Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 5
T01E04 - A rebelde


Notas iniciais do capítulo

Episódio 005 da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. O último recrutamento do garoto misterioso é a jovem Fran, e não é preciso muito para desafiar seu orgulho.



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“O ritual de acasalamento dos louva-a-deus, que ocorre no Outono, é uma época de perigo para os machos da espécie, uma vez que a fêmea muitas vezes acaba por devorá-los durante ou após o ato.” Na TV, uma cena silenciosa mostrava uma louva-a-deus fêmea engolindo a cabeça do macho.

“Isso é que é animal esperto”, resmungou Fran, sentada no sofá com os braços cruzados, e então estourou uma bola de chiclete.

Sentado ao lado, o irmãozinho de oito anos assistia àquilo de boca aberta, sem entender qualquer coisa.

“O que é acasalamento?” perguntou ele, virando-se para a irmã mais velha com seus olhos grandes.

“É uma coisa ruim, baixinho”, respondeu ela, abraçando-o com o braço direito. “É uma coisa que faz os animais se odiarem.” Enquanto dizia isso, Fran olhava pela porta entreaberta da cozinha e via sua mãe discutindo com o namorado, um boliviano alto e forte.

Como a discussão foi ficando mais séria e já não bastava que os argumentos fossem proferidos em tom normal, Fran aumentou o volume da TV para que o irmãozinho não escutasse os palavrões. Eles ficaram por mais algum tempo aprendendo sobre a vida de diversos insetos, até que a jovem decidiu tomar uma atitude, após ver que sua mãe ameaçava o homem com um vaso de flores murchas.

“Olha, eu vou lá ver o que vamos ter pro almoço”, disse Fran, e então deu um beijo na testa do garotinho. “Vou deixar no seu canal favorito, ok?” Ela mudou o canal para uma emissora de desenhos infantis, onde um cão perseguia um gato, e levantou-se.

“Mas eu não gosto mais de desenho!” afirmou o irmãozinho.

Fran apenas riu, mascando chiclete, e bagunçou o cabelo do menino. Ela foi até a cozinha, com uma expressão agressiva e passos rápidos, e fechou a porta. Quando entrou, os dois que discutiam a relação pararam imediatamente e olharam para ela, sem reação. A mãe lentamente pôs o vaso em cima da mesa, e o padrasto afastou-se alguns passos.

A jovem de estatura baixa ficou ali, parada, com um sorriso insano no rosto, mascando chiclete e com as mãos apoiadas no short cor-de-rosa pelos polegares, enganchados no cós. Ela vestia uma blusinha preta bem decotada com ilustrações de uma banda de rock, a barriguinha de fora, meias nos pés, e vestígios de maquiagem do rolê da noite anterior. Ao redor dos olhos verdes, borrões de lápis preto e delineador; entre o pescoço de pele morena clara e os peitos volumosos, dois chupões evidentes; na coxa direita, a tatuagem ilustrando o rosto de uma mulher com cabelos lisos e compridos e maquiagem de caveira mexicana. Os cabelos longos e ondulados de Fran estavam presos em um coque desajeitado.

“E aí? O que vai ter pro almoço?” perguntou ela, ainda com o mesmo sorriso, olhando fundo nos olhos dos dois e mascando seu chiclete de boca aberta. Seu sorriso não era exatamente pacífico, provocava uma enorme pressão sobre ambos.

“Olha, eu vou ali no bar, beleza? Eu volto pro jantar”, disse o homem, afastando-se de costas com os olhos pregados no corpo carnudo da jovem, até alcançar a porta e sair.

Fran estourou uma bola de chiclete, assistindo-o ir embora.

“Filha…” suspirou a mãe, passando a mão no rosto.

“O quê?” Fran reassumiu sua postura séria e agressiva, indo em direção à mãe e encurralando-a entre a mesa e o fogão. “Você vai fazer almoço pro menino, ou não, Amanda?” Ela olhava sério nos olhos da mãe.

“Eu vou… é que eu estava falando com uma amiga no celular, e ele teve um ataque de ciúmes…” tentou explicar para a filha.

“Não me interessa! Eu tenho nojo de vocês dois e não quero saber nada sobre essa relação! Já sei tudo que tenho pra saber!” afirmou Fran, mantendo o baixo tom. As veias do pescoço estavam saltadas.

“Você podia pelo menos me chamar de mãe”, disse Amanda, olhando para o chão.

“E você podia fazer um almoço pro seu filho!” gritou a jovem, batendo com força na mesa. A mãe começou a chorar.

“Fran…” chamou o irmãozinho, abrindo a porta da cozinha, enquanto as duas disfarçavam a discussão, “seus amigos estão te chamando.”

“Fala pra eles que eu já vou, baixinho”, a jovem encarou a mãe uma última vez, cuspiu o chiclete na lixeira e foi para o quarto arrumar-se para sair.

Fran tomou um banho de três minutos, vestiu meias arrastão rasgadas, outra blusinha preta de alguma banda de rock e no mínimo dois tamanhos a mais que o recomendado, calçou coturnos de cano longo, retocou a maquiagem e soltou o cabelo.

“Vamos aonde?” perguntou ela, saindo pela porta da frente e sorrindo para os amigos: garotos usando bandanas e correntes penduradas nas calças rasgadas, e garotas vestidas identicamente a ela.

“Bora na casa do Silas!” disse um dos rapazes. “Ele chamou a gente porque tem da branquinha sobrando lá!” E riu.

Fran aproximou-se de seu bando de cerca de dez jovens, sorrindo e mascando outro chiclete, mas olhou para trás e viu seu irmãozinho observando-a pela janela da sala. Ela foi até o rapaz que ainda estava rindo, pelo ângulo certo, e torceu seu braço para trás.

“Menciona a ‘branquinha’ na frente da minha casa de novo, babaca!” sussurrou ela, no ouvido do jovem, e empurrou-o.

Ela acenou para o irmãozinho e o bando partiu. O rapaz ficou emburrado, sentindo dor no braço, mas não disse uma palavra para contestar. Durante a caminhada, Fran quis saber mais sobre o destino do grupo.

“Quem é esse Silas mesmo?” perguntou, olhando os lados. Ela andava bem ao centro do bando, um ou dois passos à frente dos demais.

“É aquele gostoso tatuado que quer seu corpo!” respondeu uma das garotas, rindo. Os demais mantiveram-se em silêncio.

“O que goza em dois minutos?” retrucou Fran, gargalhando e olhando para os outros. Todos riram com ela.

“Mas ele é um tesão, Fran! Pega ele!” insistiu a garota, já um pouco sem graça.

“Aquele tem que subir muito, ainda, até me alcançar”, afirmou Fran, a líder do bando. Os demais concordaram.

Em certo ponto do percurso, Fran e seu grupo cruzaram com um jovem nerd desajeitado, andando com o olhar baixo. Os jovens estilosos seguraram riso, menos a líder.

“Galera, qual o problema de vocês?” disse ela, encarando os amigos, após o jovem virar a esquina. “Meu, cada um tem seu estilo, cada um se veste do jeito que quer, ok? É por causa de gente que julga os outros que o mundo está uma merda!” Todos permaneceram em silêncio.

Ao chegarem na casa de Silas, encontraram a porta da frente aberta. Fran foi a primeira a pisar dentro do lugar, que estava revirado, com roupas, pratos, caixas de pizza e latas de cerveja pelo chão e em cima dos móveis. O tal Silas estava dormindo sentado em um sofá, sem camisa, com seu corpo malhado e cheio de tatuagens exposto. Ele tinha cara de mau elemento, mesmo dormindo, com seu cabelo raspado, barba a fazer e desenhos de armas e caveiras na pele.

“Nossa, que tesão esse cara, hein?” comentou Fran, ironicamente, olhando para os amigos.

“Ei, Silas! Acorda, cara!” disse um dos jovens, balançando o braço do homem, que aparentava ser mais velho.

Silas despertou subitamente, torcendo o braço do rapaz e imobilizando-o com a cara afundada no sofá, até perceber a presença dos demais e soltá-lo.

“Nossa… foi mal”, disse, sentando-se novamente no sofá, passando a mão no rosto.

“Que foi isso, velho? Tá doido, mano?” protestou o jovem que foi atacado, gesticulando agressivamente, porém recuado.

“Ando meio estranho, cara. Já falei, foi mal.” Silas levantou-se e foi em direção à cozinha. “Vou pegar a Branca pra gente brincar.”

Fran, que apenas assistia àquilo tudo com sua postura de sempre, um sorriso de canto e os dentes mascando constantemente, seguiu o homem pela cozinha até seu quarto, enquanto os demais acomodavam-se na sala, comentando sobre o ocorrido. Chegando lá, Fran encontrou um garoto de cerca de onze anos de idade, pele escura, cabelo Black Power e roupas imundas, cheirando uma carreirinha de pó, sentado em uma cadeira giratória.

“Esses são seus clientes, então?” perguntou ela, parada à porta, apoiada pelo braço direito erguido e encarando Silas fixamente.

“Eu não tenho clientes”, respondeu ele, sorrindo, enquanto procurava por algo.

O garoto terminou de cheirar a carreirinha e começou a encará-la ininterruptamente, com os olhos vidrados.

“Então você vive de quê?” questionou ela, sentando-se na cama, de frente ao homem e de costas ao garoto.

“Você não lembra de mim, né?” indagou ele, virando-se para ela com as mãos na cintura. Ao notar que ela estava sentada de pernas abertas, desviou o olhar e ficou sem jeito. “Você não gosta de usar calcinha, não, menina?” E voltou a procurar por algo nas gavetas do guarda-roupa, negando com a cabeça.

“Quem disse que eu preciso?” respondeu ela, e estourou uma bola de chiclete. “E você não gosta de usar camiseta.” Fran mantinha um olhar provocante no rosto.

Nesse instante, o garoto começou a afinar um violão, e Silas encontrou o que estava procurando: um maço de cigarros e um isqueiro. Ofereceu um cigarro a Fran, que aceitou, acendeu-o e tragou.

“Tentando me levar pro mau caminho?” perguntou ela, tossindo.

“De maneira alguma”, respondeu ele, com um sorriso, tragando seu próprio cigarro e soltando a fumaça pelos cantos da boca. “Me vê aquela porçãozinha aí, meu velho!” disse, indo em direção ao garoto, que o entregou um pino de cocaína. Silas, então, saiu do quarto, sem dirigir o olhar a Fran.

“Você adoraria que ele se interessasse em você, né?” insinuou o garoto, sem lhe dirigir o olhar, enquanto ensaiava alguma canção melancólica no violão.

“Como é?” indagou Fran, virando-se para ele e sentando-se com as pernas cruzadas na cama. “Esse cara é o maior babaca… o que eu iria querer com ele?”

O menino olhou-a com um sorriso, e voltou a encarar o violão, dedilhando as cordas.

“Você não é muito novo pra cheirar pó, não?” questionou ela. Deu outro trago e tossiu novamente. “Eu também sei tocar isso aí. Tenho um novinho que ganhei de um ex.”

“E quanto a você, Fran? O que você está fazendo aqui?” Ele sequer a olhou enquanto falava.

“Eu vim com a galera. Aqui não era a casa do Samuel? Eu acho que lembro desse quarto… mas eu estava tão louca”, disse ela, examinando o ambiente com os olhos. Fran sequer notou que o garoto desconhecido sabia seu nome. Todos sabiam, era sua fama.

“Aqui é a casa do Samuel. O Silas veio morar com ele faz pouco tempo. Alguns dias atrás, um rapaz negro entrou aqui procurando pelo Silas, confundiu ele com o Samuel, e deu três tiros no peito dele.”

“Nossa! Como? Então o Samuel está morto?” perguntou ela, surpresa, inclinando-se em direção ao garoto.

“Exato.” O menino colocou o violão no chão, encostado na parede, e olhou fixamente para Fran. “Por que você não vai lá cheirar um pouco com sua galera? Talvez ele se interesse em você, desse jeito.” Ele tinha um sorriso sacana nos lábios.

“Você se acha esperto, não acha?” indagou ela, com cara de desprezo, e reclinou-se na cabeceira da cama. “Eu prometi pro cara que eu mais amo no mundo que tentaria parar com o pó.”

“E o que mais você prometeu pra ele?”

“Prometi que cuidaria dele… eu faria qualquer coisa pra proteger aquele moleque.” Soltou fumaça para cima e estourou uma bola de chiclete.

“Você deveria juntar uma grana pra fugirem juntos”, sugeriu o menino, de braços cruzados.

“Juntar grana como, moleque? Eu não tenho idade pra arrumar um trampo decente. Não vou sair dando por dinheiro, porra!” Fran parecia irritada com o assunto.

“O Silas, espertona!” disse o garoto, levantando-se. “Você acha que ele não te arruma uma grana fácil? Não é à toa que tem gente querendo matar o cara.” Ele andou até a porta, parou, e olhou para ela uma última vez. “Usa sua cabeça junto com essa coisa que gosta de mostrar por aí. Ou será que você não tem coragem?” E saiu.

Fran ficou pensativa, terminando de fumar o cigarro, com os olhos arregalados e presos em um mesmo ponto, enquanto sua mente tentava elaborar algo. Ela apagou o cigarro em um cinzeiro no criado-mudo, olhou-se no espelho ao lado do guarda-roupa, passou os dedos nos lábios e estourou uma bola de chiclete, sorrindo.

“Hora de predar”, disse para si mesma, com os lábios, e piscou com o olho direito, sorrindo.


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Notas finais do capítulo

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