Renascer Dourado escrita por Sargas


Capítulo 1
Garotos Comuns




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RENASCER DOURADO

SUBMUNDO —

O barco rangia de forma anormal e ela não sabia se o som incomodava tanto ou se os quatro passageiros da embarcação rústica sentiam o ruído de uma maneira diferente graças ao desconforto que a viagem lhes causava. A única certeza que tinha era a de que o lugar parecia exatamente com tudo que ouvira falar a seu respeito, ao mesmo tempo em que se diferenciava de qualquer coisa que imaginara a respeito de tal domínio.

Levantou com delicadeza a comprida manga de sua vestimenta longa feita de um tecido tão leve, porém tão resistente que nunca poderia ter sido confeccionado por quaisquer mãos humanas... Sentiu um frio seco subir pelo seu braço nu e sem se deixar intimidar pela sensação sinistra, levou a mão até a superfície da água escura, pequeninas ondas em forma de anéis se formaram na ponta de seus dedos em contato com o líquido e se abriam em volta de sua mão, indo sumir a distância deixando o rio calmo novamente, como se nada pudesse quebrar sua tranqüilidade mórbida.

Ao longe, na outra margem, podia-se ouvir os gemidos e lamentações dos que nunca poderiam embarcar junto com Caronte para a margem oposta do rio, nem tampouco alcançar o imenso portão de acesso definitivo ao submundo.

O barqueiro esquelético e de olhos fundos, lançava olhares furtivos para os quatro que

carregava em seu pequeno barco. Seres incríveis aqueles, de aparência delicada e ao mesmo tempo tão poderosa, de expressões tão serenas, mas dotados de uma ira capaz de destruir mil vezes o universo caso contrariados.

Caronte encarou a garota com ar de repreensão, já havia se acostumado com esse tipo de visita, afinal o Senhor dono desse domínio fazia parte da família:

— Não devia tocar nessas águas impuras! Vai sujar suas mãozinhas delicadas antes mesmo de se apresentar ao meu Senhor...

Um dos irmãos que não parecia inclinado a qualquer tipo de conversa, em pé ao lado do barqueiro respondeu sério, enquanto mais uma vez o frio seco do lugar arrepiava levemente os louros fios de seu cabelo:

— Continue olhando para frente, criatura vulgar. Seus conselhos não nos interessa, assim como a visão desse seu rosto asqueroso.

Caronte continuou remando, agora olhando para frente, mas sem deixar de resmungar em alto e bom som:

— Uns intrometidos, isso é que são! Nunca vi um lugar para mortos ser tão freqüentado por vivos. Esse aí... – E apontou para o segundo irmão, um rapaz de cabelos ruivos e olhar felino que lhe sorriu maroto — ... já tem livre acesso por essas bandas desde que esse mundo é mundo. Agora resolveu descer com mais três a tira-colo... meu Senhor deveria é fechar de vez os portões do Submundo, isso sim...

O rapaz ruivo soltou uma gargalhada gostosa, o irmão louro apenas aspirou o ar carregado, dilatando levemente as narinas perfeitas e delicadas com ar de náusea, a garota continuava molhando as mãos com um olhar desconfiado e fixo no remador. Já o quarto e ultimo rapaz da embarcação, de belos e longos cabelos azuis franziu o cenho, mas preferiu continuar com seu silêncio tenso.

— Que isso meu velho Caronte... se meu tio cometesse esse disparate que disse aí, você ficaria desempregado... – Respondeu o ruivo dando um tapinha amigável nas costas do velho e rabugento barqueiro.

O quarto rapaz até então calado resolveu esboçar uma opinião:

— De qualquer forma, acredito que meu irmão não vai abrir mão tão facilmente daquela aquisição.

A garota encarou com olhar ardente o rapaz e tirou a mão da água com violência:

— Tenho certeza que ele não fará objeção alguma, já que eu lhe dei tal aquisição.

— Com certeza não o conhece tão bem quanto eu, minha sobrinha. Meu irmão tem o péssimo hábito de se afeiçoar a cada amaldiçoado que pisa aqui em seus domínios...

Ela sorriu debochando do comentário dele:

— E por acaso não acontece o mesmo com todos nós? Não nos afeiçoamos a cada um dos que recorrem a nossos templos procurando proteção e não os escravizamos fazendo deles joguetes em nossas mãos imortais?

O irmão louro interrompeu a discussão apenas com um gesto de mão, logo quando o quarto rapaz iria demonstrar seu desagrado pela resposta da garota:

— Essa viagem até aqui terá sido em vão se nosso tio perceber que os membros de nossa Aliança descordam entre si nas formas como regem, minha irmã. Peço que ambos deixem suas rixas nessa embarcação antes mesmo de chegarmos à presença do Senhor do Submundo, ou ele não levará a sério nossos planos de resistência.

Ambos se calaram, mas podia-se sentir os ânimos exaltados. O ruivo apenas se acomodou como pôde no banco precário do barco e preferiu não se intrometer nessa pequena desavença, aquilo se tornou rotina entre eles, mas as altercações nunca se ficavam mais graves graças ao irmão louro que com apenas poucas palavras calava qualquer reação adversa... Afinal de contas era ele quem estava no comando agora que o pai já não se encontrava disponível.

O anfitrião estava sentado comodamente em seu trono na gigantesca e imponente sala ornamentada de mármore e ouro. Quem já tivesse ouvido falar do Submundo, jamais imaginaria a riqueza que possui esse lugar e o bom gosto que seu rei emprega até mesmo nos mínimos detalhes a sua morada. Os quatro não precisavam ser anunciados, porém um servente de pele pálida e porte atlético sem demonstrar qualquer tipo de emoção facial, empurrou a pesada porta a sua frente para anunciar numa voz fraca, quase um sussurro a chegada dos visitantes, o Senhor com um gesto de cabeça permitiu que esse os conduzisse para dentro.

O primeiro a entrar foi o irmão louro, seguido de perto pelo rapaz de longos cabelos azuis e o ruivo, por ultimo a garota. Ele não esperou muito para ouvir as palavras do rei dos domínios do Submundo:

— Então... é verdade tudo o que tenho ouvido falar sobre os planos de vocês? Estão pensando mesmo em enfrenta-lo?

— Meu tio... – Foi dizendo o louro sem rodeios — ... acredito que não nos resta alternativa. Não podemos continuar escondidos e inertes enquanto as forças dele avançam galgando poder e destruindo aqueles que resistem.

O Senhor sorriu de um jeito calmo e discreto: — Como quiser, meu sobrinho. Sei que já faz muitos milênios desde a ultima vez que ouviu ou aceitou um conselho sequer, sempre se bastando de sua própria opinião e intuição... é de fato o mais vaidoso de todos.

Ele se levantou lentamente e aproximando dos quatro, acenou com a cabeça para o rapaz de cabelos azuis: — Me surpreende a sua presença entre eles, meu irmão.

— Se tudo acabar da forma como ele quer, nem o meu, nem o seu e nem mesmo os domínios de nosso pai estará livre de sua presença, irmão. Se tudo que nos resta é o plano de nossos sobrinhos, então que assim seja.

O Senhor permaneceu calado por um tempo, analisando cada traço do rosto do irmão, ainda sorrindo tranqüilamente. Depois ele voltou-se novamente ao louro:

— Então, devo crer que a visita de vocês se deve a algum favor que querem me pedir, não?

— Sim meu tio. Há milênios atrás, minha irmã mandou algo de presente para o senhor, mas agora, nos a queremos de volta... por algum tempo.

Olhando agora para a garota, ele disse:

— Então que ela peça, porque só assim poderei confiar que a terei de volta assim que cumprirem seus objetivos.

Dita essas palavras a irmã de cabelos tão negros quanto a noite, se aproximou do Senhor e olhando bem dentro de seus olhos ela pediu em tom de ordem:

— Que o Senhor me entregue aquela a qual nem mesmo cem milhões de anos aqui no Submundo poderá pagar pela sua traição e eu dou minha palavra por garantia até que não haja mais lua, de que tão logo tudo acabe terá de volta a criatura.

Ele se afastou um pouco dos quatro, passando por eles em direção a porta pela qual entraram, então acenou:

— Isso me é suficiente. Acompanhem-me.

Os olhos da garota não se desviram não um instante sequer do titânico portão que se abriu a frente dos cinco, mesmo quando pode visualizar bem os horrores indescritíveis que aconteciam do outro lado do imenso muro. O enorme cão de três cabeças babava e rosnava forte para eles enquanto ainda permanecia imóvel ao lado do portão, o Senhor passou a mão numa das cabeças num gesto afetuoso:

— Calma meu amigo, está tudo bem... eles ainda não pretendem passar. – Depois apontou com um gesto longo de mão para a figura que se arrastava lentamente para fora – Aí está o que vieram buscar.

O ruivo com olhar vidrado na criatura cerrou o punho, o louro apenas demonstrava uma impaciência digna de quem queria sair logo daquele lugar tenebroso, o rapaz de madeixas azuis não parecia tão incomodado e a garota continuou prostrada no lugar onde estava, mas no interior de seu ser imortal, gostaria de força-la a entrar novamente ficar ali por mais milhares de anos, até que não houvesse mais tempo que pudesse contar seus dias de sofrimento. Mas ela não podia, precisa de toda a ajuda que pudesse obter, necessitava das melhores ao seu lado se desejasse a sobrevivência dos seus e mesmo estando diante de si apenas a sombra da imagem que um dia aquela serva e amiga foi, mesmo estando seus punhos em carne viva assim como seu tornozelo por causa dos grilhões que os prendia, sua longa vestimenta transformada em trapos esfarrapando com um simples sopro e sua pele marcada por séculos de tortura desumana, ainda emanava de algum lugar em seus olhos o brilho da guerreira que um dia ela havia sido. A garota virando-se de costas e saindo do lugar, pediu ao ruivo:

— Traga-a meu irmão, agora que estamos todas reunidas novamente não podemos mais perder tempo... até porque nem mesmo ele está do nosso lado.

Dizem que os Cavaleiros da Esperança sempre voltam para nos salvar, quando o mal começa a espalhar-se pelo mundo. Quando novamente os seres humanos estiverem em dificuldades, eles aparecerão trazendo a luz da esperança...

... Até que venha uma nova Batalha Santa.

***

ALGUM MOMENTO, 100 ANOS NO FUTURO

GRÉCIA

Ela suspirou pesadamente antes de sair do carro, não tinha uma boa impressão sobre aquela viagem... Aliás, se tratando de pressentimentos, ela não estava numa semana de sensações tranqüilas, gostaria de ter discutido mais a idéia da viagem com o amigo... ou ele não seria mais apenas um amigo depois de tudo que foi dito naquela noite?

Levou a mão ao chapéu ornamentado por uma fita de seda rosada, seu coração ultimamente parecia pesar o dobro por causa dos calafrios inexplicáveis que sentia sempre que pensava em seu futuro, ou no futuro de qualquer ente querido próximo.

— Saori? – A mão balançou delicadamente a sua frente, o rapaz lhe estendia o braço de forma cortês e elegante para ajuda-la a sair do automóvel.

Ela forçou um sorriso simpático: — Obrigada Kanon. – E aceitou o gesto do rapaz, apoiando-se em seu braço enquanto ambos caminhavam tranqüilos para o imenso navio aportado no cais.

Saori observou bem cada detalhe do cais antes de embarcar, havia um nó absurdo em sua garganta, o que era ridículo, já que o cruzeiro não demoraria mais que um mês se tudo corresse bem... Correr bem... Eram essas as palavras que ecoavam em sua mente, mas de uma forma pessimista e preocupada.

— Prontinho... – E Kanon colocou o celular de volta no bolso na camisa pólo que usava – Já avisei meu irmão que não devo dar as caras no escritório pelos próximos dias...

— Acho que você devia dar um pouquinho mais de importância para os negócios da família, sempre vejo seu irmão sobrecarregado com coisas que você poderia ajudar.

Ele riu demonstrando todo o desagrado que aquelas palavras lhe causavam: — Que isso, Saori... pra que serve o dinheiro se não para usufruir dos privilégios que ele traz? O meu maninho gosta de trabalhar, ele faz disso sua diversão... Não é a toa que nunca arrumou uma namorada, tem com o trabalho a mesma relação que você tem com... compras, por exemplo. A diferença é que ele diferente de mim, não mama nas tetas do nossos pais e como você com seu avô.

A garota preferiu calar-se, estava angustiada demais para responder a altura aquela ofensa...

***

GRÉCIA

Aquilo deveria ser interessante para meia dúzia de pessoas, talvez até mesmo para sua namorada ao seu lado, que demonstrava empolgação a cada nova informação que seu irmão lhe passava, mas aquele papo não era nem de longe a melhor forma de passar o dia com a sua garota. E justamente quando ele achou que teria um dia tranqüilo, longe de toda aquela histeria coletiva que as suas alunas faziam cada vez que ele passava um exercício um tantinho mais complicado... Garotas mimadas de um colégio feminino particular, particularmente caro, ele diria... e o seu salário como professor estagiário comparado a cada mensalidade que uma daquelas patricinhas pagavam parecia uma piada das mais sem graça.

Coçou a cabeça e percorreu o salão com os olhos, estava faminto. Não comia nada desde o café da manhã e seu irmão fazia o favor de aluga-los por mais de três horas pra contar sobre os últimos resquícios arqueológicos que demonstravam não ser a mitologia apenas lendas, ou alguma coisa parecida com isso...

— É verdade! Há algumas dezenas de anos atrás antes da Revolução dos Países Subdesenvolvidos, quando alguns de nossos templos ainda estavam de pé, muitas pessoas diziam ter visto coisas magníficas acontecendo no Paternon. Mas os registros foram destruídos durante a Batalha dos Sete Dias, quando o templo de Palas Atena foi transformado em pó.

A garota ficou pensativa por um tempo, depois ela cutucou o namorado que continuava distraído sem prestar atenção nas palavras de seu irmão:

— Lembra Aiolia! Nós vimos um documentário sobre alguma coisa assim na semana passada. Dizia que alguns arqueólogos encontram vestígios de uma ocupação recente anos antes do templo ser destruído...

Aiolia passou a mão pela nuca sem graça: — É... era alguma coisa do gênero mesmo... Coisa estranha, né Aiolos?

— Coisa estranha... – E Aiolos deixou de lado a pequena estatueta que segurava, colocando-a novamente na vitrine de exposição — ... é ter um irmão completamente ignorante no que se trata de história mundial. Faz idéia do quanto essas informações podem influenciar no nosso futuro?

Aiolia estava cansado demais, com uma fome astronômica e com os brios feridos por ter levado uma bronca do irmão mais velho na frente da namorada: — Não! Não faço idéia de nada a não ser do fato de você estar nos segurando aqui há mais de horas e que eu assim como a Marin estamos FAMINTOS! Conectou ou não, Aiolos, seu sem noção!

Aiolos riu da cara do irmão caçula e passando tranqüilamente o braço pelo ombro dele, acompanhou-os até o final do salão: — Ohhh, que bonitinho, quer fazer lanchinho com a namoradinha? Beleza, eu te monstro a área de alimentação seu esquentadinho... Porque não falou antes?

Aiolia incomodado e sem graça:

— Porque era impossível concorrer contigo enquanto falava.

***

GRÉCIA

O dia estava quente, talvez quente demais para qualquer um que estivesse acostumado com as temperaturas do século XXI. O trânsito caótico só exaltava ainda mais os ânimos e os pedidos não paravam de chegar, parecia impossível as pessoas conseguirem comer tanta pizza num dia como aquele... se ainda fossem sorvetes... mas pizza

A sala estava rodando (seria a sala ou era ele?), sua pele parecia derreter e escorrer pelo seu rosto, num impulso instintivo o rapaz levou a mão a testa, certo de que quando olhasse bem para os dedos veria sua carne derretida entre eles. Náá... era apenas suor. Não “apenas suor”, já que ele estava transpirando aos baldes... e o seu patrão... Ele tinha certeza de que o homem lhe dizia alguma coisa muito importante, mas... aquele calor! Ele tirou o boné e começou a se abanar com ele, o cabelo comprido caiu como uma cascata pelos ombros e costas, devia ter cortado quando o verão começou... bah! As meninas sempre acharam um charme, bom... agora ele não estava nada atraente, suava como um porco perto do abate, sua cabeça doía, seus ouvidos zumbiam, a sala girava e para piorar tudo sabia que deveria estar prestando atenção nas advertências do chefe, mas as palavras do diacho do homem chegavam até ele como um fita voltada ao contrário... em câmera lenta. E o sono? Não... não era bem sono, era uma moleza danada que deixava seu corpo todo lento.

Ele sabia que não devia ter levantado da cama aquela manhã, desde o momento em que tropeçou no chinelo, bateu com a cabeça na quina da porta e abriu um talho razoável na testa, até a hora do café na manhã em que percebeu ter entornado leite azedo no ultimo punhado de seu cereal (única comida disponível no apartamento até então)...

MILOOO!!

O grito de seu patrão trouxe o rapaz de volta a realidade, só então teve a mínima noção do que o indivíduo ficou mais de meia hora falando:

— Você não está nem aí pro que eu to te falando, não é seu merdinha? Pois presta atenção agora porque é a ultima vez que vou repetir isso pra você, moleque. Ou começa a entregar os pedidos no prazo, ou todas as pizzas que chegarem com atraso maior que dez minutos serão cobradas do seu salário. E seja grato por eu não demitir você de uma vez!

Milo tinha que responder alguma coisa, fazia parte de sua obrigação de macho responder àquele insulto e abuso de autoridade, quem ele pensava que era? Quer dizer... merdinha? Como assim merdinha? Se era pra ser sincero, então ta. Ia começar a dizer tudo o que achava daquele monte de bosta inchado sentado na sua frente espalhando aquele mundo de banha sebenta em cima da minúscula mesa que usava para distribuir fotos da baranga da sua mulher e os canhões que eram suas filhas! Milo ergueu o dedo indicador, abriu a boca para lavar sua honra de homem ofendido, mas ficou com o dedo estático, em riste sem dizer um “a” porque o diabo do patrão ainda acrescentou:

— E hoje você vai pegar o turno da noite.

— É o que?!

A criatura obesa nem se dava ao trabalho de olhar na cara dele, rabiscava alguma coisa num papel amassado enquanto secava o suor da testa encardida. Milo teve um espasmo de extrema repulsa, mas não conseguia emitir som algum que não se parecesse com ganidos:

— É isso que ouviu. O Eric não vai poder vir hoje, tem uma tal de prova num sei onde... pelo menos o garoto se esforça para fazer alguma coisa a mais na vida que você. Sou uma pessoa caridosa quando não se trata de gente fracassada... – O homem olhou para Milo com ar de deboche e reparando bem no dedo esticado continuou: — ... agora eu acho melhor você abaixar esse dedo e ir fazer aquela entrega pro escritório no centro, se pretende mesmo pagar o seu aluguel desse mês.

***

BRASIL

Não tinha jeito, era muito difícil se manter acordado após as longas horas em claro durante a noite. Mais de cinco crianças com febre, correria nos corredores do hospital... crianças frágeis como aquelas sempre era motivo de preocupação mesmo se tratando de uma febrezinha comum.

Mas eles já haviam perdido duas na ultima semana, o rapaz não agüentaria ver nenhum outro rostinho se apagando como uma vela fraca, nem ter de encarar os pais com aquela notícia devastadora. Apesar de tudo isso e de todas as percas e tristezas, nada no mundo o faria desistir de seu trabalho voluntário no hospital infantil e isso tinha a ver com sua escolha profissional como pediatra, tinha a ver com o amor que sentia por aqueles pequeninos cheios de sonhos e talvez sem tempo de vida suficiente para realiza-los.

— Aldebaran! – Ele sentiu uma mão sacudir seu ombro, só então se deu conta de que cochilara a aula toda.

— Ah... oi Estela. Peguei no sono de novo, não foi?

A jovem colega de sala ajeitou a alça da bolsa no ombro e respondeu com um ar de preocupação:

— Pegou no sono? Você até roncou! Na boa Aldebaran, pega leve ai com esse seu trabalho noturno, os professores estão começando a perder a paciência contigo...

Aldebaran acenou com a cabeça, e com um sorriso agradeceu ao conselho. Mas como ela poderia entender? Ele não podia simplesmente abandonar o hospital, já era tão difícil conseguir voluntários para ajudar... e depois as crianças já haviam se afeiçoado a ele, assim como o jovem á elas... Pensando nessas coisas, o rapaz foi o ultimo a deixar a sala.

Chegou ao pátio que dava acesso ao portão de saída da Universidade, a chuva carregada e violenta parecia não fazer a menor questão de ir embora e Aldebaran começou a ficar impaciente.

— Eita! Que foi, Aldebaran? Que pressa é essa? Vai tirar o pai da forca, rapaz?

Ele voltou-se para o amigo que acabava de chegar ao pátio e se tinha uma coisa que ele sempre admirou e sempre elogiaria no rapaz era a paciência que esse possuía. O mundo poderia estar acabando, mas seu amigo jamais perderia a calma, sempre pensando no melhor jeito de resolver tudo sem demonstrar o menor sinal de desespero. Aldebaran sorriu:

— Oi Mu. Não te encontrei quando cheguei, achei que a chuvinha da tarde tinha te assustado demais para vir pra aula.

Mu sorriu com a brincadeira e apanhando o guarda-chuva na mala onde carregava seus cadernos, respondeu:

— Nada, tive que ficar ajudando meus avós na lojinha de produtos naturais, cê sabe. Mas até que o número de pedidos está muito bom, juro que achei que não nos daríamos bem logo que nos mudamos do Tibet pra cá... só que a lojinha até que vende bem.

— Eu sei. As raízes que comprei lá outro dia fizeram um bem danado pra um dos garotinhos do hospital. Nunca mais teve nenhuma crise de asma.

Mesmo o jovem querendo carregar tranqüilidade nas palavras, Mu pode perceber claramente que o amigo estava atravessando o limite da preocupação:

— Fala aí, Aldebaran... o que ta te preocupando tanto?

Olhando angustiado para o céu escurecido pela tempestade e sentindo o respingo das grossas gotas que batiam no chão e molhavam a barra de sua calça, Aldebaran respondeu:

— A chuva. Percebeu como ela começou de repente e não diminuiu de volume?

Mu também desviou sua atenção para o céu:

— Agora que você mencionou... Está preocupado com o hospital, não é?

— Aquele bairro é um perigo, sempre alaga. Uma das voluntárias mais antigas me disse que há alguns anos, durante uma tempestade mais forte, as colunas ficaram prejudicadas... e o prédio está cheio de rachaduras. Tem tantas crianças doentes lá, Mu... se acontecer uma enchente, elas não conseguiram correr pra lugar algum.

Mu encarou Aldebaran e abrindo o guarda-chuva sorriu para o amigo:

— Então o que você está esperando? V’ambora pro hospital pra ver como andam as coisas por lá.

— E seus avós?

— Eu ligo avisando que vou me atrasar um pouco pro jantar, vai ser por uma boa causa.

***

FRANÇA

Por mais que ele quisesse entender, não era de sua natureza aceitar certas coisas. Tudo bem que o parque aquático necessitava de ajuda, que muitos reparos urgentes precisavam ser feitos e que os salários de alguns empregados estavam atrasados há algum tempo, mas se prestar á isso era demais.

O jovem balançou a cabeça de forma negativa, jurava que em outras circunstâncias teria achado graça, mas não agora... sentiu um focinho gelado e úmido em suas costas, virou-se sorrindo para uma das três focas que o rodeavam, uma delas cheirando o conteúdo de um balde aos pés do rapaz, a segunda cutucando suas costas como se pedindo mais comida e a terceira cansada demais para dar-lhe atenção, ele já não era mais nenhuma novidade por ali, ela já estava de barriga cheia então não havia motivo para ficar pajeando o humano. Sorrindo entregou os últimos peixes para as duas que ainda não pareciam satisfeitas e levantou-se apanhando o balde vazio e cheirando a peixe.

Rodeou a piscina e reparou como a água congelara na superfície formado uma fina camada de gelo branco... o frio estava insuportável aquele dia assim como havia estado durante toda a noite, mas não para ele que acabava virando motivo de inveja dos colegas de trabalho que só de pensar em ter sair da área coberta para alimentar os animas já congelavam as pernas. Ele passou por um grupo de colegas agasalhados da cabeça aos pés, alguns com os narizes escorrendo, outros com crise de tosse e reclamando de dores agudas no peito. Uma das garotas se afastou do grupo quando o avistou virando o corredor e foi atrás dele:

— Camus! Perái!

— Oi Cristine. Muito frio aí?

— Qual é, vai zoar a “véia” ... – Respondeu ela esfregando as mãos uma contra a outra a fim de esquenta-las, mesmo estando usando dois pares de luvas de lã —... estava alimentando as focas? Como é que você consegue? Quer dizer, frio por aqui não é novidade, mas hoje parece que o tempo endoidou...!

Camus olhou através do vidro onde um urso polar dormia do outro lado, o jovem podia ver que o animal tremia levemente:

— É... parece.

A garota sorriu mudando de assunto:

— Você não vai ver o ensaio fotográfico? Tá todo mundo indo pra lá...

Ele balançou a cabeça e sem desviar a atenção do armário onde guardou o balde, respondeu educadamente:

— Não obrigado. Não me é nem um pouco encantadora a idéia de ficar vendo um modelinho com ar blasé ficar fazendo careta de frio enquanto posa semi-nu para uma campanha de roupas de baixo.

— É, mas vai entrar uma grana legal aqui pro parque e você devia ir lá sim. Fica por aí, todo sisudo sem falar com ninguém... parece até que não gosta da gente. – Ela deu um soco de leve nas suas costas: — Quié cara, se anima! Vai dizer que o frio te congelou por dentro?

Camus deu um sorrisinho sem graça:

— Vou me trocar, meu turno acabou faz mais de hora... quem sabe depois eu passo lá pra ver o modelinho de cara torta com a friagem...

***

FRANÇA

Tudo bem. Tudo bem mesmo. Talvez se ele fingisse que o frio não estava tão forte, seu cérebro acabaria aceitando que isso poderia ser verdade, afinal, não dizem que “frio é psicológico”?

O fotografo pedia para ele parar de tremer pelo menos por alguns segundos, mas que diabos aquele homem queria? O termômetro estava marcando quantos graus? Cem negativos? Era fácil pra ele falar e dar ordens enrolado com casacos feito um tapete enorme e feio até o maldito nariz quebrado... ô narizinho horroroso, será que ele nunca tinha ouvido falar em cirurgia reparatória? Isso! Se ele se concentrasse no nariz do infeliz, talvez pudesse esquecer o fato de já não ter mais sensibilidade nas pernas nuas. Epa! Peraí, como assim? Não sentia mais as pernas? Bom... que o sorriso tinha se congelado na sua bela carinha há mais de uma hora tudo bem, mas não sentir as pernas era um pouquinho demais... e se elas ficassem assim até o verão? Pior! E se elas ficassem com aquelas manchas nojentas e roxas que o frio lhes causou para sempre? Quer dizer, eles iriam consertar aquelas manchas tenebrosas no computador, não é?

O rapaz passou a língua levemente sobre os lábios, seu peito doía só com a idéia de ver suas belas pernas retratadas com aquelas malditas manchas!

— Afrodite não faça isso!! – Uma mulher desgraçadamente descabelada se aproximou feito uma louca afoita dele — ... sua saliva pode ressecar sua boca e ela vai rachar toda!

Essa foi a gota d’água, poderia agüentar tudo menos uma maquiadora de cabelos ouriçados vindo se meter onde ele podia ou não passar a língua. Afrodite deixou toda a pose de lado, agarrou-se ao roupão que estava sobre uma cadeira e cobrindo-se finalmente, disse para o fotógrafo boquiaberto:

— Pausa para o chá. E a próxima sessão de fotos será realizada DENTRO das salas AQUECIDAS dessa droga de parque, ou você pode conversar com meu agente.

Ditas essas palavras, o rapaz balançou a longa cabeleira azul claro e se retirou do recinto.

***

ESPANHA

Ele olhou para o senhor que dormia, não era um sono tranqüilo... às vezes seu corpo tremia e se encolhia como se precisasse de proteção até mesmo nos sonhos. O homem já não era nem mesmo a sombra do que foi um dia, quando o rapaz ainda uma criança o viu pela primeira vez sorrindo para demonstrar boas-vindas ao lado da esposa. Bem vindo a casa nova, a família nova, a vida nova que se abria a frente de um ex-orfão desde bebê.

E agora, aquele único homem que foi seu verdadeiro pai durante tantos anos estava ali deitado na sua frente, fraco e com a vida se esvaindo a cada suspiro, seguindo de perto os passos da esposa que se fora anos antes.

O rapaz já havia passado por muitas dores durante os últimos anos. Todo o dinheiro que os pais tinham haviam sido gasto no tratamento da mulher e apesar disso nada pôde ser feito para salva-la da doença que a consumiu de dentro pra fora. E agora lá estava seu pai na mesma situação que a esposa, porém com um agravante; eles não possuíam mais nada para custear o tratamento ao homem.... só sobrava o filho adotivo e toda sua boa vontade e esforço para prolongar-lhe a vida por mais alguns dias ou meses talvez. E o rapaz faria isso, mesmo que tivesse que sacrificar seus estudos e parte de sua vida, mesmo que tivesse que ralhar com o pai cada vez que eles precisavam ir ao hospital para um novo exame...

Mas olhando para o ele agora, entendia porque o homem preferiu passar seus últimos dias em casa, sim porque aqueles eram com certeza seus últimos dias, mesmo que o rapaz não quisesse aceitar. O pai queria estar perto do seu filho dedicado o maior tempo possível antes de se encontrar novamente com sua esposa querida.

— Shura...

Shura assustou-se com o chamado fraco do pai, esteve completamente perdido em pensamentos todo aquele tempo:

— Oi pai! Dormiu bem?

O velho riu com dificuldade: — Dormir é a única coisa que farei daqui a alguns dias, Shura.

O rapaz sentia-se triste e desconfortável com aquele tranqüilidade de seu pai frente a morte: — Pai...

— Deixe... deixe eu falar Shura, amanhã pode ser muito tarde então presta atenção. Eu não acho certo você ter abandonado a faculdade e estar enfiado naquele buraco que chama de trabalho...

— Pai eu não vou mais discutir isso com você. Não temos mais dinheiro para seu tratamento e sabe disso... eu ganho bem onde estou agora e isso não vai ser por muito tempo. É só até o você melhorar...

O homem alterou a voz, mas nem de leve a repreensão saiu no tom que gostaria, já que estava perdendo pouco a pouco a força sobre suas cordas vocais: — Eu não vou melhorar! Shura, eu não vou melhorar, só que antes de me encontrar com sua mãe novamente eu gostaria de saber que você ficou bem aqui.

Shura sorriu com o peso da angustia que se formava em seu peito: — Eu estou bem, meu velho. Estou bem desde o dia em que você e minha mãe me tiraram daquele orfanato, por isso não me peça para que desista de você, porque seria um ingrato se fizesse isso.

E depois não faz idéia de como me divirto, danço para um monte de mulheres carentes, me dou bem pra cima delas e ainda ganho pra isso, quer coisa melhor?

O pai virou o rosto para a parede, lhe doía ter de repreender o filho, mas doía mais vê-lo se submeter a tal emprego apenas para cuidar dele:

— Está me fazendo ter vontade de voltar para o hospital.

Shura levantou-se incomodado pelas palavras do pai:

— Ah não! Se vai apelar para chantagem agora eu vou pular fora. E tem mais, já ta passando da hora d’eu sair e do senhor dormir... e não tô a fim de continuar com esse papo imbecil de morte. Você vai viver mais que eu, seu velho teimoso.

Shura bateu a porta atrás de si para não ver seu pai chorando num misto de tristeza por ser um estorvo e gratidão pelo cuidado e carinho do filho.

***

ESPANHA

As mãos habilidosas acenderam o incenso rápido e precisamente, o rapaz virou-se lentamente para as cinco crianças sentadas na esteira de fibra natural as costas dele, todas de olhos arregalados e sem saber se podiam ou não respirar. Ainda de olhos fechados ele podia sentir a tensão em cada pessoinha ali naquela sala por isso ficou surpreso quando uma delas levantou o bracinho com certa insegurança:

— Senhor Shaka...

Shaka sorriu simpático para mostrar ao garoto que ele não precisava ficar tão temeroso:

— Pode falar, Miguel...

— O senhor que me desculpa, mas é que eu acho que o senhor é muito novinho pra ser nosso professor de yoga...

O rapaz não demonstrou qualquer aborrecimento com a pergunta do menino, continuou com a maior paciência do mundo, enquanto outros alunos começavam a demonstrar a mesma opinião que o primeiro:

— Mas eu não serei o professor de vocês, em yoga não temos professores, temos “mestres”.

Uma garotinha sacudiu o ombro: — Tanto faz, o negócio é que o Miguel ta certo, o senhor é muito novo pra ser mestre de nós, mesmo tendo nascido na terra daquele monte de mestre tudo de yoga...

Shaka falou baixinho, como quem confidencia um segredo: — Índia, Joanna. E querem saber? Todos tem razão, ainda sou muito novo... mas isso não quer dizer nada. Vejam vocês por exemplo, ainda são crianças mas são muito inteligentes e perspicazes para suas idades. Por isso meus pais acharam melhor eu lhes ensinar do que eles... quem sabe assim a gente não acaba trocando conhecimentos e aprendendo juntos?

Shaka disse com uma preocupação fingida: — Provavelmente um dia serão mestres melhores que eu! Melhor me cuidar...

E os garotos riram, seguros agora de que poderiam relaxar e que seu professor... hum, mestre, era uma pessoa paciente e divertida. Pensando bem, era até melhor que ter aula com um adulto ou velho chato e exigente.

Quanto a Shaka, sorriu aliviado, no seu intimo sabia que havia passado no teste daqueles pequenos diabos.

***

ITÁLIA

Só mais um pouco e pronto! Ele estava no chão. Todos os alunos em volta ficavam fascinados com suas técnicas e agilidade. Um deles se aproximou perguntando cheio de excitação:

— Quanto tempo levou para o senhor desenvolver esse golpe?

O mestre de kung-fu sorriu, cheio de si e feliz por ter demonstrado tão bem: — Ahhh... não muito tempo. Alguns anos treinando na China, minha terra natal antes de vir pra cá.

Mais um aluno se aproximou, enquanto o que serviu como voluntário para a demonstração, checava pra ver se seus ossos ainda estavam inteiros:

— Ta, mas quanto tempo vai levar pra gente aprender? O senhor sabe, nesse bairro quanto mais rápido aprender a se defender, melhor pra nossa saúde.

O rapaz balançou a cabeça sorrindo maroto: — Que pressa, rapaziada. Só que tem uma coisa que vocês precisam aprender antes de tudo...

Então todos os alunos repetiram em coro: — O kung-fu só deve ser usado como defesa e nunca como ataque, ainda mais sobre um adversário mais fraco.

Um dos alunos gritou dos fundos da sala: — Isso porque o senhor não conhece meus vizinhos encrenqueiros, mestre Doko.

Doko riu com a brincadeira, depois voltou a postura de mestre: — Não, é sério! Nada de violência gratuita ou atos de heroísmos desnecessários, pessoal. Tudo que fazemos na vida deve ter um propósito maior que apenas nos mostrar superiores em alguma coisa, seja em força física ou afins.

— E o qual o propósito maior do senhor, mestre?

Doko coçou a cabeça pensativo, depois olhou pra todos: — Ah! Vão se preocupar com seus próprios problemas, bando de preguiçosos. Tão tirando uma comigo pra não fazerem os exercícios, né? Pois então perderam seu tempo, todo mundo em pé no tatame... AGORA!

***

ITÁLIA

Ele dirigia em alta velocidade seu conversível preto. Muitos estranhariam um rapaz usando óculos escuros a noite... Ele não. Achava que aquilo mostrava que ele tinha estilo, ainda mais porque os óculos combinavam perfeitamente com seu terno de grife tão preto como o carro, dane-se o que aquele monte de gente desconhecida e idiota fosse achar.

Abriu o porta luvas, tirou um cigarro da embalagem e soltando as mão do volante sem a menor preocupação, ascendeu com seu isqueiro banhado a ouro. Suspirou pegando novamente a direção... dinheiro e soberba era tudo na vida. Mesmo que para isso você tivesse que entrar para um grupo de mafiosos e trabalhar como matador de aluguel... mas e daí? Eram pessoas que ele nunca conheceu e bom, nunca conheceria dada as circunstâncias como se encontrava com elas. Todo mundo no final se tornava vítima em potencial, nessa altura já não valia mais a pena ficar criando calos na consciência, melhor era dar um trago, curtir sua grana e não deixar a vida dar-lhe um rumo, dando a si mesmo um que lhe interessasse ou atraísse.

Foi se lembrando da conversa que tivera com o homem que a poucos minutos estava amarrado a sua frente, sendo torturado friamente por ele:

— O senhor tem que entender... não é nada pessoal, verdade. Mas se for ver bem, nem a morte é, né? Quer dizer, um dia todo mundo morre, independente se são crianças, velhos, mulheres... ela vêm para todos de uma forma lenta ou rápida, sofrida ou imediata. Os deuses, ou deus, tanto faz, brinca conosco o tempo todo, já parou pra pensar nisso?

Encostou o cano do revolver na cabeça da vítima: — Se pensar bem... eu sou apenas um instrumento nas mãos deles, os caras lá de cima, se ligou? Como uma outra face da morte... algo como, sei lá, me ajuda aqui... Uma máscara. É isso... nossa! Estive pensando num codinome tanto tempo, até que esse cai bem.

Ele levou a arma até sua própria boca, sorrindo pensativo. Depois repentinamente perguntou ao homem amarrado e amedrontado a sua frente: — Que acha?

O homem balançou a cabeça como se concordasse, então Máscara da Morte apontou novamente a arma para a cabeça dele, e dando três disparos em cadência, saiu do armazém colocando novamente a arma sob o terno: — Pensando bem, sua opinião não importa. Não costumo consultar os mortos para meus assuntos pessoais.

Máscara da Morte riu consigo mesmo da lembrança da cara daquele infeliz... Tinha um senso de humor exótico, que a modéstia fosse as favas, ele precisava que admitir.

Ainda estava pensando no quanto era bom no que fazia quando ouviu sirenes ensurdecedoras atrás de si, abaixou a capota do automóvel, xingando ao mesmo tempo em que apanhava a arma sob o terno: — Puta que pariu, fodeu!

***

BRASIL

Aldebaram e Mu chegaram ao hospital ofegantes de tanto correr, a visão foi pior do que qualquer coisa que pudessem ter imaginado... O prédio que ficava na parte mais baixa da rua, aos pés de um morro, estava sendo engolido pela água, várias crianças gritavam de uma janela por socorro, ao lado deles na rua, médicos e enfermeiras se desesperavam sem saber o que fazer, enquanto mães histéricas apenas gritavam para que as crianças se afastassem das janelas para não caírem.

Mu procurou com os olhos várias formas de entrar, mas nenhuma parecia muito segura, quando foi falar com Aldebaran sobre seus temores, viu o amigo se atirando escada a cima pela entrada principal. Correu atrás, sentido que seus passos estavam ficando cada vez mais lentos por causa da água que já cobria sua cintura:

— Aldebran, espera! Temos de pensar num meio menos perigoso para salvar as crianças, as estruturas estão comprometidas...

Aldebaran respondia sem olhar para trás, usando toda a força de seus músculos para vencer a água que já chegava em seu ombro: — Tem razão Mu, o prédio não vai agüentar muito tempo, temos de tirar aquelas crianças do quarto antes de tudo desmoronar.

Ainda dizendo isso, ele alcançou o alto da escada do segundo andar, abriu a porta de ferro com dificuldade, tendo Mu ao seu lado. A água continuava subindo e quando eles entraram no ultimo quarto do corredor, a Unidade de Tratamento Intensivo, a água já estava na cintura deles.

A visão era terrível, crianças subiam em móveis altos para fugirem da água, trovões cortavam os céus e os sons se fundiam com os gritos assustados dos pequenos horrorizados e apavorados com a enchente. Um dos pacientes mais delicados, estava com os lábios roxos e a pele pálida, tremia abraçado a um amiguinho sobre uma prateleira alta que continha livros, que agora boiavam naquele mundo de água cheia de objetos do hospital e sujeira trazida dos esgotos e da rua.

Aldebaran já com uma criança agarrada ao pescoço, uma na cintura e segurando duas nos braços, apontou com a cabeça para Mu que já apanhara outro:

— Mu, ali! – Mostrou o garotinho de lábio arroxeado – Ali, pega o Mateus! Ele está com hipotermia.

Mu correu até o garoto e pegou ele com cuidado, pedindo ao que estava que estava abraçado com o garotinho: — E você sobe nas minhas costas, tá? Segura bem forte no meu pescoço.

Eles estavam saindo do quarto segurando as crianças junto aos seus corpos com dificuldade. A água continuava subindo, estavam a poucos metros da porta que dava para as escadas, quando ela se abriu com um estrondo forte, partindo-se em pedaços de madeira molhada, atirando sobre eles uma parede de água.

Mú fechou os olhos com força, viu em sua mente a rua, com as pessoas e os carros de bombeiro e ambulância que acabavam de chegar ao local... Se ele pelo menos conseguisse chegar até lá, se conseguisse de alguma forma salvar aqueles três... Sentiu seu corpo se encher de um calor aconchegante, que brotava do mais fundo de sua alma, seus cabelos começaram a sacudir levemente com uma brisa... então ele abriu os olhos e ficou espantado demais para falar, assim como as pessoas ao seu lado: Estava do lado de fora, ao lado da ambulância com as três crianças grudadas nele. Mas como? Como aquilo foi possível, estava há poucos segundos ao lado de Aldebaran quando a porta se rompeu jogando água pelo corredor inteiro...!

Colocando Mateus na maca, viu-se alvo de olhares assustados e surpresos, um pára-médico chegou até eles, e examinando o garotinho olhou para Mu com gratidão: — Eu não sei como fez aquilo rapaz, mas seja o que você for... salvou a vida dessas crianças.

Só então Mu se deu conta que dois dos garotos ainda estavam grudados na sua cintura, então se abaixou em frente a eles e perguntou:

— Vocês viram o que...?

O menorzinho balançou a cabeça assustado e respondeu: — O tio brilhou e fez um barulhinho bem baixinho, ai a gente apareceu aqui...

Aldebaran viu Mu desaparecer ao seu lado, ficou tão espantado que não deu atenção a onda enorme que se aproximava dele e das crianças e quando se virou para frente, viu que não restava mais tempo... ele queria muito salvar a vida daqueles garotos, se tivesse chegado mais cedo, se pudesse abrir uma outra saída... Sentiu seu corpo formigar, alguma coisa irradiava de sua alma indo parar de encontro a parede oposta que dava para a frente do prédio. O barulho foi assustador, as crianças estavam chorando ainda mais forte quando de repente se calaram. Tudo aconteceu em milésimos de segundos, a enorme onda a poucos centímetros deles e ao lado de Aldebaran, a parede com um buraco que dava pra rua, pra parte mais alta, viu de relance os carros e a ambulância junto com as dezenas de pessoas que olhavam sem poder fazer nada. Ele não sabia como, nem o quê havia feito aquele rombo, mas não tinha tempo pra pensar, pulou agarrando com todas as forças os pequeninos grudados nele.

Novamente sentiu aquele calor envolver seu corpo e a surpresa maior foi não ouvir um baque violento de seu encontro com o concreto da rua, apenas um barulho leve, como uma almofada caindo no chão.

Avistou Mu ao lado de uma ambulância, ainda estava ao pé do prédio quando viu que o amigo gesticulava furiosamente para ele, avisando sobre algo. Aldebaran olhou para trás a tempo de ver que o prédio estava caindo sobre eles! As estruturas não agüentaram e cederam... o rapaz ajoelhou-se sobre as crianças esperando o fim.

Silêncio absoluto seguido de um suspiro alto das várias pessoas ali, e do espanto arrebatador do encharcado Mu.

Uma parede de água, uma imensa parede de água estava segurando o prédio. Isso era possível? Um muro líquido impedia que os destroços caíssem sobre ele e as crianças. Ouviram uma voz gritar do meio da multidão:

— Sai daí, agora!!!

Mu ainda de boca aberta, virou sua atenção para a dona da voz. Uma garota de estatura baixa, cabelos curtos... Mas a aparência física não era nada, perto do que realmente deixava todos surpresos: Seu corpo brilhava, irradiava uma energia (seria isso?) quente e poderosa, raios daquela energia brotavam de seu corpo e sua mão esticada em direção a água não deixava dúvidas – era sua força que impedia o prédio de desabar sobre Aldebaran e os pequenos, foi ela quem criou a parede de água.

Aldebaran correu para longe do muro, então esse se desfez caindo com o mesmo peso que os destroços do prédio... Todos olharam boquiabertos para a garota, Mu e Aldebaran se aproximaram dela, que apenas lhes sorriu dizendo:

— Apesar das atuais circunstancias, é um prazer conhece-los... Cavaleiros Dourados de Áries e Touro!

E estendeu-lhes a mão na qual aquela estranha energia começava a se esvair, como se estivesse entrando novamente no corpo dela.

***

Continua...


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Notas finais do capítulo

Então é isso, meu primeiro capitulo de Renascer Dourado postado aqui.Eu comecei essa fanfic em 2004, pelo site Fanfiction.net, mas fiquei um tempo sem escrever e desde então não entrei no site, o que ocasionou no cancelamento do meu login e esquecimento da senha de minha parte. Uma pena. Lá eu assinava como Barda, mas como o nick já está sendo usado aqui, mudei para Sargas - os entendedores entenderão. Ou não. Pretendo postar regularmente, a cada quinze dias, sempre que possível, mas veremos, veremos, já que o meu trabalho pode me raptar as vezes e me enviar num jarro sugando meu sangue até o jarro ficar vermelho e... ops, essa não sou eu. Enfim, espero que gostem, deixem comentários para que eu possa saber a opinião de vocês e obrigada a todos por lerem. Beijinhos.



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