Bastarda escrita por Lena Saunders


Capítulo 4
Aquele do Machado




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Eu não comi nada antes de sair. Apenas me levantei, troquei de roupa e saí correndo para a floresta. Corri o caminho todo, com medo de Valkíria ter fugido e me abandonado, como todos os outros. Todos menos Heike, Greta e Aiden. Eu podia confiar neles.

Levei alguns tecidos que furtei pela vila. Eles caíam e eventualmente se enrolavam em meus pés, reduzindo meu rítmo. Coloquei-os em minhas costas antes de escorregar pelo buraco, sem me arranhar desta vez.

Valkíria dormia na cama improvisada que eu fizera no dia anterior, respirando tão levemente que poderia estar morta. Em silêncio, peguei o graveto que virara uma espécie de lança e engatinhei meu caminho para fora. Eu precisaria de uma forma mais fácil de entrar e sair da caverna.

Juntei menos peixes do que no dia anterior, mas o suficiente para nós duas. Eu não tinha como carregá-los. Desejei não ter deixado os tecidos na caverna. Fiz uma espécie de trouxa com minha própria saia e consegui levá-los.

Valkíria se recusou a comê-los crus. Me arrependi por ter cozinhado-os ontem. Agora eu precisaria fazer uma fogueira toda vez que ela fosse comer.

Depois, dediquei-me a pegar os pequenos diamantes da parede da caverna. Era impossível. Meus dedos já estavam em carne viva e eu não tinha uma única pedrinha. Valkíria acabou de comer e se sentou ao meu lado, assistindo-me em minha enfadonha tarefa. Alguns minutos depois, ela se levantou e enfiou a garra entre uma pedrinha e a parede, formando uma alavanca. A pedrinha caiu.

Quase não acreditei quando vi. Usando um dos tecidos, formei uma trouxa parecida com a que usara para carregar os peixes e, durante toda a manhã, juntamos as pedrinhas enquanto eu falava e ela repetia. Ela era fofa, andando de uma forma engraçada, erguendo demais as patas. Vez ou outra, caía sentada e soltava um som parecido com um choro de bebê.

– Não, Valkíria. - Eu repetia. - Nós não choramos. Isso é o que eles esperam de nós. Nós apenas nos levantamos e tentamos melhorar. Esfregamos na cara de todos eles que somos capazes.

"Quem são todos eles?"

Ela começava a formar pequenas frases, repetindo o que me ouvia dizer.

– Todos eles, ué. Todos.

Retornei à vila, mas não antes de garantir comida para Valkíria até o dia seguinte. Os diamantes eram um peso esmagador em meus ombros infantis, mas me recusei a parar para descansar.

Em Seiryn, o que você acha na natureza é seu, mas isso não significa que ninguém possa pegar de você. Parar seria o mesmo que ficar exposta. Eu não queria gastar outra manhã pegando pedrinhas da parede.

Não passei na casa de Greta. Sabia que Aires não estaria lá. Quando cheguei à forja, vi Alistair saindo de lá. Franzi a testa em desaprovação. Ele era o maior entre todos nós e nosso líder. Tinha uma barba ruiva grande e mal cuidada, além de olhos azuis gelados, que assustaríam até os piores inimigos.

Ele nunca passava reto por mim como todos os outros. Ele me espionava, provavelmente pensando em como se livraria de mim. Afinal, eu era um problema social, esperando por uma solução.Sustentei seu olhar quando ele me viu e encarei suas costas até ele sumir de vista o que, considerando seu tamanho, demorou um pouco. Seu desprezo por mim parecia maior do que o dos outros.

Encontrei Aires no fundo do lugar. Ele tinha uma enorme barra de ferro na mão e estava pingando ouro sobre ela. O lugar era tão quente que mesmo com o cabelo preso, eu sentia o suor escorrendo por minha testa. Pena que não podia arrancar a blusa como Aires.

– O que está fazendo? - Perguntei.

– Seu machado, ué. Você não me pediu para fazer um? - Ele parecia cansado e chateado.

– Ah claro. Eu trouxe os diamantes.

Coloquei a trouxa no chão e a desamarrei. O queixo de Aires caiu enquanto ele observava as pedras.

– Muito bem. Vamos derretê-las então.

Ele pegou formas grandes de lâminas e jogou grande parte dos diamantes lá. Então, fomos até o lado de fora, onde ficava Mercúrio, o dragão de Skar. Acredito que foi por causa dele que o Gigante se encarregou da forja. Mercúrio era um dragão de fogo, com escamas vermelhas que brilhavam tanto quanto ferro em brasa e olhos negros, tão vazios quanto os do dono.

Aires acariciou a cabeça do dragão e colocou as bandejas ali na frente. Mercúrio, que parecia estar dormindo, abriu os olhos, parecendo entediado. Então, ele abriu a boca e sugou os diamantes com a língua, como se estivesse comendo-os. Suas escamas brilharam ainda mais forte. Lava de dragão. Apenas os dragões de fogo eram capazes de produzir e derretia o mais sólido dos materiais, com exceção do couro de um dragão da terra, é claro.

Mercúrio esperou alguns momentos, o material começando a esfriar em sua boca e então devolveu-o nas bandejas, comendo parte deles. Um preço pequeno por um serviço tão bom. Aires pegou-as com duas pinças de cabo longo e agradeceu.

Caminhamos vários metros, até o outro lado da forja. Suas pernas eram bem maiores do que as minhas, me forçando a dar passos mais rápidos.

Ele deu um choque térmico nas bandejas, colocando-a na frente de Kione. O nome era feminino, mas o dragão era um monstro. Um dos maiores do vilarejo, completamente branco. Seus chifres eram tão impressionantes quanto os espinhos que desciam por seu pescoço e acabavam em sua cauda.

Kione nem ao menos se moveu. Sua respiração foi o suficiente para esfriar os diamantes. Voltamos para a forja, onde Aires usou uma alavanca para tirar as lâminas das formas. Depois, ele fundíu-as no cabo do machado e fez o acabamento. O processo levou a tarde toda.

O machado era incrível. Galhos de roseiras dourados subiam pelo cabo e se enrolavam entre as lâminas, mantendo-as no lugar. As lâminas de diamante refletiam a luz em dezenas de direções, assim como as pedrinhas que ele prendeu no cabo, entre as folhas.

Depois, fui até minha casa buscar o escudo. Ordens de Aires. Ele prendeu diamantes entre as folhas douradas, da mesma forma que fizera com o machado.

– Esse. - Disse ele, segurando a maior e mais bela pedra. - É o meu pagamento.

– Pode ficar. Ah, quer jantar lá em casa hoje? Heike disse para te convidar.

Era mentira, mas Heike não se importaria.

– Ah. Acho melhor não.

Não. Claro que não. Ele era órfão e por isso tinha pouca reputação. Mas ir na casa da bastarda? Isso queimaria o que restara de sua imagem pública.

– Certo então. - Respondi, abaixando a cabeça. - Obrigada pelo machado. Pode ficar com as outras pedrinhas.

Restam apenas cinco ou seis, jogadas pelo tecido que mais cedo as carregara. Me virei e corri. Não olhei para trás quando ele gritou o meu nome. Eu estava ocupada demais, tentando não me tornar ainda mais oca, mais vazia. Falhei miseravelmente.


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