Fábulas de Sangue escrita por Van Vet


Capítulo 12
Bigby




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Uma semana se passou e Bigby ainda não conseguira achar nada melhor (e mais barato) do que aquele pardieiro, cinco quadras a leste do edifício de Woodlands. Inacreditável como o senhorio pôde lhe cobrar cento e quinze dólares por duas semanas num quarto caindo aos pedaços. O encanamento do banheiro vazava atrás da pia e alagava, recorrentemente, todo o chão; o assoalho fedia a mofo e rangia a cada passo, pronto para ceder a qualquer peso adicional; e a parede era um quadro a tinta óleo surrealista, pichado em camadas de bolor esverdeado.

O xerife, agora ex no cargo, não estava nada feliz nessa condição de inércia, sem poder continuar ao lado de Branca de Neve no plano de descobrir os segredos do Príncipe Encantado e desmascará-lo.

Os moradores da pensão eram outro problema sólido aos nervos do Lobo. Boêmios, briguentos e barulhentos, consolidavam uma corja arquitetada para tirá-lo de momentos de concentração e reflexão. Na noite passada, por exemplo, teve de apartar uma discussão truculenta entre o Lenhador e outra fábula. Ambos excepcionalmente bêbados.

Aquela manhã, ao menos, prometia ser algo produtivo. Finalmente Contador de História retornara para seu recanto e contatara-o. Bigby chegou a achar que mais uma fábula havia sumido misteriosamente, mas o locador garantiu a ele que o inquilino viajava regularmente.

O Lobo colocou seu sobretudo marrom por cima da velha camisa e deixou a pensão para assumir seu papel investigativo. Preferiu ir andando até o encontro, primeiro, pela pequena distância do percurso, depois, porque deveria poupar gastos desnecessários como pedir um táxi.

Parou em frente a um barzinho deserto e inspecionou a janela através do vidro: tudo apagado. Evitando agir “agressivamente” bateu com os nós dos dedos na porta. Como ninguém o atendeu, bateu outra vez, e com mais intensidade. Uma mulher tatuada e carrancuda atendeu-o com brusquidão.

— Estamos fechados, droga!

— Não vim beber. Quero falar com seu inquilino, ele me aguarda.

— Bigby, não quero nenhuma confusão por aqui... — a mulher semicerrou os olhos ao encará-lo.

— Ellen, quero apenas conversar com o Contador de Histórias. Também não quero tumultuar nada.

Relutante, a fábula deixou-o entrar. Lá dentro, o salão era tomado pela penumbra, e todas as cadeiras estavam erguidas para cima das mesas.

— Desculpe interromper sua limpeza. — ele procurou ser gentil.

— Ele está no quarto dele. Atrás do balcão entre na porta e siga para o fim do corredor.

— Muito obrigado, Ellen. — agradeceu à desconfiada mulher.

Seguindo as instruções não foi nenhum problema deparar-se com o refúgio do Contador de História. Ele mesmo abordou o xerife no caminho e o conduziu para seu atulhado quarto.

— Ouvi Ellen resmungando com alguém no salão e imaginei que já fosse você. — disse ele, risonhamente.

Contador de História escolhera a aparência de um homem negro e jovem, de marcante sorriso largo e olhos agitados, para estar entre os mundanos. Nas Terras Natais, Bigby lembrava-se bem de sua real forma: um tronco de árvore ressequido e velho, de voz bondosa e movimentos letárgicos.

— Não repare a bagunça, Bigby. — ele foi recolhendo alguns livros na única poltrona disponível do cômodo, e amontoando-os sobre suas estantes, já entupidas de enciclopédias, romances, biografias, compêndios, e toda sorte de temas existentes.

— Sabe Contador, você poderia substituir tudo por aquele equipamento mundano, o computador, e doar essas tranqueiras para o escritório de Woodlands. Bufkin adoraria catalogá-los. — comentou o ex-xerife acendendo um cigarro e sentando-se no assento desocupado.

— Certas coisas prefiro fazer ao nosso modo tradicional, Bigby. — respondeu o negro, pacientemente. — Aceita algo para beber? Eu posso pedir para Ellen preparar...

— Não, eu agradeço. Se você pedir para ela fazer qualquer coisa para mim correremos o risco de despertar a ira ork dela. Sua hospitalidade já está sendo de bom tamanho. Essa cidade toda adora me odiar.

— Nem bem pisei aqui e já descobri do seu incidente na prefeitura. Lamentável, sinto muito.

— Sim, correm vários boatos sobre como quase estripei o Príncipe, suponho. — ele deu de ombros e tragou longamente seu cigarro.

Contador de Histórias terminou de realocar os livros e sentou-se na cama de solteiro, de frente para o Lobo.

— Espero, sinceramente, que suas perguntas não envolvam essa rixa entre vocês. Não quero encrenca.

— Eu vim para ouvir uma história, somente isso.

— Eu imaginei. — a fábula sorriu aliviada.

— Mas antes, por onde andou esses dias? Qualquer viagem de uma fábula antropomórfica tem de ser reportada ao xerife, que até semana passada era eu.

— Nunca sai do cargo, hein?! Gosto de ir para o interior, para mata, relaxar e me conectar com minhas semelhantes. Nada demais.

— Porque não se muda para Fazenda de uma vez?

— Todos têm seus motivos, Bigby. Enquanto puder pagar pelo meu glamour, fico aqui e relaxo por lá.

O Lobo balançou a cabeça concordando, e encerrando os preliminares de vez. Estava na hora de ir direto ao ponto:

— Preciso de alguém que conheça o conto do Perdiz Vermelho detalhadamente.

— Venho ouvir um conto?

— Precisamente. — Bigby anuiu.

— Que interessante! Pensava nele há alguns dias, quando recebi o convite para o Baile dos Falcões. O Falcão Valente e o Perdiz Vermelho, gostaria de ter conhecido fábulas tão passionais.

— O que o Falcão Valente e o baile têm haver com isso?

— Tudo! — exclamou Contador de Histórias, batendo palmas — O Falcão da canção do Falcão Valente é a mesma fábula que condenou o Perdiz a morte de sangue.

— Morte de sangue? Ei, ei, Contador, por favor, preciso de uma explicação abrangente e elucidativa. Comece do início.

A fábula iniciou sua narrativa explicando detalhadamente todo o conhecimento que adquirira nas Terras Natais sobre a história do Perdiz Vermelho. Realmente havia algo mais macabro no fim daquele conto, que o Lobo e Branca de Neve não lembraram naquela ocasião:

— ...a descoberta de que aquela linda ave era, na verdade, a prometida do Falcão cruel do vale fez o amor do pequeno perdiz virar desespero. Completamente temeroso pela punição, ele foi se retratar pessoalmente, desculpando-se pela ousadia. E o Falcão lhe disse: “Meu caro Perdiz, eu certamente demoraria a saber, ou quem sabe nunca saberia, sobre sua traição. O meu castigo talvez você nunca conhecesse. Entretanto, porque veio, porque traiu seu amor, pelo medo de minha punição, e o conforto da segurança, por isso, e não pelo meu outro juramento, o condenarei do mesmo jeito”. E assim se sucedeu, o perdiz ficou vermelho, vermelho rubro, vermelho sangue. Todo ele, pena, pele, órgãos, tudo se liquefez num caldo de sangue.

— O covarde traiu a sua paixão, por medo da punição...

— Sim. Foi assim que ouvi dizer que aconteceu.

— E a música do Falcão Valente, o que tem ela?

— Ela canta sobre o fim trágico deste Falcão, o que condenou o Perdiz-Vermelho. Você se lembra da lenda que originou a canção?

— Claro. Todas as fábulas conhecem.

— Mais uma coisa... — Bigby pegou um papel no bolso interno do sobretudo — Você saberia traduzir esses escritos?

O Contador de Histórias desdobrou a folha encontrando os caracteres transcritos por Branca do esconderijo na Fazenda.

— Pode me dizer o que isto significa?

— É linguajar rudimentar dos vales meridionais, coisa antiga, das Terras Natais. Em suma, o idioma que as fábulas a pouco citadas, se comunicavam.

— O Perdiz e o Falcão?

— Exato.


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