Lágrimas Que Queimam escrita por Livia Dias


Capítulo 1
Capítulo Único




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22 de setembro de 1984.

Querido Diário,

O sol já desapareceu no horizonte, dando lugar a lua e suas inseparáveis estrelas. A essa altura, a família Venon já está reunida diante da lareira, apreciando o belíssimo quadro que lhes dei, e contando histórias banais de suas vidas podres.

Devo dizer que não me arrependo. No fim, fiz o que tinha de ser feito, e o que vier a partir de agora serão apenas meras consequências.

Não existe caridade e sim falta de interesse.

Aquele quadro deveria ser passado para frente, ou eu acabaria diante do Juízo Final mais cedo do que planejava.

Antes a família Venon, do que a família Greengrass.

* * *

25 de setembro de 1984

Querido Diário,

Acabo de chegar de uma rápida viagem a Nevada, e descobrir que a casa dos Venon pereceu pelas chamas não foi uma notícia agradável, se assim posso dizer.

O pior não foi a estrutura vitoriana acabar em cinzas: foi a família inteira ter ganhado o mesmo fim.

Os Venon não mais existem, e o que sobrou foi apenas o presente que passei para eles. Aquele quadro, retratando uma inocente criança chorando, um infeliz acaso do destino.

Quem poderia dizer que aquele objeto de arte seria a causa de tantas tragédias?

* * *

Dias Atuais

— Ah Hayley, você tem que parar de ser tão medrosa. — Jean Greengrass adentrou seu quarto, sendo seguida por sua melhor amiga.

A Greengrass era um bom exemplo de “ovelha negra” da família. Enquanto suas irmãs, Jenna e Bridgit esbanjavam seu dinheiro em livros e faculdades, Jean gastava em tintas de cabelo colorido, bebidas e drogas.

Hayley, a “loirinha metida” fazia o estilo mais “puritano”. Não fumava, não bebia, e tampouco ia às festas que Jean frequentava. Vivia aconselhando sua amiga a não ir em lugares propícios ao perigo, mas obviamente que com seu jeito teimoso, a “punk Greengrass” jamais a escutaria.

— Eu não estou com medo — defendeu-se Hayley, embora sua voz tremesse um pouco. — Só não quero que sua casa se torne um local tão... Perigoso.

Jean pegou seu maço de cigarros, lançando um olhar de desdém a amiga enquanto o acendia.

— Admita que está com medo dos meus amigos. — Entreabriu os lábios, permitindo que a fumaça espiralasse no ar. Hayley fez uma careta de reprovação, tanto pelo gesto da punk, quanto pelas palavras dela.

— Seria legal se você parasse de andar com aqueles babacas — A loira abriu a janela do quarto, e abanou a mão diante do rosto. — Estão te transformando em uma chaminé ambulante.

Jean revirou os olhos.

— Faça como quiser — Seu tom foi veemente, encerrando de vez aquela discussão. — Talvez até seja melhor que não venha. Assim não fica bancando minha responsável. — E passou pela garota, deixando-a para trás. A loira permaneceu parada no mesmo lugar, até bufar e se dirigir para fora daquela casa.

Enquanto caminhava para longe do casarão dos Greengrass, refletia sobre os motivos de sua amiga ter se tornado alguém tão... Insuportável.

Depois que seus pais morreram em um incêndio, na casa de praia da Califórnia, Jean mudou completamente. Prestes a completar seus vinte anos, parecia mais uma adolescente revoltada com a vida do que uma adulta.

Suas irmãs não se dispuseram a ajudá-la, e simplesmente continuaram suas vidas. Se não fosse por Hayley, Jean teria apenas a companhia dos outros “amigos”, que não serviam de boa influência no fim das contas.

Mas talvez seja isso que ela quer, refletiu a loira, tomada por uma súbita tristeza.

Não seria ruim se afastar por um tempo, e ver o que Jean decidiria.

Se escolheria uma vida melhor, ou pereceria para sempre.

* * *

Matt Walker, Jack Bennet, Olivio Porter, Caroline Bennet e Jéssica Spence tinham chegado mais cedo do que o combinado, trazendo um violão, sorrisos, cocaína e uísque.

Jean e os amigos se largaram no chão da sala, sem se importarem com a fumaça que rodopiava ao redor deles por conta do tabaco queimando.

— Que quadro engraçado, Jean. — comentou Jéssica, apontando para a moldura que estava fixada à parede.

Um garoto aos prantos era retratado na pintura, com traços marcantes, e cores fortes. Jean se lembrou que seus pais achavam aquele quadro uma verdadeira arte, mostrando que uma boa arte não deve mostrar apenas a alegria alheia.

— Sai dai, Jess. — Alertou Jack, dedilhando o violão.

Matt e Olivio conteram as piadinhas. Já não era segredo que o amigo estava de caso com a Jean, e tal notícia se assemelhava a uma grande mudança para o grupo. Afinal, Jack ficava completamente diferente quando estava namorando.

— É Jess — Caroline surgiu com duas garrafas de uísque. Seu tom indicava o desdém que os garotos estavam guardando. — Sai daí, antes que o Jack surja em um cavalo branco e impeça que estraguemos esse quadro feio.

Jean revirou os olhos perante as risadas dos amigos. Jack começou a tocar uma música qualquer.

— Poderíamos marcar de ir na loja de discos do Derek — Olivio comentou, virando a garrafa.

— É. Lá tem coisa melhor do que essas músicas de corno que o Jack toca. — Matt tragou seu cigarro, recebendo um olhar furioso do melhor amigo com o instrumento.

Jean encarava o quadro fixo na parede acima da lareira, que de alguma maneira conseguia atrair sua atenção de um jeito assustador.

Ela nunca gostara daquela pintura. Não sabia ao certo se era por seu jeito de ser ou outra coisa qualquer, mas aqueles olhos chorosos significavam uma arte em sua opinião, e simao prazer de ver uma criança sofrer — o que era horrível, até mesmo para ela.

— Jean? — Jéssica lhe chamou, com o cenho franzido.

A garota balançou a cabeça, despertando de seus devaneios. Sua amiga colocou-se a sua frente.

— O que você tem? — Os garotos conversavam mais ao fundo, e Jack deixara o violão de lado para escolher algum CD que pudesse tocar no rádio. Caroline estalou os dedos diante dos olhos de Jean. — Ei! Estou falando com você!

— Estou bem — Jean se afastou, tirando o maço de cigarros do bolso.

Caroline demonstrou seu ar astuto, envolto de desinteresse.

— Está triste porque brigou com a sua amiguinha puritana?

Jean se virou para encarar a amiga.

— Não. — disse, contendo uma ironia. Olhou ao redor, e franziu o cenho. — Onde está a Jéssica?

Olivio se aproximou das garotas.

— Ela e o Matt devem ter ido compartilhar uma viagem ao país das maravilhas — Brincou, demonstrando que já estava tão deplorável quanto os outros.

— Vou procurá-los, antes que se matem por aí. — Jean desistiu de acender seu cigarro, e saiu da sala de estar, subindo a escadaria de mármore que levava ao segundo andar da casa.

The Pretty Reckless ecoou pela casa, Heaven Knows arrancando exclamações dos que estavam na sala. Jean sorriu, enquanto se arrastava pelos corredores da casa.

— Melhor não estarem fazendo nada ilegal, Matt e Jéss! — A garota abria porta por porta, soltando um bufo de impaciência ao ver que ambos não estavam ali. Ela precisava cheirar a droga que os amigos tinham levado.

Alcançou o final de um dos corredores, onde um vaso com flores murchas — Jean não gostava de rosas mesmo — servia para dar um ar mais recatado àquela parte do casarão.

Abriu uma das portas, encontrando o banheiro vazio. Bufou, e se virou para a porta que levava ao seu quarto.

— Ok, chega! — Jean adentrou o cômodo de sopetão.

Seu coração saltou do peito, e seus olhos se arregalaram na mesma hora. O grito escapou de sua garganta, um mero sinal do pânico que a consumia lentamente.

Matt e Jéssica estavam presos no lustre de vidro, seus corpos transpassados pelas lâminas do objeto. O ranger das dobradiças era tudo que Jean ouvia, a única coisa que adentrava sua mente.

Eles estavam mortos.

O cheiro de morte impregnava seu quarto, e os corpos continuavam inertes, respingando sangue nos lençóis de seda branca que forravam sua cama.

Quando finalmente recuperou o movimento das pernas, saiu do quarto, gritando cada vez mais alto, enquanto tentava chegar à sala de estar.

Ainda não processou inteiramente o que acontecera, e concluiu que não conseguiria fazê-lo tão cedo.

— Jack! Caroline! Olivio! — chamou-os, descendo as escadas de mármore.

Quando chegou ao último andar, percebeu que nenhum deles estava ali. A música continuava tocando, os sons de guitarra sendo enfatizados, seus ouvidos tentando captar gritos, ou qualquer outra coisa sinistra.

Se dirigiu à porta de entrada, e puxou a maçaneta.

O suor frio escorria por sua nuca, e suas mãos tremiam incansavelmente.

O que estava acontecendo? Um psicopata se encontrava na casa, ou algo assim?

As possibilidades a assustavam mais do que qualquer certeza concreta. Antes que pudesse se mover, a música cessou e a escuridão preencheu a casa.

Os gritos de Jean soaram agudos e contínuos, uma verdadeira canção de horror.

Mãos a afagaram, e ela se debateu, usando toda a força que tinha em seus músculos frágeis. Risadas soaram em sua mente, e o choro de uma criança se fez presente naquele cenário.

Matt e Jéssica, sua mente berrava, e Jean percebeu que estava gritando tais nomes, enquanto tremia entre os braços fortes de Jack.

— Calma.

Finalmente, a Greengrass paralisou, seus lábios entreabertos enquanto ofegava.

— Matt e Jéss... — Choramingou.

Jack fechou os olhos.

— Eu... Eu vi. — Ele murmurou, menos abalado que a garota à sua frente.

Jean se afastou. Mesmo sob a escuridão que predominava na casa, era possível identificar o rosto do Bennet com o auxílio da luz da lua que invadia a sala pelas frestas da cortina que cobria a janela.

— Onde estão os outros? — Jean olhou ao redor, mas nada era visível com exatidão. — Eu... Ouvi um choro de criança! Eu estou com medo! — Fungou, seu coração acelerado, suas mãos tremendo. — Eu estou com medo, Jack! — Choramingou, e as primeiras lágrimas causadas pelo pânico vieram.

Logo que Jack abrira a boca para tentar tranquilizá-la, um som agudo vindo da cozinha se fez audível.

— É a Carol — Jean arregalou os olhos.

Jack puxou a Greengrass pelo pulso, e a arrastou com ele. Tateando o caminho às escuras, conseguiu chegar até a cozinha.

— Carol? — Jean chamou, tentando enxergar algo além dos utensílios de cozinha, e o cheiro de fumaça.

O silêncio continuou predominante, acelerando ainda mais o coração da garota. Jack quase quebrou seu pulso no instante em que a porta do local se fechou com um baque, e o cheiro de fumaça se tornou quase insuportável.

— O quê... — a punk estremeceu.

— Algo está queimando — Jack se dirigiu até a porta, e virou a maçaneta. Estava aberta.

Ambos foram para a sala, que se encontrava iluminada pelas chamas da lareira.

Uma figura permanecia em frente ao quadro fixado acima da lareira, fitando-o demoradamente.

— Caroline? — Jean arriscou, reconhecendo os cabelos escuros da amiga.

Ela se virou, porém não era a Caroline que eles conheciam. Algo ou alguém emanava aquela aura de dor, tristeza, e maldade no corpo da garota.

— Não... — Jack deu um passo à frente. Caroline riscou o fósforo que jazia em suas mãos, e o voltou para si mesma. — Carol...

A morena não o ouviu, e se concentrou na chama que queimava o fósforo em sua mão. Então, quando o paviu chegou ao final, o fogo passou a consumir a ponta de seus dedos. Caroline não estremeceu, ou sequer se moveu. Jean e Jack permaneceram no mesmo lugar, observando a cena com o horror estampado em suas faces.

— Para com isso! — Gritou Jean, chorando descontroladamente.

Caroline estremeceu, parecendo voltar a si. Seus olhos se arregalaram, e os berros de agonia começaram a escapar de seus lábios.

— Socorro! NÃÃO! — O fogo começou a consumi-la, e ela caiu no chão.

Jack conseguiu se mover, e se dirigiu até a garota, tentando apagar as chamas que se propagavam rapidamente pelo corpo dela.

— NÃÃÃO! Ahhhhhhhhhhhhh! — Caroline gritava, debatendo-se.

Antes que Jack ou Jean pudessem salvá-la, Olivio surgiu, e chutou a garota encolhida para a lareira.

— CAROLINE! — A Greengrass avançou, mas Jack a deteve. Olivio possuía aquele olhar vazio, a mesma aura que ambos haviam sentido anteriormente.

Os gritos de Caroline cessaram, conforme sua vida se esvaía. Jack e Jean encaravam Olivio, que os fitava de volta sem qualquer emoção.

— O andar de cima — Jack disse, enquanto a fumaça se propagava lentamente pelo casarão.

Jean continuava em choque, tremendo, seus olhos fixos na pintura do menino, seu rosto molhado pelas lágrimas.

Olivio permaneceu parado ao lado da lareira, até o instante em que o teto da casa começava a ceder. Jack tentava encontrar uma saída, ou quebrar uma das janelas, mas as chamas eram mais rápidas que qualquer ação.

— Jean! — O garoto a sacudiu, mas ela permaneceu imóvel.

Tantas coisas queria ter feito...

Hayley com certeza sofreria com sua ausência... No entanto, quem mais sentiria sua falta? Suas irmãs? Pouco provável.

A morte é um golpe rápido, por vezes causando dor, por vezes sendo tão rápido que não se sente. Mas ela vem para todos, e é impossível escapar. Um dia você está vivo, e no outro se torna uma mera lembrança.

O teto cedeu à frente de Jean, e Jack a puxou para trás. Olivio segurava uma faca, e em lentos movimentos, começou a enfiá-la na boca, e empurrá-la por sua garganta abaixo.

Enquanto a casa era consumida meramente pelo fogo e pela fumaça, o menino continuava derramando suas lágrimas, assistindo à tudo de camarote.

* * *

Para todos, os jovens Jean, Jack, Matt, Jéssica, Caroline e Olivio foram vítimas de um trágico acaso do destino. Sendo usuários de drogas, não foi difícil atribuir a causa do incêndio a um cigarro largado pelo piso, ou algo do gênero.

Apenas uma pessoa acreditava no contrário, e esta era Hayley.

Sentada próxima a lápide de sua amiga, lia o diário que pertencera a avó de Jean. Lá, eram inscritas memórias à respeito de incêndios suspeitos, sempre causados em casas onde a pintura do menino chorando estava presente.

Hayley ergueu os olhos, apreciando a brisa em sua face. Fechou o diário de Katherine Greengrass, e suspirou pesadamente, repousando o caderno envelhecido pelo tempo em frente à lápide de Jean.

— Descanse em paz, vadia. — Hayley Venon sorriu maliciosamente, e se levantou.

Passo ante passo, dirigiu-se para fora do cemitério. Estava na hora de passar o quadro adiante.


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