Fábulas de Sangue escrita por Van Vet


Capítulo 14
Bigby


Notas iniciais do capítulo

E agora, as reviravoltas do baile...



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O Lobo vestiu um terno alugado, passou bastante gel nos cabelos e comprou sua máscara de falcão no centro de Nova York, em uma loja de fantasias mundanas. Olhando-se no espelho velho do seu quarto alugado, achou o disfarce plausível se os convidados não prestasse muita atenção nele. Apanhou seu maço de cigarros, o colocou no bolso interno do paletó, e partiu para o Baile dos Falcões utilizando um táxi.

No edifício, ele subiu para o salão de festas do décimo nono andar de Woodland e agregou-se a fila indiana de convidados, na mesa da segurança. Era Grimble quem conferia os convites e indicava as majestosas portas douradas às fábulas festivas.

Bigby alisou seu passaporte, satisfeito por ter aliados no prédio. Para infiltrar-se na festa, precisou da ajuda do Garoto Azul. O rapaz tinha acesso irrestrito à prefeitura e a tarefa de raptar um convite do montante em cima da mesa do ausente prefeito fora fácil.

Ao chegar sua vez na segurança, procurou não se comunicar verbalmente com Grimble, além de manter a cabeça baixa para evitar contato visual. O porteiro, atordoadamente atarefado, desejou-lhe boa festa e indicou o salão.

De trás das portas duplas de ouro todo o glamour da noite exaltou sobre seus olhos. Os companheiros das Terras Natais desfilavam em modelos ostensivamente luxuosos, formando grupinhos de conversação, trocando sorrisos e gracejos enfadonhos enquanto bebiam e beliscavam canapés. Todos os rostos respeitavam a temática do baile, escondidos por de trás de máscaras brilhantes.

Naquele momento, a orquestra enchia o salão de uma melodia frugal, dominada por violinos inquietos. O ex-xerife pegou uma taça de champanhe quando o garçom se aproximou e bebericou suavemente o líquido transparente, andando entre as pessoas causalmente, como se curtisse o ritmo dos acordes, mas inspecionando detalhes físicos na busca de alguém especial.

Mirou Branca de Neve instintivamente, e embora ela usasse uma máscara púrpura escondendo mais da metade do rosto, ele pôde facilmente reconhecê-la. Linda num vestido de cetim branquíssimo, tão claro que se diluía adoravelmente com sua pele alva. Usava os cabelos num coque trançado e os lábios estavam pintados no provocativo tom escarlate. Esses mesmo lábios se erguiam para um sorriso sem vontade, acompanhado de seus frios olhos azuis, cada vez que uma fábula vinha-lhe cumprimentar.

Bigby desviou de muitos convidados, acercando-a lentamente. Gostaria de conversar com Branca, primeiramente para saber se Príncipe Encantado a injuriara na sua ausência, depois porque ansiava contar sobre uma nova suspeita que fomentara em sua mente, após ouvir a história completa do Perdiz-Vermelho.

A oportunidade para a abordagem quase teve êxito se uma mulher de cabelos e vestidos escandalosamente vermelhos não cruzasse seu caminho para um lugar ao lado da vice-prefeita. Rosa Vermelha passou uma taça de espumante para a irmã-gêmea e puseram-se a dialogar aos cochichos. Cauteloso, ele se encostou no pilar mais próximo e ficou esperando quando sua próxima chance de alcançar Branca solitariamente, viria.

Enfiado num terno estampado e de mau gosto, João das Lorotas surgiu entre as duas irmãs e começou a matraquear:

— Que tesouros estão às lindas Branca e Rosa! — assoviou.

— E aí, João? Esqueceu-se de tirar o cheiro de naftalina do seu terno? — zombou Rosa Vermelha, que no passado fora amante do trambiqueiro.

— Assim você parte meu coração, minha delicada Rosinha. Estava pensando quando veria esse seu traseiro redondinho novamente... Que dia memorável é esse!

— Dá pra sumir daqui, seu intragável? — Branca de Neve exasperou-se.

Bigby afrouxou o colarinho da camisa, tomado por um calor repentino, consequência da vontade natural de ir até lá e colocar João no seu devido lugar.

— É João, sai daqui. Esse traseiro você não rela mais. — Rosa sorriu cinicamente.

De esguelha, o Lobo percebeu uma movimentação súbita. Duas figuras díspares aderiram as irmãs e ao loroteiro, causando uma atenção atônito entre os convidados mais próximos.

— Quem te disse que pode estar acima de mim, Branca? EU NÃO QUERO ESSE SERVIÇAL SE DIVERTINDO! — gritou o prefeito empurrando Papa-Moscas para perto dela.

Branca de Neve ficou ligeiramente muda, mas foi apenas até orientar-se sobre o que acontecia:

— Quem te dá o direito de tratá-lo desse modo?

Humilhado, Papa-Moscas tirou a máscara e abaixou a cabeça:

— Tudo bem, Srta. Branca, ele tá certo.

— ABSOLUTAMENTE QUE NÃO! — ela retrucou determinada. — Seu cretino arrogante, você merece...

— Eu mereço ter minhas ordens cumpridas por ser o representante de todos nós, sua insolente! — o Príncipe apontou-lhe o dedo entre os olhos.

— NÃO! VOCÊ MERECE TUDO QUE A DE PIOR! TUDO!

— Acho que vocês beberam demais! — comentou Rosa, procurando colocar panos quentes na discussão.

Mais fábulas assistiam ao espetáculo improvisado e a orquestra passou a tocar num tom quase inaudível, como se quisesse contextualizar o atrito. Bigby andou alguns passos vacilantes, incerto se intervinha de uma vez ou aguardava outra atitude estúpida do prefeito. Decidiu esperar.

— Logo, logo a comunidade vai saber quem você é, Branca. Então só sobrará essas muletas aduladoras — apontou para o servente submisso — para você se apoiar — retorquiu Príncipe Encantado girando os calcanhares, elegante no seu smoking negro.

— Ele te quebrou agora. — João das Lorotas argumentou para ela quando a festa voltou a transcorrer.

— Cale a boca! — a vice-prefeita retorquiu e fitou os lados — Onde está Papa-Moscas?

— Acho que ele foi embora. — Rosa objetou — Que cretino seu ex-marido! Cada vez mais pedante. Você deveria me agradecer, irmã. Aquele chifre de milênios atrás abriu definitivamente seus olhos.

Branca de Neve encarou incredulamente Rosa, como se estivesse estafada demais para escutar os argumentos dela sobre a traição com seu antigo príncipe.

— Vou ao banheiro. — disse aparvalhadamente.

***

Pelo restante da festa foi impossível estabelecer contato com Branca de Neve. Bigby ficava as sombras de se aproximar em diversas ocasiões, mas sempre havia uma fábula enxerida em potencial, rondando-a.

Perto da meia-noite, o prefeito pediu para a orquestra aquietar-se e subiu ao palco chamando a atenção dos presentes no salão.

— Amigos e amigas, fábulas fantásticas das Terras Natais, é com muito orgulho que veio saudá-los e agradecer a participação de todos vocês no incrível Baile dos Falcões! Esses eventos, que tem por finalidade nos reunir, trazer um pouco das nossas lendas e dos nossos costumes, é sempre uma benquista alegria para um prefeito tão dedicado e entusiasta como eu. Benquisto também foi o grande Falcão Valente e sua história, trágica, porém virtuosa. E é com imenso orgulho, que trago a tocante canção sobre sua jornada fatal aos vossos ouvidos. Cindy, é com você!

Príncipe Encantado abandonou seu o discurso e saiu de cena. Próximo ao chafariz, orquestra retornou num timbre doloroso. No palco Cinderela substituiu o prefeito, vestida glamourosamente em seu famoso vestido azul cintilante. Mirou a plateia atenta, com calma e suavidade, e levou os lábios ao microfone cantando:

“Eis um Falcão Bondoso,

Um Falcão sem Medo

Um Falcão Caçador;

Eis um Falcão Bondoso

Amado por todos

O Mais Benquisto do Vale

Nascido de um momento de amor

Entre a Vida e a Morte

Herdeiro da Sina dos Pais;

Eis um Falcão Pretensioso

Desafiado Por um Forasteiro

Deu Suas Dádivas de Vida e Morte

Em Troca de sua Soberba;

Eis um Falcão Arrependido

Que Perdeu Tudo por sua Arrogância

Viu seu Povo ser Massacrado por sua Imprudência;

Eis um Falcão Valente

Que Decidiu Sacrificar-se para Reparar um Erro

Entregou-se à Morte com a Virtude de um Cavaleiro

Eis um Falcão, um Falcão Valente.”

Os espectadores aplaudiram ensurdecedoramente a performance de Cinderela. A cantora agradeceu cheia de gracejos e floreios e se retirou do palco.

Para Bigby, escutar a música trouxe mais convicções a suas ideias, as que precisa compartilhar urgentemente com Branca. Ele olhou para direção que sabia ser onde ela estava, e encontrou-a ineditamente solitária. Resoluto, se pôs a marchar para ela. No estrado, Garoto Azul tomava a frente do público.

— Senhoras e Senhores! E agora o segundo momento mais aguardado da noite, depois dessa incrível canção interpretada por Cinderela! Com vocês, os vencedores do Rei e Rainha do baile!

Agora o Lobo estava a apenas alguns passos de Branca, mas a aglomeração perto do palco era densa, por isso ele só conseguia avançar em passos diminutos. Ainda no comando, Garoto Azul trouxe duas coroas prateadas, apoiadas em almofadas carmesins, e sacou um envelope do paletó:

— Segundo a votação dos convidados, o Rei do Baile dos Falcões é... Nosso Prefeito, O Príncipe Encantado!

Debaixo de uma ovação de puxa-sacos, o prefeito subiu saltitante para o tablado e agradeceu fazendo exageradas vênias. Depois tomou o microfone de Garoto Azul para si:

— Muito obrigado, meu querido eleitorado. Ops! Meus amigos. — deu um risinho sarcástico — Não sei se vocês sabem, mas sempre quis me tornar rei...

— Não terminei! — retrucou Garoto Azul arrancando o microfone novamente do Rei do Baile — E a Rainha, segundo nossas apurações é... Bem... é.... Branca de Neve...

O salão emudeceu. Bigby ficou paralisado, enquanto ele e o resto das fábulas olhavam chocados para o resultado indigesto. Branca arrancou sua máscara, a tez completamente pálida. Ao longe ouviu-se uma gargalhada conspiratória, que o ex-xerife reconheceu de imediato sendo de João das Lorotas.

— Ah... Branca, acho que você tem de vir pegar sua coroa. — Garoto Azul estava completamente desconfortável como o arauto do caos. — Aplaudam, pessoal. Aplaudam a primeira princesa das Terras Natais!

Timidamente as pessoas foram obedecendo numa ovação forçada. Branca se viu obrigada a cumprir seu destino fatídico naquela armação zombeteira. Bigby novamente perdeu-a por questão de segundos.

No palco, Rei e Rainha se encararam glacialmente.

— Acho que devemos trocar nossas coroas, minha querida rainha. — disse Príncipe Encantado erguendo a coroa e depositando no topo da cabeça de Branca. — Á Rainha, por um reinado laborioso e larápio!

O sangue subiu as bochechas dela, que pegou a coroa do Rei e acomodou vagarosamente na cabeça do ex-marido:

— Ao Rei, por um reinado repleto de corrupção e falsas promessas!

O sangue também elevou-se a pele macia de Príncipe Encantado, mas nele havia algo mais insalubre. Seu rosto heroico contorceu-se num esgar de ódio, pavor e, por último, medo. Da raiz dos cabelos um caldo escarlate escorreu para suas têmporas e nuca.

— Meu Deus... — Branca arfou recuando um passo.

O prefeito fitou-a alarmado:

— O que você está fazendo comigo?

— Eu... na-nada... — ela gaguejou.

De repente, seu régio corpo começou a tingir-se de vermelho. Um vermelho vivo, incapaz de passar despercebido. No salão, os convidados observavam o espetáculo num silêncio mórbido e curioso. Bigby sentiu cheiro de sangue, e mais do que isso, sentiu cheiro de algo pior galopando sobre eles.

Foi então que um banho de sangue jorrou de dentro para fora do Rei do Baile, cobrindo-se completamente. Seu semblante cínico desfigurou-se em líquido viscoso e, de súbito impacto visual, uma macabra poça rubra se espalhou pelo chão. O vestido branquíssimo de Branca ficou plenamente tingido, e ela recuou assustada ao deparar-se apenas com as roupas formais do prefeito, empapadas no sangue.

— Bigby, não sei o que houve, mas precisamos tirar minha irmã daqui. — murmurou uma voz calculista as costas do Lobo. Ele sabia se tratar de Rosa Vermelha.

Sem virar-se para responder, correu para o resgate da vice-prefeita. No tablado, ela permanecia em choque, e uma turba de histeria só fazia crescer sobre o público.

— Branca! — ele subiu os degraus e foi até ela puxando-a pelo braço gelado e trêmulo.

—Bigby? — ela o reconheceu no ato.

— Precisamos de ir!

— O que houve?

— Vamos embora! — começou a arrastá-la.

— Bigby, o que aconteceu com ele? — continuava estática.

O Lobo teve de puxá-la com mais vigor:

— Você não vai querer ficar aqui para obter essa resposta!


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?