Luzes do Norte escrita por TatiNevesA


Capítulo 2
O Começo do Fim


Notas iniciais do capítulo

Oi, queridos! Segundo capítulo! Era pra ser postado próximo domingo, mas um amigo me fez adiantar a postagem, então... boa leitura!

(Mais trilha sonora! Escolho com o maior carinho do mundo pra transformar sua leitura numa viagem épica a lugares distantes e tempos antigos, porque se for pra fazer, tem de ser bem feito... https://www.youtube.com/watch?v=-ZXlQlDsSuI)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/538813/chapter/2

O verão finalmente chegara e, com ele, toda a terra parecia voltar à vida. A água corria livremente pelos riachos, o céu resplandecia num lindo tom de azul e o Sol aquecia os vastos prados que cercavam a vila.

A vida em comunidade também ressurgia na estação das colheitas: a viela principal fervilhava com homens livres e escravos dos arredores. Knut Braço-Forte, em sua barraca de caça, tentava negociar com um jovem. O garoto oferecia uma moeda de prata, do tipo que traziam ao voltar das ilhas a oeste, e alegava ser uma troca justa por uma lebre inteira. Já Knut alegava ser uma moeda feita de prata de má qualidade, valendo por somente metade da lebre. Knut era um dos poucos que entendia algo do valor daquelas moedas, uma vez que passara um bom tempo entre o povo que as fabricava. Eu, assim como a maioria de nós, só saberia dizer seu valor pelo peso. Sabendo disso, o garoto deixou sua amolação de lado e aceitou a oferta de Knut.

– Thrall*! - a voz poderosa como os trovões do Thor ribombou a poucos passos de mim. Vinha de um homem alto e forte, marcado com uma cicatriz - Você, sirva-me mais cerveja!

O homem dirigia-se a uma escrava, talvez um pouco mais velha que eu. Estava cercado por um grupo, talvez disputando força com alguém ou a capacidade de beber cerveja até perder o equilíbrio - eu não saberia dizer.
Sobressaltei-me ao sentir uma mão em meu ombro. Virei-me para trás na mesma hora, só para dar com minha mãe, que me estendia um broche dourado.

– Troquei por uma ótima adaga, então use-o bem. - embora seu tom fosse rígido, sorria ao prender o acessório em meu vestido - Vamos, o Negócio já vai começar.

Juntamo-nos ao grande grupo que se dirigia à praça, onde o Negócio aconteceria. Ainda não havia avistado Thord ou meu pai quando o ouvimos chamar:

– Halla! Astrid! Juntem-se a nós. - sua voz grave vinha diretamente da frente. Ele e Thord estavam de pé na terceira fileira que circundava o espaço reservado ao conde e sua comitiva: sua esposa, seu filho e o orador da lei.

Assim que nos estabelecemos, a congregação pôs-se em silêncio. Curiosa, observei enquanto o conde Dalgaard adentrava o círculo. Suas vestes eram do melhor tecido, suas botas do melhor couro. Sua mulher trajava um lindo vestido verde, que me parecia luxuriante contrastando com o cabelo vermelho.

– Sabe de onde vem o cabelo de fogo? - meu pai me cutucou. Fiz que não com a cabeça - Vem do oeste. De uma das ilhas. Mais além da que pilhamos. Chamam de Eire... Eireland**.

O orador da lei deu um passo à frente e chamou Steinvor Grahn. O homem surgiu do meio da multidão, de cabeça erguida.

– Steinvor Grahn, você foi acusado de roubar um carneiro de Hoger Lundgren. Você nega essa acusação ou confessa o crime?

– Confesso. - o homem respeitosamente abaixou sua cabeça.

O orador virou-se para o conde, que fez um sinal com a mão. Parecia algo comum, pois o outro voltou-se para o criminoso e anunciou para o resto da congregação:

– Você deve pagar uma indenização a Hoger, ou enfrentar humilhação pública. Deseja se pronunciar?

A expressão de Steinvor endureceu-se. Com a voz firme, falou:

– Não posso indenizar Hoger.

– Então após a reunião, todos deverão puni-lo atirando pedras e grama. - suspirando, acrescentou - Aquele que falhar na punição será multado. Obrigado.

– Sim, lorde. - Steinvor retirou-se para um canto e o Negócio prosseguiu. Discutiram invasões, e foi decidido que cinco navios deveriam seguir para terra dos anglos***. A permissão para um casamento foi concedida e finalmente chegara a hora do juramento de Thord.

– Thord Falkbrann, filho de Gylve. Olaf Svensson. - o próprio conde chamou. Quando os dois garotos puseram-se à sua frente, continuou - Aceitem este presente de sal e terra para que se lembrem que pertencem tanto ao mar quanto ao solo. - brandiu uma espada em suas mãos grossas, com os ambos sal e terra depositados em cima.

Os dois garotos abaixaram-se e beijaram a espada. Feito isso, o conde deixou a espada de lado e pegou os braceletes de ouro que marcavam os homens livres leais.

– Esses braceletes os ligam em lealdade a mim, seu líder. Todo e qualquer juramento feito sobre eles deve ser respeitado e mantido. Vocês aceitam isso e juram por eles?

– Sim, lorde. - os meninos responderam em uníssono.

– Vocês dão sua lealdade a mim, por livre e espontânea vontade?
– Sim, lorde.

Logo que os braceletes foram entregues, a esposa do conde indicou que os meninos deveriam ir até ela. Thord, e então Olaf, receberam beijos gentis da mulher dos cabelos em chamas, e só então os presentes irromperam em comemoração pelos recém-feitos homens livres.

***

A humilhação de Steinvor não foi agradável aos meus olhos. Claro que merecia, mas... já não fora humilhação suficiente admitir frente a todos que não tinha condições de ter ou comprar um carneiro? Admitir que dependera do roubo? Foi desagradável, também, aos meus ouvidos. Muitos riam, outros gritavam insultos ao atirar pedras, terra e até alimentos podres. Ao final do entretenimento sórdido, o homem já sem meios de se levantar, parecia procurar por sua dignidade em meio à sujeira e lama.

O banquete foi dado logo depois. O salão do conde não era tão grande, mas as quatro mesas enormes dispostas paralelamente acomodaram, milagrosamente, todos os presentes.

– Gylve! - uma voz grave e forte trovejou, chamando meu pai. Reconheci Sigurd, um homem alto e robusto que de vez em quando ia à ferraria, sempre examinando os maiores machados. - Traga sua família para comer e beber conosco, amigo!

Sigurd, seus dois filhos e outros amigos de meu pai estavam sentados bem mais perto da mesa alta, onde as pessoas mais importantes se acomodavam. Cumprimentei a todos, como a educação manda, muito embora não fosse preciso mostrar bons modos com aquele grupo.

– Sæl! - cumprimentou todos nós o filho mais velho de Sigurd. Havia tanto tempo que não vinha à Krossavik que era difícil lembrar dos nomes. Então, para minha surpresa, voltou-se para mim - Sæl, senhorita. Sou Aslak, e qual a sua graça?

Não queria parecer tola. Minha experiência em diálogos com rapazes se resumia à implicância com meu irmão, breves conversas com clientes da ferraria e a troca de mercadorias. Se abrisse demais a boca, poderia cometer algum deslize, então respondo simplesmente "Sou Astrid, fico feliz em conhecê-lo".

E parou por aí, já que, ainda que estivesse louca para jogar conversa fora como quase todos, rindo e se divertindo, isso não era bem visto quando se tratava de moças. Sendo jovem e descomprometida, não cabia a mim participar dos assuntos à mesa com os homens como as mulheres casadas e mais experientes. Não gostava disso, mas não havia escolha.

Bem, uma das coisas que não podiam de impedir de fazer era comer. O banquete estava incrível: porco assado com cenouras, goulash de cervo com vinho, pão de cevada, queijo, frutas, salmão com nozes e outras iguarias. Havia também muita cerveja, vinho e hidromel, e pude até beber um pouco deste. O gosto era incrível - agora podia entender porque os homens se embebedavam com tanta frequência.

Não foi preciso passar muito tempo até que meus pensamentos se tornassem um tantinho enevoados. Era impressão minha ou o filho do conde olhava para mim, da mesa alta? Seu sorriso era de escárnio ou simpatia? Aliás, era um sorriso ou o quê?

Do que Sigurd estava falando, mesmo?

–...atearam fogo em fardos de feno bloqueando nossa saída para a frente... Claro que sabiam que seria difícil passar pela cerca de troncos de árvore que construímos para guardar o acampamento...

A boa e velha história de como meu pai se tornou Falkbrann, o falcão de fogo.

–...o machado acertou bem no meio do crânio do maldito anglo! E então Gylve montou no cavalo em pleno galope e dominou-o pela crina, e pulou a parede de chamas como Siegfried ao encontrar Brünhild! Sua casaca pegou fogo, mas continuou massacrando os bastardos.

– Aquelas chamas malditas queimavam o cabelo. Nunca mais cresceu direito na parte de trás. - meu pai interveio. Era por isso que usava a trança.

– Deixe de vaidades, homem! - interpôs Sigurd - Foi assim, rapazes, que ele abriu um flanco do exército inimigo para que atacássemos. As damas guerreiras se ocuparam dos anglos que sobraram no acampamento, enquanto nós apagávamos uma parte do fogo e avançamos no lado vulnerável. Foi um banho de sangue, com certeza todos os guerreiros perdidos na batalha de Tyne foram levados pelas valquírias.

Todos à mesa já tinham ouvido essa história. De certo, uma de suas versões. O pulo sobre o inimigo com a casaca em chamas rendeu a meu pai sua fama. Fama agora amarelada pelo tempo, pois fora em uma de suas primeiras invasões à terra dos anglos, quando conhecera minha mãe, uma dama guerreira. Desde que herdara a ferraria, foram poucas as vezes que se aventurara no além-mar.

– Com licença. - pedi. O hidromel deixara-me com calor. Caminhei a distância do salão até as grandes portas de madeira fortificadas com ferro na entrada, e o ar fresco do anoitecer aliviou a nebulosidade em minha mente.

– O que uma senhorita tão bem acompanhada quanto a filha de Gylve Falkbrann faz sozinha aqui fora? - uma voz jovial surpreendeu-me. Virei-me para encarar seu dono, e minha surpresa foi maior ainda.

Era o filho do conde.

– Desculpe-me se a assustei. Não foi a intenção. - passou inquietamente os dedos grandes pelo cabelo dourado que descia até a nuca - Sou Yngvar.

– Astrid, meu lorde. - abaixei ligeiramente a cabeça em sinal de reverência.

Ele riu, e sua risada era contagiante.

– Não nos prendamos a formalidades, estou com a cabeça tão cheia de vinho que não notaria se insultasse minha própria mãe!

Não pude me controlar. Yngvar parecia levar tudo tão animadamente que era impossível não se deixar levar por seu carisma.

– O que acha do salão? Parece-lhe confortável? - perguntou, mirando a lua que surgia.

– É quente, e espaçoso. - comentei - Com certeza me parece confortável.

– Sim, com certeza é, mas vive abarrotado de peticionistas. Os dias de banquete, como hoje, são agradáveis até certa hora. Quando os homens estão entorpecidos pela bebida e comida em excesso e suas vozes elevam-se, prefiro me retirar e respirar o ar fresco. Como você, pelo que vejo.

Conversar assim, abertamente, com Yngvar, não me parecia difícil. Ele falava de um modo tão sincero que era como se as palavras saltassem de sua boca. E suas palavras pescavam as minhas.

– Não estou acostumada com tanta gente, só isso. - respondi.

O jovem avançou até um banco de madeira alguns metros à frente, próximo à praia, que dava vista para o imenso fiorde adiante que parecia a boca de Jörmungand, a grande serpente do mundo, pronta para engolir todos nós. Sentei-me também, não muito perto dele, e ficamos em silêncio obersvando as pequenas ondas baterem na margem.

Passado algum tempo, Yngvar abria a boca para dizer algo quando alguém o interrompeu. Um homem montado num cavalo negro como a noite veio até nós, parecendo alarmado.

– Meu lorde, os Sveats atacaram fazendas ao norte, há dois dias. Fizeram prisioneiros aqueles que sobreviveram. O mesmo aconteceu ontem, e parece que estão vindo em direção ao sul. Temo que Krossavik e as fazendas possam estar em grande perigo.


*Thrall era como os nórdicos chamavam os escravos.
**Eire é como os irlandeses chamam seu país. Daí, Eireland = terra de Eire. Em inglês, a fonética transformou a grafia em Ireland (Irlanda).
***Terra dos anglos, tradução literal do inglês antigo "Englaland". Os anglos eram um dos povos germânicos que habitavam o local.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Me mandem um review se tiverem, haha. Obrigada por lerem!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Luzes do Norte" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.