Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 8
T01E07 - Últimos dias


Notas iniciais do capítulo

Episódio 008 da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. Milton perde-se diante da névoa de sua própria fé, e parece não conseguir realizar um milagre a tempo do arrebatamento.

ATENÇÃO: contém cenas fortes!



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“Quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis… quarenta e sete… quarenta e… oito…” bufava Milton, fazendo flexões no chão da sala.

Seus braços não aguentaram mais um movimento sequer, e ele se jogou de lado no chão, virando-se para cima, ofegante, enquanto ofendia-se mentalmente por ser fraco. “Como você espera conseguir um milagre, desse jeito?” Milton ficou de pé e deu continuidade a sua rotina diária: tomou banho, vestiu calça jeans, camisa e sapatos, abriu a bíblia que repousava no criado-mudo e pegou alguns reais para passar o dia.

Ao lado do livro sagrado, repousava aquele misterioso objeto caído do céu: um cubo mágico com apenas dois quadrados de cores erradas. Milton jamais havia tido um desses, jamais havia interessado-se por números, cores, formas geométricas, qualquer coisa que remetesse àquele objeto. Por isso, seu surgimento repentino deixava-o intrigado.

“Por que eu? Por que logo naquela caçamba?” disse, em voz baixa, segurando o cubo e encarando-o.

Guardou-o em uma bolsa de uma alça só, a mesma onde costumava carregar sua fiel bíblia, mas não haveria espaço para ambas as coisas. Decidiu deixar o livro lá, levando consigo apenas o cubo. “Talvez, esse objeto deva tornar-se minha nova religião”, cogitou, confuso. “Afinal, foi Deus quem o enviou para mim.”

Saindo de casa, com a bolsa pendurada na diagonal, foi abordado por um homem exageradamente magro vestindo regata, bermuda e óculos-escuros, que tinha as mãos trêmulas e olhava frequentemente em volta, apreensivo.

“E aí, Miltão?” disse, aproximando-se, com os braços soltos e cheio de gingado.

“O que você está fazendo aqui?” Milton franziu a testa, sério, parando em frente à porta.

“Pô, cara! Sou teu cliente favorito!” brincou o homem, gesticulando e falando com aquele tom malandro.

“Faz quantos dias que está em condicional?” indagou o religioso, sólido, encarando o outro.

“Pô, Miltão… tu é foda, hein!” disse, cutucando o peito de Milton.

O braço direito de músculos enormes e pele negra empurrou o malandro a metros de distância, fazendo-o perder o equilíbrio e cair de costas na sarjeta. Os óculos-escuros voaram longe.

“Não ouse tocar em mim!” exclamou Milton, apontando de cima, e saiu andando.

“Desse jeito, até parece que tu abandonou os negócios”, disse o outro, levantando-se com dificuldade. “Mas nós dois sabemos que isso não é verdade, né, Miltão?” Ele olhava fixo na direção de Milton, com um sorriso sacana no rosto.

“O que você quer dizer com isso?” O religioso voltou agressivamente, com passos rápidos e punhos fechados, jogando a bolsa no chão.

“Teu maninho tá te esperando, por que não faz uma visita? Tem medo de acabar ficando por lá, igual ele? Você não ajudou teu irmão a matar o tal de Samuel, Miltão! Qual é! Se tu não visita teu irmão, é porque tem medo de alguma coisa, e se tem medo, então significa que anda aprontando alguma!” O tom do malandro era provocativo, sarcástico.

Milton chegou a uma velocidade imensa, desferindo um soco potente na maçã do rosto do homem, que caiu novamente. O religioso ajoelhou-se por cima, prendendo seus braços com as pernas, e começou a executar violentos golpes contra sua cabeça. A postura de Milton era animalesca, selvagem, como a de uma besta feroz. Suas narinas estavam dilatadas, o nariz franzido e as veias saltadas.

“Eu não tenho nada a ver com ele! Nada!” urrava, enquanto esmurrava o rosto do indivíduo. “Eu sou outro homem!”

De repente, enquanto a raiva começava a passar, Milton percebeu o estrago que havia causado no rosto do homem, que gemia de dor, todo ensanguentado. Ao olhar em volta, o auxiliar de cozinha notou um casal de jovens chocado com a cena, do outro lado da rua. Soltou o malandro e levantou-se, imediatamente, boquiaberto. Estava assustado consigo mesmo.

“Eu sou outro homem…” repetiu, com os lábios, para si mesmo, dando passos para trás.

O jovem namorado, que assistia à cena, pegava o celular e começava a discar um número, provavelmente prestes a chamar a polícia.

“Ei!” exclamou o malandro, esticando o braço para Milton. Com a ajuda do homem, reergueu-se, e logo virou para os dois espectadores. “Não precisam chamar a polícia. Nós já resolvemos tudo. Nós somos antigos amigos.” O rapaz, do outro lado da rua, guardou o aparelho e retirou-se de lá, puxando a namorada pela mão. “Certo, Miltão?” perguntou a vítima, virando-se para o agressor.

“Antigos amigos…” esbravejou Milton, ainda raivoso, “você não tem o direito…”

“Acho que acabei de ganhar o direito”, interrompeu o outro, com um sorriso de canto, enquanto limpava o sangue do rosto com a camiseta. “Eu posso dar uma passada na delegacia e fazer um BO, se tu quiser. Que tal, hein? Tua mãe ia ficar feliz em saber que os dois filhos estão juntos de novo!”

“O que você quer de mim?” perguntou Milton, enquanto pegava sua bolsa do chão, bufando de raiva.

“Seguinte: tu é meu fornecedor, Miltão… e eu tô na pior, meu velho. Preciso da branca, e é pra ontem!” A postura do malandro, agora, era convicta, agressiva. Ele se aproximou de Milton e encarou-o a centímetros de distância, enquanto este desviava o rosto. “Agora, eu tenho duas cartas na manga, meu rapá! Se tu não me arrumar cinco gramas da farinha boa até amanhã, pode saber que, além de fazer o BO, vou fazer teu irmãozinho virar a putinha da cadeia. Tá me entendendo?”

Milton encarou o homem, olhando-o no fundo dos olhos. Não podia recordar-se da última vez que sentiu tamanha ira pulsando em suas veias.

“E então você me deixa em paz?” perguntou ele, ainda com os olhos ameaçadores vidrados nos do outro.

“Pra isso, a gente pode fazer outro acordo, Miltão”, disse o malandro, sorrindo, e deu dois tapinhas no ombro de Milton. “O negócio é que não tenho certeza se tu quer parar…” continuou, erguendo uma das sobrancelhas e olhando em volta, suspeitoso, “posso te colocar de volta no ramo, meu velho. Tudo em nome dos bons tempos, quando tu não me esmurrava a troco de nada. Esse negócio de igreja faz mal pras pessoas, sabia? Tu era gente fina, tu era um irmão!”

“Eu mudei, Jorge. Eu sou outro homem. Acredite você ou não.”

“É… com certeza”, disse Jorge, dando uma piscadela para Milton, e então indo procurar os óculos-escuros pela calçada. “Nós todos mudamos, meu velho… acontece que alguns mudaram pra melhor, outros, não”, resmungou.

“Eu não sou, e jamais voltarei a ser quem você espera que eu seja”, afirmou Milton, firme. Virou as costas e saiu andando.

“Não pode lutar contra você mesmo, Miltão! Não tem como fugir do que tá dentro de ti!” gritou o malandro, de longe, segurando os óculos-escuros. Limpou o nariz na camiseta, mais uma vez, e partiu, com seu gingado e braços abertos.

O céu da manhã estava coberto por nuvens, e a temperatura estava relativamente baixa, pois uma frente fria aproximava-se. Milton tinha lágrimas nos olhos. Sabia que sua vida estava acabada, agora, com o reaparecimento de Jorge. Pouco a pouco, por conta das ameaças, perderia tudo que havia conquistado nos últimos anos. Para Milton, o passado é um fantasma vingativo, uma besta perseguidora. Com os ensinamentos que absorveu durante os últimos tempos, ele pôde apenas concluir que esse Jorge de agora não era o mesmo de antes, pois ficara sabendo que o homem havia sido morto pela polícia – as notícias espalharam-se rápido. Seria, portanto, uma encarnação do Inimigo, que surgiu para desvirtuá-lo do caminho correto, aquele mostrado pelo garoto que o havia visitado no restaurante.

Milton abriu a bolsa e pegou o cubo mágico. Enquanto caminhava, sentindo a suave brisa matinal, esperava que o novo objeto de fé fizesse sua ira ir embora, trazendo tranquilidade. Cogitou tentar montá-lo, já que faltavam apenas dois quadrados a serem corretamente encaixados, mas logo desistiu da ideia. “Deus não nos envia dádivas para que as moldemos, Ele as envia para moldar-nos”, concluiu, sabiamente. Refletiu que, talvez, aqueles dois quadrados errados simbolizassem a pequena parcela de si que se sentia cansada, desesperançosa, e que permitia a influência negativa dos assombroso passado que o perseguia. Milton guardou o objeto de volta na bolsa.

Dois quarteirões de caminhada depois, Milton ainda seguia em direção ao hospital para fazer sua visita diária à mãe, que repousava em coma induzido havia anos. Ainda havia cerca de dez quadras de distância a serem percorridas, essa jornada matinal servia a Milton como uma penitência autoinduzida. O enorme peso em seu coração fazia-o punir-se rotineiramente por todo o mal que havia causado, e ainda esperava uma resposta de Deus para seus desesperados pedidos de perdão, todas as noites, antes de dormir. A autoafirmação de que se havia tornado outro homem era uma espécie de mantra que o vinha acompanhando já havia muito tempo.

Então, enquanto passava diante da fachada de um hotel barato, foi repentinamente abordado por um morador de rua que segurava um grande pedaço de papelão escrito: “Estes são os últimos dias!”

“Você está preparado para o fim dos tempos? Ninguém está preparado para isso!” clamava o mendigo, com a boca inteiramente coberta pela imensa barba e bigode.

“Com essa sua placa, parece mais que está anunciando uma queima de estoque de alguma loja. Patético”, afirmou Milton, desapontado, seguindo adiante.

“Você não sabe o que está por vir! Eu conversei com o Messias! Ele veio até mim e disse que estes seriam os últimos dias!” disse o morador de rua, com olhos arregalados, acompanhando Milton.

“Não se brinca com a fé! E não se menciona o Messias em vão! Um dia você pagará por essa blasfêmia!” esbravejou o religioso, olhando fundo nos olhos do homem e apontando o dedo.

“Você também recebeu a visita, não é mesmo?” indagou o mendigo, com um sorriso de surpresa.

“Ninguém me visitou.” Milton virou-se e continuou andando.

“Pele negra, cabelos volumosos, sorriso de garoto… quem diria que Ele se manifestaria assim?” continuou o morador de rua, com os braços abertos, parado na calçada.

“O quê?” perguntou Milton, parando imediatamente e virando-se para trás. “Então você também foi visitado? Mesmo?”

“O glorioso Senhor sabe reconhecer, em um pobre professor desempregado e desamparado, um soldado da fé!”

“O que ele te disse?” Milton reaproximou-se do homem, afoito, buscando respostas.

“Ele disse justamente isso: que o fim dos tempos é agora! Ele me deu a missão de espalhar a notícia sobre o arrebatamento para todos, e é isso que estou fazendo. Disse que só assim eu seria salvo.” Ele sorria seu sorriso banguela.

Isso fez Milton levar com ainda maior seriedade o desafio que lhe havia sido proposto pelo garoto: de realizar um milagre com as próprias mãos. “Mas como farei isso?” pensava, temendo não ser bom o suficiente para merecer a misericórdia de Deus.

“Você acha que está conseguindo realizar sua missão?” indagou Milton, com a testa franzida.

“Preocupe-se consigo mesmo, meu caro! Se também recebeu a visita do menino Jesus, sabe o que deve fazer!” exclamou o mendigo, sorridente, porém sério.

“Mas…” resmungou Milton, com as mãos na cintura, olhando para o outro com desconfiança, “você já estudou a bíblia, ‘meu caro’? Não acha que pode ter algo errado com esse ‘menino Jesus’, não?” O morador de rua fez cara de espanto. “Já cogitou que pode estar trabalhando para o Inimigo, sem saber?”

“Como você ousa?” berrou o morador de rua, furioso. “Um verdadeiro servo de Deus sabe reconhecer Sua glória!”

“Acho que estou perdendo minha religião. Estou cansado de seguir os passos invisíveis de algo que não me valoriza.” Milton olhou para os lados, com a testa franzida, balançando a cabeça. “Tenho mais o que fazer que ficar por aí segurando uma placa. Boa sorte com seu apocalipse.” Virou-se e seguiu viagem, finalmente.

A um quarteirão de lá, Milton deparou-se com a conveniência de sempre, onde tomava seu café da manhã todos os dias. Antes de entrar, porém, olhou pelo ombro e viu o mendigo arremessando sua placa em uma caçamba de entulhos. O homem de fé sorriu. Secretamente, desejava ser o único escolhido, o único a conseguir realizar sua missão e, portanto, o único a sobreviver aos últimos dias. Ainda que não tivesse a menor ideia de como realizaria sua missão, agradava-lhe a ideia de que outros possíveis candidatos falhassem. De certa forma, acabar com as esperanças daquele morador de rua encheu seu peito de confiança. Milton tornava-se um vampiro de fé.

Dentro do estabelecimento, pediu quatro pães de queijo e um café expresso, e sentou-se em um banco de frente a um balcão. A cena era contrastante: enquanto o religioso tomava seu café da manhã, homens descarregavam caixas de cerveja e empilhavam-nas ao seu redor; a cada gole de café, uma nova caixa surgia. Enquanto o homem era pego em meio àquele confuso Tetris alcoólico, o que o confundia era, na verdade, outro quebra-cabeça: o bendito cubo mágico, que repousava agora em cima do balcão. “Ou seria maldito?” A teoria elaborada mais cedo estava certa: enquanto mastigava um pão de queijo, encarando os dois quadrados de cores erradas, Milton finalmente notou as dezenas de garrafas de cerveja que o cercavam, e engoliu seco. Já havia anos desde o último gole. Mas havia, de fato, aqueles dois ou mais quadrados de cor errada em seu coração, fazendo-o sentir-se incompleto, talvez até inseguro quanto a suas decisões e quanto a quem havia-se tornado.

“Socorro! Alguém ajuda aqui, a mulher está morrendo!” gritou um rapaz de boné na cabeça, subitamente, à porta do estabelecimento. Ele apontava para fora, onde, na calçada, uma mulher estava deitada e cercada de pessoas.

Milton engoliu inteiro o pão de queijo que havia acabado de pôr na boca, e arrancou em direção à porta, deixando no balcão o café pela metade, dois pães de queijo e o cubo mágico, e derrubando dois bancos no caminho com esbarrões que sequer sentiu. Lá fora, abriu caminho em meio ao aglomerado de pessoas com seus braços fortes, empurrando os curiosos para os lados, até aproximar-se o suficiente da mulher, que se engasgava com algo, deitada no chão de barriga para cima, com uma coloração roxa no rosto. Milton, de olhos arregalados, olhou para o lado e viu uma linda jovem de cabelos longos e vermelhos, óculos de grau e incontáveis sardas espalhadas pelo rosto. Ela tinha um celular na mão.

“Já faz três minutos e trinta e oito segundos desde que ela parou de respirar”, disse a garota, a uma velocidade incrível, emendando uma palavra na outra de forma confusa. “Quarenta e um, agora… segundos…” E soltou um curto riso, “ela já pode estar sofrendo danos irreversíveis em suas funções vitais cerebrais.” Ela fez uma expressão triste e olhou para o chão.

A dúzia de pessoas que assistia àquilo estava imóvel, sem saber o que fazer. Já haviam chamado o resgate, mas ninguém ali sabia prestar primeiros-socorros para ajudar a pobre vítima. O religioso, tomado por sua extrema empatia de quase sempre, aliada à necessidade urgente de realizar um milagre para garantir seu lugar no céu, abaixou-se ao lado da mulher sufocada e começou uma massagem cardíaca, empurrando seu peito segundo após segundo.

“Hm… você tem certeza que isso vai ajudar?” indagou a moça ao lado, ajeitando os óculos e abaixando-se. “Porque… hm… ela não sofreu uma parada cardíaca… digo, não foi exatamente um infarto que fez ela cair no chão, foi uma asfixia, porque ela se engasgou com alguma coisa que estava comendo… mas não que não tenha gerado uma parada cardíaca, eu não…”

“Eu estou tentando!” urrou o homem, com olhos insanos, enquanto bombeava o coração da mulher manualmente, deixando uma lágrima escorrer pelo canto do olho. “Eu vou salvar essa mulher!”

“Tá… tudo bem… eu não… tá.” A jovem levantou-se e saiu de perto, assustada, mas continuou cronometrando o tempo, enquanto assistia à distância.

Poucos segundos depois, uma ambulância chegou. Do veículo, desceram dois paramédicos, e um deles imediatamente tentou afastar Milton da mulher, para que o outro realizasse os primeiros-socorros apropriadamente. O homem de fé empurrou o paramédico longe, derrubando-o de costas, e continuou a realizar a massagem cardíaca.

“Senhor, nós precisamos que você se afaste imediatamente! Você está matando essa mulher!” exclamou o outro, agressivamente.

“Não! Eu estou… salvando ela!” Milton intercalava sua fala com fortes empurrões contra o peito da mulher.

“Senhor, por favor, você precisa nos deixar fazer nosso trabalho!”

“Eu estou… realizando… um milagre!”

O paramédico que havia sido empurrado levantou-se e desferiu um forte chute contra o rosto de Milton, que caiu para trás atordoado, batendo a cabeça contra a calçada. Enquanto retomava a consciência, os paramédicos levantaram a mulher e, segurando-a por trás, um deles realizou movimentos técnicos com os braços, fazendo-a cuspir a ponta de uma casquinha de sorvete e voltar a respirar. Todos aplaudiram o trabalho realizado pelos profissionais, e logo a multidão começou a dispersar-se, enquanto alguns olhavam feio para Milton, como o homem que tentou impedir a salvação da pobre mulher.

“Vocês me mataram!” gritou ele, levantando-se. Os paramédicos já entravam na ambulância, olhando Milton com olhares sérios de reprovação. “Eu tinha que realizar um milagre, seus desgraçados! Eu podia salvar essa mulher!” A ambulância deu partida e foi-se embora.

A vítima, que estava ainda por perto, aproximou-se de Milton e deu-lhe um tapa na cara, indo embora em seguida. Ele levou a mão até o rosto e ficou pensativo. Tudo estava acabado. “Como podem a fé e a vida ser tão frágeis?” refletiu, desamparado. Ainda que sobrevivesse, ainda que o garoto tivesse sido apenas um sonho ou o suposto profeta um mentiroso, a sobrevida atormentada por Jorge e demais fantasmas do passado que viriam consigo seria, talvez, pior que a própria morte. Milton retomou a caminhada até o hospital, retornando à estratégia de manter-se focado em objetivos para esquecer-se da complexidade da vida.

Nove quadras de lento caminhar depois, Milton estava a um quarteirão de distância do hospital. Parou na esquina, esperando o sinal fechar-se para que pudesse atravessar, e notou que algo estranho ocorria. Por alguns segundos, olhou em volta tentando identificar o que havia de errado, mas não conseguiu perceber, até que notou sua visão um tanto esfumaçada. Mas não era isso: tratava-se de uma densa neblina que, subitamente, cobriu dezenas de quarteirões no centro da cidade. Milton, no meio disso, entrou em desespero, pois sabia que o arrebatamento estava prestes a ocorrer, e não havia realizado sua missão. Ele sabia que, a qualquer momento, seria uma vítima fatal indireta da simples função rotineira dos paramédicos. “Quantas pessoas será que já matei sem querer, dessa forma indireta?” pensou, comovendo-se com a morte iminente e a fragilidade da vida. Ajoelhou-se no chão, de olhos fechados, e começou a rezar, pedindo misericórdia a Deus, clamando por mais uma chance de realizar a missão.

Milton esteve tão compenetrado em sua prece, que não notou os gritos desesperados das pessoas ao seu redor. Alguns pedestres corriam insanamente buscando uma saída do labirinto de névoa, outros encolhiam-se onde estavam, paralisados pelo medo. Os veículos que trafegavam na rua, de repente, pararam de funcionar, chocaram-se uns contra os outros e atropelaram pedestres. Os motoristas e demais passageiros que não se feriram até então desciam dos carros perplexos, sem saber o que fazer. As portas dos ônibus não se abriam, e os passageiros saíam como podiam, pelas saídas de emergência, empurrando e pisoteando uns aos outros.

O caos havia-se instaurado ao redor de Milton. Assim como as caixas de cerveja que o haviam cercado mais cedo, aquilo também representava parte de seu passado. O tumulto, a violência, o desespero, a gritaria, e até mesmo as mortes. Mas o verdadeiro caos estava apenas começando: de repente, surgiu no meio da rua uma intensa luz vermelha. De olhos fechados, Milton também não percebeu seu surgimento. Com a energia rubra, passou a emanar também uma torrente de sangue pelo ar.

Um homem que empurrava seu carro, tentando fazê-lo funcionar, subitamente parou e ajoelhou-se, com os olhos vermelhos e inchados. Por mais que parecesse que seus olhos fossem explodir, foram a última parte do corpo a romper-se. Primeiro, sua nuca começou a trincar e, por entre os poros, sua massa encefálica começou a vazar, fervente, pingando no asfalto. Seu corpo foi inclinando-se para trás, já inativo, até seu tórax abrir-se ao meio e seu intestino ser esguichado para frente. Ele se quebrou ao meio, resultando na cena final de duas pernas ajoelhadas em frente a dois braços caídos em meio a uma massa irreconhecível. O mesmo ocorreu com a grande maioria das pessoas em um raio de quilômetros ao redor da luz, de formas variadas, basicamente em todo o espaço que fora coberto pela neblina.

A mulher que conseguiu escapar de dentro de um ônibus enfiou a mão dentro da própria garganta e começou a arrancar tudo que pôde, até deslocar a mandíbula e cair de cara no asfalto, formando uma poça de sangue. O garotinho que segurava no braço da mãe, desesperado, de repente tombou para o lado, abraçado com o membro, que havia desprendido-se do resto do corpo da mulher. Ele começou a tremer e, segundos depois, em meio a seu choro de criança apavorada, sua cabeça simplesmente explodiu. Um rapaz que assistiu a isso ficou tão horrorizado que, também tomado por aquela misteriosa força, deslocou os próprios braços para trás e saiu correndo sem rumo, gritando o mais alto que podia, com os membros superiores pendurados para trás. Entrou em uma luta mortal com uma senhora, a mordidas, e dilaceraram-se um o outro até a morte.

Na calçada do quarteirão ao lado de onde Milton estava ajoelhado, protegido por sua fé inabalável, a mesma jovem de cabelos vermelhos de antes reconheceu-o e não pôde ignorar a estranheza de vê-lo naquele estado em meio a tais circunstâncias. A jovem soube que, de certa forma, eram parecidos entre si, pois ela mesma não sentia o pavor que parecia tomar todos ao redor. Apenas tentava esquivar-se das pessoas que explodiam, dos loucos que corriam agindo como animais e dos veículos desenfreados. Ela decidiu ir até ele, por mais que não tivesse sentido afinidade. Talvez, pelo homem não estar entrando em erupção, assim como ela, poderia ter explicações sobre o que ocorria.

Poucos segundos depois, a garota tocou-o no ombro, e Milton despertou de sua transi, com olhos arregalados. A esse ponto, a luz vermelha já se havia apagado, e tudo que se podia ver era um cenário de massacre. Havia restos humanos espalhados por cada estrutura, cada centímetro do chão e em cada um dos veículos abandonados pelos cantos. Poucos não haviam morrido, mas ainda assim estavam em condições gravíssimas. A névoa dissipava-se em frente aos olhos de Milton, aos poucos, revelando com ainda maiores detalhes o desastre que ocorrera. Ele se levantou, confuso, e não pôde entender por que ainda estava vivo, se não havia conseguido cumprir o objetivo que lhe fora imposto. Milton e a jovem de óculos entreolharam-se, suspeitosos um com o outro.

Nove quadras atrás, no balcão daquela fatídica conveniência, o cubo mágico não mais repousava, com seus dois quadrados de cores erradas. Mal sabia Milton, perdido em meio ao mais completo caos já presenciado, que estava vivo porque havia conseguido, sim, realizar um milagre. Milton havia devolvido a um jovem desiludido a única chance que teria de sobreviver, havia devolvido sua religião perdida. No momento em que Eric avistou o objeto que havia arremessado do terraço, no balcão de uma conveniência qualquer, soube que se tratava de um milagre. Afinal, quais as chances de tamanha coincidência?


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Notas finais do capítulo

No próximo episódio: Fran, seguindo o conselho do garoto misterioso, usa Silas para conseguir dinheiro e fugir com o irmãozinho, e tudo ocorre estranhamente bem, até que...

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