levemente aberta como se estivesse prestes a dizer alguma coisa, mas as palavras pareciam ter morrido muito antes de terem surgido em sua boca. Adam quebrou o silêncio perguntando se poderia sair para lavar o rosto, pois não se sentia bem. O professor concordou com um aceno de cabeça e ele se foi rapidamente.

Não é que estivesse desinteressado nas aulas, mas justamente naquele dia, as coisas estavam ficando complicadas. Não parava de pensar na descoberta que havia feito, de que possivelmente a menina que ele conhecera no passado e a misteriosa garota que ele via na Rede, eram a mesma pessoa. Isso sem contar na ligação que havia com o antigo Link da Beatriz, que por sinal estava morto. Isso explicaria o fato dela aparecer como se fosse um fantasma, pedindo para que faça algo por ela. O pensamento de que a jovem de olhos bonitos estivesse morta, quase o fez perder o equilíbrio, fazendo suas pernas amolecerem por um instante. Uma gota escorreu quente de seu nariz.

Sangue. Pegou uma toalha de papel no banheiro e apertou-a no nariz para estancar o sangramento, olhando-se no espelho rachado. Estava pálido novamente, uma veia pulsava em sua testa e a cabeça começou a doer. Fez uma nota mental para verificar com a IA se havia sofrido algum tipo de dano cerebral grave. O celular no bolso começou a vibrar e ele atendeu a ligação sem nem ao menos consultar o identificador de chamadas.

— Sim?

— Ocupado? — Era Beatriz.

— Não, tá ok. — ele respondeu meio sem jeito, limpando os últimos respingos de sangue do nariz.

— Ótimo! — ela disse animada, quase sussurrante, aparentando estar correndo — Preciso de você para fazer uma coisa!

— Que coisa?

— Preciso de uma testemunha para sacanear alguém, o que você acha?

— Acho que...

— Perfeito! Você foi o único que aceitou participar! Valeu! Vou te apresentar minha amiga primeiro! Lá vai a foto! — interrompeu Beatriz, antes mesmo que ele pudesse falar que talvez precisasse voltar para a aula.

O telefone ficou mudo e em instantes, a mensagem de Beatriz havia chego. Ele baixou o aparelho para espiar rapidamente, descobrindo a foto de um taco de beisebol preto, a ponta levemente amassada, indicava que o taco era de metal e que ela provavelmente havia batido em alguma coisa com bastante força. Algo pareceu se enrolar em suas entranhas e um misto de excitação e nervosismo passou a tomar conta dele, foi como se num instante estivesse ao lado dela, correndo para fazer o que quer que fosse, errado ou não.

— Minha nossa! — Adam exclamou ao voltar com o celular na orelha, abaixando-se como se estivesse se escondendo de alguém e continuou com a voz baixa — Imagino que você não pretenda jogar beisebol.

— Não, mas eu sei dar umas belas rebatidas. Ou seriam batidas? — Os dois riram e ela pareceu ter finalmente parado. A respiração dela estava ofegante, deixando sua voz ainda mais sensual.

— Agora vou te apresentar a vadia de alguém. — continuou, Beatriz — Lá vai foto, pega!

A nova imagem recebida, mostrava um carro antigo, um modelo clássico, verde limão, que Adam já havia visto em alguns filmes. Devia ter custado muita grana, muita mesmo.

— Acho que isso vai doer bastante.

— Eu espero que sim — ela respondeu lentamente e Adam pôde ouvir alguma coisa sendo arranhada. Imaginou a pintura reluzente descascando feito raspas de limão.

— Achava que a Carla era a única pirada da equipe.

— Pense pelo lado bom, eu não quero matar você.

— Muito reconfortante, obrigado. O que ele fez para você?

— Moro a três casas daqui e não temos o mesmo gosto musical. Outro dia ele tocou música tão alta que meu sincronismo quase me matou. O exterior influência bastante quando vamos para a Rede.

— Você é bem vingativa. Ninguém vai ouvir ou chamar a polícia?

— Vingativa não, eu me chamo justiça — respondeu com uma voz séria, em seguida caiu na gargalhada — Na verdade me chamo Beatriz, mas achei que falar isso seria legal. O filho da puta não está e acredito que se você morasse por esses lados da cidade, e visse uma garota mascarada com um taco de beisebol nas mãos, você com certeza voltaria correndo pra sua cama.

Adam riu, imaginando a cena. Ele nunca pensou que fosse passar por aquele tipo de coisa, nem mesmo que Beatriz pudesse fazer aquilo. Na verdade, era impossível imaginá-la fazendo qualquer coisa. Essa era a graça dela, seu charme, um carro desgovernado poderia levar você para qualquer lugar do mundo, o que incluiria uma parede de concreto. Mesmo assim, a emoção de estar do outro lado do volante era insuperável. Aquela imprevisibilidade era completamente o oposto dele e de sua vidinha pacata, uma saída de emergência que parecia o catapultar em direção ao desconhecido.

— Últimas palavras antes do fim? — perguntou Adam, entrando no clima da situação.

— Bom... deixe-me ver... Fico feliz por ter aprendido como desligar alarmes de carro, por ter ganho essa máscara ridícula, por meu primo ter abandonado o beisebol e por ter um parceiro nesse momento tão importante na vida de uma garota! Vamos começar o show?

— Você é a estrela, o palco é todo seu.

A primeira pancada quase acertou seu ouvido de tão alta, obrigando-o a afastar o telefone da orelha. O ruído do vidro sendo estilhaçado fazia borboletas se agitarem em sua barriga. Por entre uma pancada e outra ele ouviu-a gritar alguma coisa, um palavrão, alguma ofensa ao dono do carro, algo para nunca mais se meter com ela. Mais uma batida e algo parecia ter caído, talvez fosse o retrovisor, um barulho de metal depois e alguma coisa foi arremessada, quicando na rua, provavelmente aquilo sim era o retrovisor. O evento durou menos de cinco minutos e pelas fotos que ela mandava, nos momentos em que parava para recuperar o folego, era possível perceber que ela definitivamente não levava jeito para beisebol, mas talvez levasse para algum tipo de arte abstrata.

As pancadas pararam, mas não foi para mandar outra foto. O coração de Adam apertou, parecia que alguém havia chego.

— Como é que é? — Beatriz gritou, não era uma pergunta — Escuta aqui seu merdinha, abre a boca e eu faço você voltar pra casa rastejando, entendeu? Agora some daqui! — em seguida caiu na gargalhada de novo — Acabei de ameaçar uma criança de uns cinco anos, é o filho de uma amiga!

— Acho que alguém vai ter pesadelos por semanas. Que coisa feia Beatriz! — ele riu, de certa forma, aliviado.

— Opa, faltou as lanternas — e no instante em que o ruído metálico que o taco fez ao arrebentar as lanternas chegou aos ouvidos de Adam, um alarme estridente e agudo soou ao fundo. A brincadeira havia chego ao fim.

— Puta merda! Esqueci os alarmes do airbag! Droga! — em seguida tudo o que Adam podia ouvir era a risada ininterrupta de Beatriz, enquanto sua respiração ofegante demonstrava que ela estava correndo o mais rápido que podia. Ela gritou alguma coisa e ele ouviu um chiado, um barulho de motor, talvez fosse um ônibus. A corrida fez o coração de Adam disparar novamente, a adrenalina bombeada em suas veias, como se ele tivesse participado ativamente do evento.

— Demos uma lição nele! Valeu parceiro! — ela agradeceu animada.

— Você é completamente insana! — afirmou, Adam, eufórico — Isso foi loucura! Você podia ter sido pega!

— Perfeito, já que você tem o link da minha antiga parceira de crimes, nada mais justo que você assumir o lugar dela!

— Não acho que eu seja uma boa companhia para essas coisas, mas já que estamos falando nisso, acho que...

— Como você tocou no assunto insanidade, fiquei sabendo que um Usuário Final pirado quase se matou no Distrito Industrial essa noite. Você sabe algo a respeito?

— Eu... só fiz o que tinha que ser feito — Adam respondeu, meio sem jeito, o tom de voz de Beatriz parecia sugerir que a conversa tomaria rumos desagradáveis.

— Isso inclui quase acabar com a própria vida?

— Sua amiga estava determinada a fazer isso primeiro.

— É, eu sei. Cara minhas mãos doem!

— Bom, você me disse que falaria do Link, que tal agora? — Ele resolveu arriscar, sendo direto antes que ela o interrompesse novamente.

— Direto ao ponto, você é rápido.

— Diria “preciso”.

— Ela era minha melhor amiga. Minha parceira de crimes, juntas, a gente fazia de tudo e eu confiei minha vida nas mãos dela. Nos divertíamos pra caramba!

— E o que aconteceu?

— Ela fez merda e eu tive que dar cabo dela. Fim da história.

— Você a matou? — ele perguntou, os olhos arregalados como se tivesse acabado de ver um fantasma.

— Sim.

Adam já sabia que ela estava morta, mas ao ouvir daquela forma, ele sentiu as costas gelarem. Apoiou uma das mãos na parede e achou que fosse desmaiar, tudo parecia rodar e rodar. “Elas não podiam ser a mesma pessoa, não podiam ser a mesma pessoa”. Ele repetiu aquilo mentalmente, vez após outra, apertando o celular na mão.

— Ela era sua melhor amiga! — Adam não percebeu, mas quase havia gritado.

— Você por um acaso a conhecia?

— Não... na verdade não sei! Mas eu tenho o Link dela e acho que... Mas que droga! Achei que estávamos todos no mesmo time...

— E estamos! — Beatriz respondeu prontamente, com convicção — Mas me parece que você está escondendo alguma coisa.

— Eu não tenho nada a esconder! Vocês é que me esconderam tudo! E agora acabo de saber que você matou a pessoa que ocupou o meu lugar, e que por sinal, era sua melhor amiga! Era por isso que a Carla queria me matar?

— A Carla quer matar todo mundo! — E riu, não deixando transparecer se aquilo era ironia ou não — E desde quando você se importa tanto assim com a vida das pessoas que você não conhece? Até onde sei, seu perfil psicológico diz que você é quase um sociopata.

— Você estava investigando ao meu respeito? Tem uma grande diferença entre ser um sociopata e ser um assassino.

— Eu sou a chefe, eu investiguei todo mundo! Escuta Adam... você não a conhecia, ela matou pessoas, matou gente inocente! Você está me julgando sem nem ao menos se perguntar o porquê eu fiz isso!

— Matou... pessoas? — as palavras quase não saíram. Elas definitivamente não podiam ser a mesma pessoa. Nesse instante, ele percebeu que nem ao menos a conhecia, estava mais uma vez deixando-se levar pelas emoções, não estava agindo racionalmente. Aqueles olhos bonitos podiam esconder qualquer coisa, ela podia muito bem ter sido a assassina da qual Beatriz dizia.

— Por que você acha que tivemos que chegar a esse ponto? — questionou Beatriz, não esperando uma resposta — Às vezes as pessoas não são como imaginamos.

— Acho que eu sei como é — concluiu de forma ambígua — Mas para mim sempre haverá outra escolha.

— Não no lugar para onde vamos.
Silêncio.

— Adam, já chega, ok? — Beatriz disse, num tom calmo — Ela matou pessoas, alguém teve que pará-la e esse alguém foi eu, a melhor amiga dela, é um peso que eu vou carregar para sempre. Se você quiser me odiar, vamos lá, vá em frente, mas isso não vai mudar o que aconteceu. Não vai mudar a realidade em que vivemos e da qual você faz parte agora.

Por pior que fosse, ela parecia ter razão. Ele apenas havia ficado nervoso com a ideia de que a pessoa que ele conhecia estava morta, e que Beatriz havia causado isso. Mas por mais nervoso que ele estivesse, e por mais misteriosa que ela fosse, não foi difícil perceber o quanto aquilo tinha machucado Beatriz, era perceptível em seu tom de voz, nos suspiros sutis que ela dava ao falar sobre sua “parceira de crimes”. Naquele momento havia entendido o motivo de Valéria ter dito para ele não tocar no assunto dos links.

— Vou contar uma coisa para você — Ela continuou, a voz carregava um peso incomum para ela —, é fácil arriscar a própria vida, mas quando é a vida de outra pessoa que está em suas mãos, o jogo muda. E se um dia esse momento chegar para você, e acredite, cedo ou tarde ele vai chegar, espero que você consiga encontrar sua “outra escolha”. Alguém precisa voltar para a aula agora, não quero que ninguém pense que você se matou no banheiro. Beijinhos e até a noite.

E antes mesmo que ele pudesse dizer qualquer coisa ela desligou.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Usuário Final" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.