Fábulas de Sangue escrita por Van Vet


Capítulo 9
Branca de Neve


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo na perspectiva de Branca.
Estão gostando dos vários pontos de vista, galera?

Abraços!



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Rosa saiu para ir buscar uma corda que pudesse levá-las fosso abaixo, deixando a luz na posse de Branca de Neve. Na quietude do galpão, ela conseguiu se situar melhor e inspecionar superficialmente o organizado lar do Formiga. Branca nunca conhecera o Formiga, mas seu perfeccionismo era famoso. A fábula se encontrava no recinto a menos de vinte quatro horas, tamanho era o cheiro de limpeza impregnado no ar. Sua neura pelo trabalho não acabava nunca, apenas foi direcionada para os afazeres domésticos desde que abandonou as Terras Natais.

Alguém que parecia ter uma personalidade de tanta excelência pesaria o senso de moral? Tudo era tão estranho. Até então a única infração que a Cigarra havia cometido era quebrar as leis de sigilo e desaparecer da Fazenda. Por nocautear o Garoto Azul ela também deveria responder. E o Formiga? Que outra façanha realizou? Coincidência ou aliados?

Finalmente um objeto chamou a atenção de Branca na sua investigação visual. Destoava na limpeza de tudo ao redor como uma peça jogada num quebra-cabeça errado: prateada, riscada e bem empoeirada. Estava escorando uma dúzia de livros culinários sobre a modesta estante de pinho. A princesa apoiou o lampião em cima da mesinha próxima e pegou-o cuidadosamente, deitando os livros para não desabarem. A lata cabia facilmente em suas mãos. Trouxe para a luz, estudando sua superfície. A tampa abriu facilmente, não havia fecho nem dobradiças. Dentro estava um papel vincado várias vezes, que ela desdobrou com todo cuidado por estar muito velho. Numa letra redonda e paciente, a sequência de três estrofes lhe remeteu a um poema. Prestes a ler ouviu Rosa voltando.

A vice-prefeita retornou a lata a seu lugar de origem, contudo mergulhou o papel dobrado dentro do decote. Seria mais conveniente a outra nem ver que ela descobrira e resguardara uma possível evidência. Evitaria ter de tolerar todo o teatrinho sobre “minha jurisdição é a Fazenda”.

Não se sentia intimidada pela irmã mais nova, o mundo teria de girar ao avesso para esse dia chegar. Tratava-se de autopreservação espiritual, para não dizer “sair da linha” com o sarcasmo afiado de Rosa Vermelha.

— Vai conseguir descer de saia? — Rosa perguntou trazendo uma grossa corda de cânhamo enrolada no ombro.

— Não cheguei até aqui para uma saia me deter. — retorquiu imaginando o desastre.

— Gostei de ver! Essa é a maninha que eu quero. — Rosa procurou um lugar seguro para amarrar a corda, decidindo-se pela maçaneta da porta corrediça. Içou o próprio corpo três vezes contra a amarração para assegurar sua confiabilidade.

— Não são muitos metros. Calculo uns três, mas como não há apoio para subir a corda se faz necessária. Eu desço primeiro com o lampião para você não se atrapalhar.

Branca assentiu. Esperou a irmã prender-se num habilidoso nó de carrasco pela cintura e passou a luz para sua mão livre. Rosa enganchou os pés na borda da escuridão e lançou-se com leveza fosso adentro. Em questão de segundos a vice-prefeita pôde enxergá-la em solo firme, acenando lá debaixo.

— Vem!

Branca puxou a corda e imitou o processo. O nó foi desajeitado e os fios grossos do equipamento esfolaram um pouco sua mão. De gatinhas, porque não tinha coragem de mergulhar como a irmã fizera, foi deslizando para borda e esticando os joelhos até seus pés perderem apoio. Quase escorregou e caiu de qualquer jeito, entretanto a ruiva já estava ali para ampará-la pelas costas.

— Nada mal, mas você ficou meio travada. Esse negócio de viver no escritório não te faz bem.

— Que tal vestir uma saia tubinho também?

Branca pegou a luz das mãos dela e apontou adiante, de mão erguida. Andou para frente, para a esquerda, para direita, vasculhou o fosso calmamente. As paredes eram de uma pedra escura e limosa. O chão puro pedregulho e terra vermelha.

— Não há nada. — constatou frustrada.

— Exatamente. Sem o mais remoto sinal do que poderia estar acontecendo aqui. Quem sabe ele não estivesse só se protegendo de um terremoto.

— E como fugiu? Não faz sentido... — observou as algas se incrustando entre as ranhuras da rocha. Elas pareciam seguir um padrão de crescimento. Borbotavam como rodapés e iam rareando ao grau que subiam em direção ao teto. O curioso, sobretudo, era como somente naquele exato espaço retangular o crescimento fúngico comportava-se deficiente.

— Eu encontrei algo aqui.

Rosa avançou olhando na mesma direção que ela.

— Encontrou?

— Me empresta seu canivete.

— Como sabe que eu tenho um canivete?

— Como você não teria um? Anda logo!

A ruiva afundou a mão no bolso do jeans e revelou a portátil arma branca. Entregou a contragosto para a alva princesa, que se pôs a trabalhar na sua teoria sobre aquele trecho da parede.

Branca usou a parte afiada da faca para esfregar o limo. Cheiro de lodo subia conforme limpava a rocha, mas continuou concentrada porque parecia realmente haver algo oculto nas ranhuras posteriores. Esfregou em todos os lugares onde a lâmina batia indicando sulcos sólidos.

— Branca, há algo se formando. — informou a irmã, encarregada de iluminar o trabalho.

Ajeitando os rebeldes fios de cabelo com as costas da mão, que se desprenderam do seu penteado enquanto limava, ela andou alguns passos para trás para conferir o resultado. Em baixo relevo, estranhos e familiares entalhes enfeitavam a pedra.

— Parede uma escrita...

— Algo diferente, desordenado. Tenho certeza que nunca vi nada igual decorando a Fazenda.

— Não estão desordenados, eles constroem sílabas. Veja aquele círculo transpassado por duas linhas paralelas, parecem iniciar vários vocábulos.

— É mesmo. E veja, estão inseridos dentro de um retângulo quase perfeito e da nossa altura.

— É uma passagem! — ela teve a certeza.

A mudez assolou as duas pensativas mulheres por vários segundos.

— Sabe Branca, retiro o que disse sobre você estar passando tempo demais no escritório.

A milenar princesa saboreou a singela vitória do poder da vantagem, em silêncio. Novas teorias fervilhando em sua mente a fizeram divagar:

— Foi por aqui que nossas duas fábulas fujonas escaparam. Talvez a Cigarra tenha vindo pedir abrigo ao Formiga porque conhecia esse portal, ou quem sabe eles estivessem envolvidos em algo insólito desde o princípio. Deve ter um jeito certo de se ler esses escritos para ele se abrir.

— Um portal na Fazenda? Seria para as Terras Natais?

— Consegue pensar em algum outro lugar? — desdenhou Branca sobre o óbvio. — Isso é tão familiar. — concentrou-se tentando se lembrar de onde vira tais vocábulos. — Se ao menos estivesse no escritório, com a ajuda de Bufkin poderia descobrir. — teve um súbito estralo — Preciso de papel e lápis.

Rosa não saiu do lugar. Branca a olhou franzindo o cenho.

— O que? Quer que eu suba para procurar papel e lápis agora?

— Preciso registrar esses escritos, Rosa. E você não é a performática ou vai dizer que não está tão engajada assim para subir rapidamente e me buscar o que preciso?

Carrancuda, mas rendida pela sua língua vangloriosa, Rosa saiu em busca do pedido de Branca. Esta, por sua vez, passou os minutos ociosos de espera tentando ler e criar fonemas para abrir o local. Nada lhe vinha à memória.

— E agora? — a irmã, que havia voltado com os “equipamentos”, quis saber.

A vice-prefeita terminou de registrar tudo em grafite.

— Agora nosso xerife precisa saber disso.


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